Quando Dulcídia nasceu, todos foram unânimes: tinha os olhos da mãe, a boca do pai, o nariz da avó e as mãos de um tio que vivia na Austrália.
O nascimento de Dulcídia significou, portanto, a mutilação de quatro membros da sua família. E este facto marcou Dulcídia para sempre. Marcou-a, mais precisamente, numa nádega, pelo que só se via quando estava de costas. Por isso, Dulcídia nunca se punha de costas, para que não se lhe notasse a marca.
“É registada?” – perguntavam os amigos mais íntimos, aqueles tão íntimos que tinham o privilégio de ver a marca.
Mas a marca de Dulcídia não era registada. E apesar de muito imitada, nunca conseguira ser igualada. Era uma marca única!
Mas Dulcídia era uma rapariga com azar. Como a mãe era míope e ela tinha os olhos da mãe, foi obrigada a usar óculos. Como o pai sofria de cárie dentária e ela tinha a boca do pai, andava sempre com dores de dentes. Como a avó tinha sinusite, Dulcídia tinha sempre o nariz a pingar. E como o tio da Austrália roía as unhas, Dulcídia não as podia pintar.
Enfim, azares de Dulcídia, compensados pelo seu magnetismo pessoa, capaz de atrair qualquer um.
Mas Dulcídia temia o futuro: míope, com cárie, sinusite e sempre a roer as unhas, como poderia ela arranjar um emprego decente e monetariamente compensador?
É que Dulcídia começava a entrar na casa dos trinta, deixando para trás os tempos despreocupados da adolescência e as quatro pensões de invalidez que recebia não chegavam para a sustentar. Dulcídia era uma mulher de muito alimento.
Por isso, começou a andar cabisbaixa, ensimesmada, deprimida e outras coisas semelhantes.
Os amigos tentavam confortá-la.
Dizia um: «deixa lá, Dulcídia!… Míopes há muitos… um até conheço um zarolho que é míope, vê lá tu!…»
Mas Dulcídia não via lá muito bem, como já foi dito.
E dizia outro amigo: «não te preocupes!… Arranca os dentes e usa placa!”
Mas Dulcídia não ia í bola com placas porque não gostava de futebol.
E outro amigo dizia ainda: «não te rales!… tu tens sinusite, e eu sofro de rinite, faringite, pirite e calcopirite! Um mal nunca vem só!»
Mas com o mal dos outros, podia Dulcídia bem. Com o que ela não podia era com os seus males, os seus defeitos, que a impediam de encontrar um emprego compatível com os seus inegáveis dotes intelecto-corporais.
Por tudo isso, Dulcídia temia o futuro.
Mas um dia, já depois das 4 horas, o futuro chegou e afinal era bom!
Graças í miopia, fez anúncios para lentes de contactos. Com a ajuda das cáries, anunciou pastas dentífricas ricas em fluor. A sinusite permitiu-lhe fazer spots de pingos para desintupir o nariz e pílulas para as dores de cabeça. E a sua mania de roer as unhas serviu na perfeição para o conhecido anúncio de pastilhas elásticas: «não roa as unhas, mastigue Elastex – a pastilha que nunca esquece!».
E mais uma vez ficou provado que a função faz o órgão e a publicidade faz o resto!
– in Pão Comanteiga, Rádio Comercial, 29.5.1983 (Tema: o Futuro)