Ficou mesmo satisfeito com aquela sentença.
Deu-lhe muito trabalho; obrigou-o a consultar a Bíblia e o Alcorão, mas fundamentou a sua decisão com frases elaboradas e certeiras. Pelo menos, era o que ele achava. O marido tinha dado uns socos na mulher, tinha-lhe partido a cana do nariz e deslocado a articulação temporo-maxilar, mas era compreensível: ele tinha-a apanhado em flagrante, a beijar o rapaz do talho, com língua e tudo!
Um homem não pode tolerar ser enganado assim pela própria mulher com quem está casado.
Mas enfim, se calhar, ele devia ter tido mais cuidado… os socos foram muitos e com força talvez excessiva. Condenou-o a seis meses de pena suspensa.
E voltou para casa com a sensação de ter feito justiça.
Quando entrou em casa, a Lurdes, sua esposa, estava sentada no sofá da sala, a ler o jornal e percebeu logo, pela sua cara, que ia haver discussão.
Isto é que são horas de chegar, gritou ela.
Desculpou-se com a complexidade da sentença, mas ela não quis saber.
Vai mas é fazer o jantar que estou cheia de fome! – vociferou a D. Lurdes, e atirou-lhe com o cinzeiro, não lhe acertando por pouco.
E não te esqueças de apanhar essas beatas do chão, ouviste?!
O juiz meteu a cabeça entre os ombros, colocou o avental e encaminhou-se para a cozinha, com uma lágrima ao canto do olho direito…
- in “Histórias (ainda) Mais Desgraçadas”, a publicar este ano