Abaixo as baixas!

Os jornais deram conta de uma investigação da Inspecção Geral de Saúde, segundo a qual, mais de metade das baixas médicas que os inspectores analisaram, não seriam justificadas. O ladino Macário Correia, presidente da Câmara de Tavira, veio a público insurgir-se contra este regabofe, contra esta espécie de aliança entre os médicos e os trabalhadores que não querem trabalhar. O especialista Vital Moreira, no seu artigo do Público, criticou o presidente da Ordem dos Médicos, por este ter afirmado que os médicos não são polícias, e propõe que se extinga a Ordem.

Ora bem, como médico, custa-me um pouco escrever sobre este assunto, já que estou directamente e diariamente envolvido nele.

No entanto, quero deixar aqui, apenas, alguns exemplos correntes:

1. Um doente vem í  consulta na quarta-feira, dizendo que tem estado há dois dias com vómitos e diarreia. Ficou de cama na segunda e na terça, porque, diz ele, nem tinha forças para se levantar. Não veio ao médico porque decidiu tratar-se com as mesinhas caseiras, o caldo de galinha, o arroz branco; os vómitos melhoraram, mas continua com diarreia. Que faço? Acredito no que ele me está a dizer e dou-lhe baixa desde segunda-feira, ou não colaboro com o regabofe e passo-lhe, apenas, uma declaração em como ele compareceu na consulta na quarta-feira, sabendo que eles ficará com dois dias de faltas injustificadas?

2. Uma doente refere que tem lombalgias intensas, que mal pode andar, razão pela qual já não vai trabalhar há três dias. Entretanto, foi tomando uns Trifenes e fazendo umas massagens com Reumon gel, mas a coisa não melhora. Observo-a. Custa-lhe fazer extensão e flexão da coluna, que também lhe dói a palpação. Medico-a em conformidade e passo-lhe cinco dias de baixa.

Volta í  consulta no fim da baixa, dizendo que a medicação não está a resultar e que a dor já se reflecte num dos membros inferiores. Prolongo-lhe a baixa, modifico a terapêutica e peço-lhe uma radiografia da coluna lombo-sagrada.

Regressa no fim da nova baixa, dizendo que a radiografia só estará pronta dali a 5 dias e que ainda não está melhor.

Que faço? Prolongo-lhe a baixa ou deixo de colaborar no regabofe?

3. Uma mulher de 80 anos vive sozinha com o filho. Ela recebe a reforma mínima, ele tem um trabalho indiferenciado, ganhando o ordenado mínimo. A velhota sofre um AVC e fica temporariamente acamada. O filho tem que cuidar da mãe, já que não tem mais ninguém. Para isso, terá que ter baixa. Só que a baixa para assistência í  família não é remunerada.

Que faço? Passo-lhe baixa por doença, a ele, para que ele possa cuidar da mãe, enquanto não se consegue arranjar um lar da Segurança Social, ou não colaboro com o regabofe e quero que eles, velhota e filho, se lixem, já que não tenho culpa nenhuma que ele só ganhe o ordenado mínimo?

4. Uma costureira de 55 anos ficou desempregada porque a fábrica foi í  falência. Está no Fundo de Desemprego, onde alguém a informa que o melhor é pedir baixa ao médico, caso contrário, corre o risco de ser chamada para empregada de limpeza ou outro trabalho qualquer pesado, e ela já não pode, porque está cheia de artroses.

Que faço? Colaboro com o regabofe ou mando-a dar uma curva?

Exemplos como estes são quase diários.

Os jornais, os inspectores da IGS, Macário Correia, Vital Moreira e muitos outros, parece que não fazem ideia do país em que vivemos, das situações sociais que, todos os dias, entram nos consultórios dos médicos do Serviço Nacional de Saúde.

Tenho a noção de que alguns dos meus doentes que estão de baixa talvez me estejam a enganar; se calhar, as costas não lhes doem tanto como dizem; se calhar, eles não gostam é de trabalhar; se calhar, aproveitam a baixa para fazer um biscate e arredondar o ordenado.

