Soube, há alguns dias, que o Rui Lemos, um dos fundadores do semanário “O Coiso”, morreu há uns meses.
Já não via o Rui há alguns anos e a notícia foi um choque.
Fomos companheiros de escrita durante vários anos, no República, antes do 25 de Abril e, depois, no Pé de Cabra, no Coiso e em alguns programas de rádio e TV.
Passámos momentos muito divertidos das nossas vidas, com o Mário-Henrique Leiria, o José António Pinheiro, o Carlos Barradas e o ílvaro Belo Marques, naquele curto e glorioso período, entre 1973 e 1975.
O Rui tinha um humor amargo e desdenhava a mediocridade desta Pátria de poetas e patetas.
Aqui fica um texto do Rui, publicado no semanário Pé de Cabra, em 29 de Novembro de 1974 e que é bem ilustrativo do que ele pensava do Portugal bafiento do “antes do 25”. O pior é que muito do que eles escreveu então, continua bem actual!
Um abraço para o Rui.
Lusolândia – síntese reminisciativa
Génese
Os Lusíadas, nascidos entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974, eram lindos. (Eu sou lindo). Quando nasciam, as opiniões eram unânimes: «mas que lindo bebé!». E, se era menino, era igualzinho ao papá. Marialvismo? Aval da seriedade da senhora sua mãe? Inextricáveis meandros da língua portuguesa? Sigamos. Os historiadores que deslindem a questão.
Geografia
Pois então, a escola ensinava-nos que nascéramos num país cheio de tradição, que se chamava Pátria. A Pátria era casada com o Senhor Governo, e tinham uma criança chamada Nação. Viviam então num país chamado Estado, que tinha filiais em vários continentes. Dizia-se, então, que Portugal havia dado novos mundos ao mundo. Era porreiro ser português. Mas – era preciso merecê-lo! E como, como se merecia tão inesperada honra?
História
Para ser português, não bastava ter nascido na Pátria. Que os portugueses tinham uma segunda nacionalidade – eram patriotas (não confundir com cipriotas). E os portugueses eram ainda mais patriotas se fossem portugueses e tivessem uma grande peitaça. Eram peitotas e patriotas. Os portugueses eram portugueses até ao quinto dos liceus, altura em que passavam a lusíadas. Havia ainda os pretiotas, que viviam numa coisa chamada ultramar. Vários historiadores reclamam outra versão, que dividia lógica e etariamente os portugueses em lusitos, vanguardistas, cadetes e legionários, consoante usassem calções, calças í golfe, botas de montar ou ladrilho.
Economia
Era excelente. Era cá uma economia… De alimento, de palavra, de tudo. E estava indissoluvelmente ligada ao patriotismo e í precocidade. Uma criança de mama, após ingurgitar os primeiros golinhos de leite materno, tinha observações do género desta: «o leite português é o melhor, o mais puro!» Depois, mais uma mamada e outra asserção: «a teta portuguesa é a maior, a mais úbere, a mais tenra!»
Se, inversamente, a criança cuspia, é porque começava a manifestar, de pequenino, tendência para a independência. E era assim que se tornava duro, castigador e castiço.
Arte
Nessa época havia várias manifestações artísticas. Em cada sala de aula, o professor era enquadrado pelas fotografias de dois gajos muito graves, que eram um tal Salazar e outro que nem sei se tinha nome, ou que acabava em mona. Tanto faz. Era essa uma das manifestações artísticas. Outra, era um S que havia no cinto que os meninos eram obrigados a comprar voluntariamente.
No campo da música, existia uma notável composição chamada «Já vamos», que devia ter sido o hino dos guardas-nocturnos. Ou era «Lá vamos»? Era qualquer coisa do género. Só sei que tinha que ser cantada com o braço estendido, como quem vê se chove.
Clima
Era tépido e ideal. Privilegiado. O clima nacional era o melhor do mundo. Fresco no verão, morno no inverno. Era cá um tempo! E não eram pobrezinhos, aqueles que andavam sem roupa, não senhores. Era do clima. Andavam í fresca. Só.
Política
Era notável. Sã. Cheia de princípios. Exercida por verdadeiros patriotas.
Desempregados? Não senhor – turismo interno.
Famintos? Torpe insinuação. Elegantes, é que eram. Da alimentação racional.
Todos muito unidos, muito amigos, muito graves, muito solenes, muito clementes. E as esposas, tão benfeitoras! Até fazia um nó na garganta, vê-las, no Natal, a visitar os bairros de lata, em risco de sujarem os sapatinhos de cetim e os casacos de pele, só para reconfortarem os desamparados da fortuna!
Estava tudo certo: os maridos faziam os pobres, para que as esposas se ocupassem a dar-lhes bolos-reis e broas. Muito racional.
í€ parte isso, havia um partido político que congregava os 8 milhões de sobreviventes (perdão, de habitantes) do continente (ou metrópole). Era a União Nacional.
Agricultura
A mais abundante. Couves, azeitonas, bolota, cortiças, alfaces, tudo, mas tudo, se dava nesta bendita e santa terrinha. E tudo saudável!
Batatas também havia algumas, e vinho, era em cataratas. Les portugais son toujours gais.
Portugal também produzia um subproduto degenerado, chamado «exilados». Mas estavam condenados í extinção e o glorioso futuro da Pátria se encarregaria de provar que eram uns trasfegas, um rebotalho sem significado.
Folclore
Havia o futebol, Fátima, as toiradas e o fado.
E quem não fosse do Benfica, era do Sporting e vice-versa. E quem não fosse católico, era ateu.
E quem não gostasse do Diamantino Viseu, gostava do Manuel dos Santos. E quem não fosse pela Amália, era pela Hermínia.
E ainda havia quem dissesse que não havia pluralismo…
Língua
A mais pura, a única que conservou as autênticas raízes latinas.
A mais indicada para cantar o fado.
Inspiradora de autênticas obras de filigrana oratória, tendo por cenário esse magnífico anfiteatro do espírito nacional – a Assembleia.
Exemplo de pequenas pedras preciosas:
«…os valores imparáveis da pátria lusitana…»
«…os inequívocos sacrifícios patrióticos do nosso querido Presidente…»
«…a inalienabilidade do solo pátrio…»
«… a indissolubilidade da identidade e comunhão de sentimentos…»
Literatura
Exemplos da ínclita literatura lusíada: «Oh glória de mandar, oh vã cobiça! Alça a perna e coça a pica!»
Ou: «oh tu que tens do humano o gesto e o peito, vira o cu para lá e põe-te a jeito!»
E ainda. «as aguardentes e os vinhos gaseificados/ que da taberna sórdida ou bela garrafeira/ por goelas e goelas de esfaimados/ passaram inda além da borracheira»
E exemplos não faltam. Faltou foi gente para os seguir.
É verdade.
Um dia, muito tempo depois, acordámos e demos connosco a dormir na mesma enxerga!
Virei-me para o outro lado a ver se era pesadelo.
Não era.
Sempre o fado.
O mesmo fado.
O fado menor. Escuro e triste.