Ouve lá, meu sacana, é mesmo verdade que fazes hoje 65 anos?!
Não estava nada í espera disto, pá!
É verdade que o teu filho Pedro vai fazer 45 anos e a tua filha Marta, 42, mas, mesmo assim, custa-me a acreditar que já tenhas idade para tirares bilhete de sénior nos museus!
65 anos, pá!
Ainda há pouco tempo te vi a correr no paredão da Costa, armado em Carlos Lopes, embora com menos barriga, e também sei que pedalas 20 quilómetros de bicicleta sem qualquer esforço, não te oiço queixar de nada de especial, a não ser umas dorzitas nas costas, de vez em quando.
É certo que tomas comprimidos para a tensão, mas isso já desde os 30 e poucos. Herança do teu pai.
Lembras-te dos teus pais?
Claro que te lembras, apesar de já estares mais anos sem pais do que os anos que estiveste com eles. Foram-se embora muito novos…
Mas vês, até a tua memória está boa! Lembras-te de coisas da tua infância, mas também te lembras do que fizeste ontem.
Lembras-te quando fazias comboios com cadeiras, no corredor da tua casa, para brincares aos maquinistas com o Vitinho e o Vargas?
Tinhas para aí, quê… oito anos?
E lembras-te do nascimento do teu irmão Paulo e da tua irmã Anabela?
Partos em casa, como o teu.
Os teus pais eram muito caseiros…
Tu e o teu pai iam dar uma volta enquanto a parteira fazia o seu trabalho… e passavam pela sede do Benfica, onde aprendeste a patinar e a dar cambalhotas (da ginástica, claro, que das outras, só muito mais tarde…).
E o Benfica ficou para sempre, claro!
E lembras-te daquele gira-discos cinzento e portátil que o teu tio Xico trouxe de Inglaterra, onde tinha ido, como jornalista, acompanhar o Benfica para o Mundo Desportivo? O gira-discos vinha acompanhado de um EP dos Beatles. Terias, no máximo, 12 anos e ficaste fã: Beatles, Stones, Moody Blues, Procol Harum, Turtles, Led Zeppelin, Pink Floyd, Queen, Doors, Hollies, Janis Joplin, Bowie, mas também Beethoven, Mozart, Bach, Shostakovitch, Bruckner, Stravinsky…
E lembras-te do Panças Kid, o teu professor de Físico-Química, que gaguejava e que, quando te chamava ao quadro, dizia Senhor C-c-c-outo e Santos venha ao q-q-quadro. Borravas-te todo! Nunca gostaste de Físico-Química, ainda menos de Matemática e, no entanto, foste para Ciências e tiraste Medicina.
Foi graças í Medicina que conheceste a Mila, embora não na Faculdade. Foi na Colmeia, lembras-te, aquela pastelaria dos croissants com creme?
Nessa altura, davas explicações a um miúdo chamado Olegário e foi a mãe dele que te ofereceu o primeiro livro “…a sério”, “…Casa de Correcção”, do Urbano Tavares Rodrigues. Com a tua mania das listagens, deste-lhe o número um e começaste a numerar e catalogar todos os teus livros e já ultrapassaste os dois milhares.
Depois, já se sabe, tu e a Mila começaram a estudar Anatomia comparada pelo método de Braille e, pouco depois, nasceu o Pedro!
Lembras-te do almoço do vosso casamento no Restaurante Polícia, todos com cara de caso, menos vocês, que estavam felicíssimos, e os miúdos, o Paulo, a Bela e a Luísa, que acharam aquilo tudo muito divertido!?
E foi sempre a andar, a partir daí.
O curso foi-se fazendo, nasceu o Pedro, começaste a escrever para o República, conheceste o ílvaro Guerra e o Mário-Henrique Leiria, aconteceu o 25 de Abril, foste para a RTP como jornalista, nasceu a Marta, acabaram o curso, tu e a Mila, e começaram o internato nos Hospitais Civis em 1978.
E que bom e difícil, e bom outra vez, foi ter filhos, vê-los crescer, vê-los ser!
O resto foi história, mas foi sempre história movimentada.
Da primeira casa, que cabia quase toda na sala da tua casa actual e tinha um tanque na varanda, onde a Mila lavava as fraldas de pano, passaste para uma vivenda, alugada a meias, com um grande quintal, onde plantaste batatas e feijão verde.
Lembras-te dos meses em Moimenta da Beira, a fazer Saúde Pública, em casa dos teus tios, lembras-te do ano em Mourão, a fazer o Serviço Médico í Periferia, lembras-te do ano e meio a cumprir a merda do serviço militar obrigatório ““ é claro que te safaste da guerra, mas por que raio havias de interromper a tua vida para consultar as esposas dos senhores oficiais, em Évora?
Mas sobreviveste!
Depois veio a Pediatria para a Mila e a Psiquiatria para ti, após meses de estudo e de um exame que correu melhor do que estavas í espera.
E veio Almada, tua terra adoptiva ““ e a mudança para a Medicina Geral e Familiar, no Monte de Caparica, ao mesmo tempo que jorravas textos para a rádio, para a televisão, para semanários e revistas. O Pão com Manteiga foi um marco!
Os teus filhos foram crescendo e, em 1994, lá conseguiste ir até Nova Iorque com a Mila. Começaram as viagens anuais.
Lembras-te do teu deslumbramento perante os skyscrapers de Manhattan?
E o voo de helicóptero sobre o Grand Canyon?
E Machu Pichu, a Amazónia, o Titicaca, o Perito Moreno, Iguaçu, o Monument Valley, o Taj Mahal, a baía de Sydney, os masai, a muralha da China, as praias da Polinésia…
Em resumo, gostas mesmo de viajar ““ e ouvi dizer que, assim que te reformares, queres fazer uma outra grande viagem.
Reformar?
Mas já meteste os papéis?!… Claro que já meteste os papéis!
Aliás, desde que és aví´ que não pensas noutra coisa, não é?
Há anos que estás sozinho com a tua namorada de sempre.
O Pedro e a Marta seguiram as suas vidas e construíram famílias sólidas, que te deixam orgulhoso e feliz.
O Tiago fez 11 anos na semana passada e foi graças a ele que tu e a Mila deixaram de fumar. Foram 39 anos a chupar aqueles ridículos cilindros com tabaco lá dentro. Sempre que pensas nisso ficas perplexo como aguentaste tantos anos a fazer aquela figura.
Quando o Tiago nasceu, prometeram deixar de fumar para que a casa não cheirasse a tabaco, quando o neto vos fosse visitar.
Ser aví´ passou a ser algo de muito importante para ambos.
Veio a Joana, depois a Ema, depois a Clara e há quatro meses, a Mia.
Tens cinco netos, pá! Que alegria do caraças!
E 65 anos, caramba!
E saudades?… Tens saudades?…
Só saudades do que ainda não fizeste!
Então, reforma-te carago!
E parabéns porra!
Amanhã, começas o resto da tua vida!