Se calhar…

Mas, sinceramente, não me sinto capaz de arcar com mais esta responsabilidade. A relação médico-doente é uma relação de confiança mútua e, se o doente me diz que se sente deprimido, que não dorme í  noite, que chora por tudo e por nada, que se sente ansioso, que está sem energia e que não consegue trabalhar, eu não hesito em fazer o diagnóstico de sindroma depressivo e dou-lhe baixa.

Não sei como se resolve este problema. Neste caso, estou sem ideias. Mas tenho a certeza de que não se resolve pedindo ao médico que, sempre que esteja perante um doente que diz que não consegue trabalhar, parta do princípio que o doente o está a enganar.

6 thoughts on “Abaixo as baixas!

  1. Tem toda a razão. Muito fala quem não vive a realidade ou quem só passa os olhos por ela e precisa arranjar um bode espiatório, sem ofensa. Não obstante, há médicos que ganham a vida a passar atestados médicos sem que vejam o doente. Mas o problema não é essa meia dúzia de maus profissionais, assim como o problema não são os doentes que o enganam a si e aos outros médicos quando se queixam mais do que na realidade lhes dói. Os problemas são vários e muito mais profundos e os responsáveis mais os senhores-que-lambem-cinzeiros e afins até sabem bem quais são, mas, e o jeito que dá atacar uma classe que já é apontada como culpada de tanta coisa! – ele é o tempo de espera nos hospitais, o tempo de espera por uma consulta na Caixa, a escassez de médicos e de camas nos hospitais, etc., etc..

  2. Apetece-me dizer muita coisa, tavez um texto maior ainda que o que estou a comentar.
    Mas contento-me com uma expressão de um companheiro do mundo dos blogs: “Viva quem faz!”

  3. pois é — leio sempre “O Coiso”.E í s vezes discordo muito do que lá está escrito.Por exemplo o anterior sobre o 24 — não será evidente que se trata de um longo spot publicitário que tenta justificar o injustificável ?
    Mas eu nãp sou o Artur – e êle tem todo o direito de ter opiniões opostas í s minhas.
    Mas este texto sobre as baixas é de tal forma humano e claro, que tenho que mandar um abraço electrónico ao médico que continua a ser um Homem. Obrigado, Artur

  4. Para o Raul Calado: claro que o 24 é um spot publicitário í  América como líder do “mundo livre”, claro que aquilo é uma reaccionarice pegada, mas enfim, daquelas coisas… os spots da Coca-Cola com o ursinho branco e os trenós e o Pai Natal bonacheirão também são muito engraçados, apesar do refrigerante não passar da água suja do imperialismo. Contradições da vida moderna?
    No que respeita í s baixas, obrigado pela solidariedade.

  5. Eh tao dificil opinar sobre um problema social tao complicado como este, sendo q mtas das situacoes descritas sao de facto situacoes onde o medico tem q apelar para a sua humanidade, mas tb (nao querendo fazer de advogado do diabo) sabemos q neste nosso pais de brandos costumes, a “chico-espertice” continua a ser premiada…
    Pois, parece q ideias tb nao abundam por aqui, neste caso, resta-me dizer q ha coisas q so mesmo mudando de raiz, coisa q nao se consegue fazer.

    Beijito

  6. Não há uma resposta simples, é verdade. Mas as coisas também não são pretas ou brancas; muitas vezes há uma terceira escolha. Ora vejamos:
    1. Por que é que o doente não veio í  consulta ou telefonou no primeiro dia? Ficavam os sintomas registados, tomava uma metoclopramida e tinha baixa.
    2. Até me parece o caso mais fácil de decidir, pois, até prova em contrário, não há por que duvidar das queixas da doente…
    3. Por que é que não se muda a Lei e as baixas para assistência a familiares passam a ser remuneradas, pelo menos parcialmente?
    4. Por que é que não se espera para ver o que o centro de emprego oferece e depois se decide se é ou não precisa a baixa?

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.