Incompatibilidades

Tinha um hordéolo, vulgo, treçolho.

Mediquei-o com as gotas e a pomada habituais.

Sorriu e exibiu um teclado frontal só com teclas pretas e quase todas partidas. Perguntou:

– Posso beber vinho com estes medicamentos?

– Desde que não exagere… – respondi.

Viu-se que ficou contente. Levantou-se para se ir embora mas, antes, não quis deixar de fazer mais uma pergunta:

– E posso fumar cigarros para rir?

Fiz de conta que meditava um pouco e respondi:

– Isso, eu não aconselho… com esses dentes, o melhor é você manter-se sério…

Letra de doente

A famosa letra de médico está a transformar-se em letra morta.

Com o advento dos programas informáticos de saúde, as receitas são passadas no computador e toda a gente percebe a letra do médico que, no fundo, já não é dele – é um “times new roman” qualquer.

A dificuldade, agora, reside em os médicos perceberem a letra dos doentes. Sobretudo, quando recebem papelinhos como este:

odescopia.jpg

“Sr. Doutora pedia o fabor de me passar uma crendencial Odescopia alta com biopecia.”

Um odescopia, o que será? Ainda por cima, alta. E uma biopecia?

Será que odescopia será um exame í  poesia, em forma de odes?

Seria uma ideia interessante: introduzir um endoscópio numa ode qualquer de um qualquer poeta.

Mas não é.

O doente queria escrever algo de muito menos romântico, porém, bem mais incómodo: “endoscopia alta, com biópsia”.

Enfim… letra de doente…

Morte por sistema de travagem

A D. Virgínia morreu de repente. Era obesa, diabética, hipertensa e tinha dislipidemia mista. Um típico síndroma plurimetabólico, como agora lhe chamam. O risco de morte súbita era elevado.

A D. Virgínia confirmou as estatísticas.

O marido veio í  consulta dois meses depois.

Motorista reformado, o Dr. Rudolfo é homem e poucas falas.

«Não sofreu muito, a sua senhora… foi de repente» – disse eu, depois de lhe apresentar os meus sentimentos.

«Pois foi» – confirmou o Sr. Rudolfo – «Deu-lhe um ABS…»

Eu já nem me espanto, mas tento corrigir:

«Pois… teve uma trombose…»

«Não, não!» – interpõe o Sr. Rudolfo – « Foi mesmo um ABS!»

Para o Sr. Rudolfo, motorista reformado, ABS e AVC não passam de sistemas de travagem rápida – do carro, ou da vida…

Embacuar!

Recado escrito por um doente í  sua médica de família:

embacuar.jpg

“pedia o fabor se passava estes medicamentos em nome de meu marido. e para ver se lhe passava um cardencial para fazer restreio aos intestinos porque ele anda com muita deficuldade embacuar, ele diz que vai a casa de vanho mas que só faz muito pouchinho e outras vezes vai a casa de banho mas não faz nada.”

O gesto é tudo

Chamei o doente seguinte. Era um cidadão da China e vinha acompanhado por um cidadão do Bangla Desh.

A ideia era a seguinte: o cidadão da China queixava-se em inglês e o cidadão do Bangla Desh traduzia para português; eu observaria o cidadão da China e, depois, faria a minha prescrição, em português; seguidamente, o cidadão do Bangla Desh traduziria para inglês, de modo a que o cidadão da China percebesse.

Acontece, no entanto, que o inglês do cidadão da China era tão mau que o cidadão do Bangla Desh tinha muita dificuldade em percebê-lo.

Acresce que o português do cidadão do Bangla Desh era, também, tão mau, que eu não entendia nada do que ele me dizia.

Ficámo-nos pelos gestos.

O doente chinês apontou para a garganta e fez um esgar internacional de dor. Com uma espátula, vi-lhe a garganta e fiz uma careta internacional para “isto está feio”.

Enquanto isto, o cidadão do Bangla Desh sorria-se, também internacionalmente.

Depois, foi só passar a receita e explicar como se toma o antibiótico, com o gesto internacional para “de 12 em 12 horas”.

Palavras para quê?…

Andar aos figos

E, no meio da consulta, toca o telemóvel.

Já nem protesto.

“Sim, sou eu…” – diz o doente – “Vendo a 2 euros por quilo, mas você pode vender ao preço que quiser… 3 ou 4 euros… Quer quatro caixas?… Está bem, eu levo-as amanhã.”

Desliga o telemóvel e confidencia-me:

“Ando aos figos… as figueiras estão abandonadas e eu vou lá e apanho-os!… faço 100 a 200 euros por dia em figos… O doutor não quer uma caixinha?…”

Cem a duzentos euros por dia?

Que andei eu a fazer na Faculdade, com tantos figos para apanhar?!