Com este seu quinto romance, Paul Lynch (Irlanda, 1977) venceu o Booker Prize de 2023 e, na minha opinião, é um dos melhores romances dos últimos tempos.
Quando o comecei a ler percebi que estava perante o nascimento de um estado fascista. A acção decorre na Irlanda quando um Partido de Acção Nacional ganha as eleições e começa, a pouco e pouco, a impor as suas regras, a colocar os seus apaniguados nos lugares importantes, a proibir greves e manifestações. Faz-nos logo lembrar qualquer coisa, não é verdade?
A situação do país vai-se deteriorando, as liberdades vão sendo cada vez mais limitadas e vamos conhecendo todo o drama através da família Stack.
O pai, Larry Stack, professor, desaparece logo no princípio da história, quando está a organizar um protesto. A mãe, Eilish, bióloga, fica responsável pelos quatro filhos, Mark, adolescente, Molly e Bailey, a caminho da adolescência e Ben, um bebé de colo. Há ainda um avô, Simon, já com sintomas de demência, que vive noutra parte de Dublin.
Paul Lynch consegue escrever toda a história num crescendo de drama, que culmina numa guerra civil e na fuga do que resta da família. Eilish vai enfrentando cada vez mais dificuldades, num crescendo dramático. Ao colocar a acção no seu próprio país, na Irlanda, o autor consegue que nós façamos auto-relacionamento com mais facilidade. Todos nós vemos, diariamente, imagens horríveis do que se passa, por exemplo, em Gaza, mas a vida em Gaza é muito diferente da nossa; aquelas famílias palestinianas sempre viveram em guerra e, por maior que seja o nosso sentimento de solidariedade, sentimo-nos distantes delas. Ao lermos a descrição das vicissitudes por que Eilish vai passando, facilmente nos identificamos com ela. E perguntamo-nos: não poderá acontecer algo de semelhante entre nós? A coberto da liberdade e da democracia, não existirão forças que disso se aproveitam para instituir uma ditadura?
Como diz alguém, já quase no fim do livro:
“eu costumava acreditar no livre-arbítrio, se me tivesse perguntado antes de tudo isto acontecer ter-lhe-ia dito que era livre como um passarinho, mas agora já não tenho tanta certeza disso, agora não vejo como é possível o livre-arbítrio quando fomos apanhados em tamanha monstruosidade, uma coisa leva a outra coisa até ao raio da coisa ter a sua própria dinâmica e já não haver nada que possamos fazer, agora vejo que o que eu julgava ser liberdade na verdade era luta e que nunca houve liberdade nenhuma.”
Quando acabei de ler Canção do Profeta, respirei fundo e senti-me, de certo modo, aliviado por ter terminado o meu “sofrimento”, que não o daquela família.
E o final é surpreendente.
Aconselho vivamente.
É uma edição da Relógio de Água, com tradução de Marta Mendonça.