O passeio dos tristes

Nunca gostei de militares.

O pior período da minha vida passei-o na tropa. Nos anos 80, já com três anos de licenciatura, 28 de idade e dois filhos pequenos, fui arrancado do Serviço Médico í  Periferia, para prestar o Serviço Militar Obrigatório.

Deixei de prestar cuidados médicos í  população do concelho de Mourão, para ir fazer consulta de Clínica Geral no Hospital Militar de Évora. Mas não fui consultar os soldados, não senhor! Fui consultar os familiares dos senhores oficiais.

Mas antes, tive que passar seis semanas de humilhação, na recruta, nas Caldas da Rainha. Imaginem um pelotão de médicos, todos com 28 anos e mais, alguns deles já especialistas, sentados, a meio da noite, nas matas da Foz do Arelho, a tentarem identificar sons: uma lata que caía, uma bota que pisava caruma e – suprema imbecilidade! – um alferes a mijar!

Nunca mais me esqueci deste episódio. Ainda hoje, não consigo entender a importância que teve, para mim, médico de família, conseguir identificar, no escuro, o som de um alferes a mijar!

Mas foi isto que fui aprender na recruta. Isto, e também, a montar e a desmontar uma G-3, a marchar na parada e a fazer funeral arma.

Terminada a recruta, fui então para o Hospital Militar de Évora, mas a palhaçada continuou. Como éramos quatro médicos a prestar serviço militar obrigatório (quatro! em Mourão, para todo o concelho, foram colocados três médicos, no Serviço Médico í  Periferia, e só lá ficaram dois, quando eu fui para a tropa!) – como éramos quatro médicos, decidimos dividir o serviço e cada um de nós, só ia ao Hospital uma semana por mês.

Uma tropa fandanga!

Por isso, faz-me muita confusão ver os militares a protestarem contra os privilégios que o Governo agora lhes retira, nomeadamente no sector da saúde –  privilégios a que eles chamam direitos.

Faz-me ainda mais confusão ver militares tentarem ludibriar a lei, armados em chicos-espertos, chamando “passeio do descontentamento” í  manifestação.

E ainda mais confusão me faz saber que esses militares organizaram o tal “passeio”, contra a opinião do Chefe de Estado Maior, do Ministro da Defesa e da Governadora Civil de Lisboa.

Um militar não pode ir contra as ordens da hierarquia. Por definição. Assim como um médico não pode ignorar um homem caído, no meio da rua.

O líder do tal “passeio”, disse, por exemplo: “não foi para isto que os militares fizeram o 25 de Abril”.

Como diz o Vasco Pulido Valente, também foram os militares que fizeram o 28 de Maio. E acrescento eu: também foram os militares que fizeram a guerra colonial, que sustentaram Salazar durante quatro décadas e que me obrigaram a ouvir um alferes a mijar!

Portanto, façam o favor de se deixarem de merdas!

4 thoughts on “O passeio dos tristes

  1. Serviço militar obrigatório, uma reclamação portuguesa tão similar í  brasileira. Absurdo realmente! Médicos com suas carreiras e vidas pessoais desestruturadas por essa barbárie! Sentimento de impotência e revolta.
    Fabiula Schwartz – também médica de família, cujo namorado vive a situação inacreditável acima citada.

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