Annie Ernaux terá concluído este livro quando tinha 66 anos, após a sua aposentação. Já nas páginas finais deste livro, escreve:
“…De um dia para o outro, as aulas redigidas, as notas de leitura para as preparar, deixavam de ter qualquer utilidade. Por falta de uso, os conceitos antes adquiridos para explicar os textos apagavam-se nela ““ e quando procurava em vão o nome de uma figura de estilo, era obrigada a confessar, como a sua mãe fazia a propósito de uma flor da qual lhe escapava o nome, «já soube»”.
E mais í frente:
“…Já lhe acontece, quando tenta lembrar-se das colegas do liceu na montanha, onde deu aulas durante dois anos, ver algumas silhuetas, rostos, por vezes até com extrema precisão, mas é-lhe impossível «dar nome». Desespera para tentar encontrar o nome que falta, para fazer coincidir uma pessoa com um nome, como se conciliam duas metades separadas.”
Como eu a compreendo! Passa-se o mesmo quando vejo na rua um ex-doente meu, que reconheço imediatamente, mas cujo nome se perdeu algures no espaço e no tempo, ou quando tento lembrar-me do nome de um medicamento ou até de um síndroma.
Este livro de Annie Ernaux é uma espécie de diário; são pequenos fragmentos que contam pequenos episódios a partir de uma foto, ou de uma notícia de jornal, ou de um filme, de uma canção, de um jingle comercial. Começa nos anos 40, pouco depois da Segunda Guerra e vai caminhando ao longo dos anos (daí o titulo do livro), até 2006.
Logo na página 31, escreve:
“…Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.”
Mais í frente, página 40:
“…O sexo era a grande suspeição no seio da sociedade, que via sinais dele por todo o lado: os decotes, as saias travadas, o verniz vermelho das unhas, a roupa interior preta, o biquíni, a mistura de sexos, a obscuridade das salas de cinema, as casas de banho públicas, os músculos do Tarzan, as mulheres que fumam e traçam a perna, o gesto de passar a mão pelos cabelos na sala de aula, etc.”
E muito mais í frente, como último exemplo do modo como Ernaux escreve este “…diário” (página 140):
“…Os filhos, sobretudo os rapazes, dificilmente largavam o ninho familiar, o frigorífico cheio, a roupa lavada, o ruído de fundo das coisas da infância. Faziam amor, com todo o í -vontade, no quarto ao lado do nosso. Instalavam-se numa juventude longa e duradoura, o mundo parecia não estar í sua espera. E nós, alimentando-os, continuando a cuidar deles, tínhamos a sensação de estarmos a viver, sem rutura, no mesmo tempo de sempre.”
Sem nunca se referir a ela própria especificamente, mas sim a um conjunto de pessoas que poderão ser a sua geração, Ernaux vai referindo os acontecimentos da política, a eleição de Mitterand, depois de Chirac, depois de Sarkozy, a evolução da tecnologia até ao telemóveis e os computadores, as modas, os programas de televisão, as canções, não esquecendo praticamente nada de importante, a não ser, talvez, o 25 de Abril ““ já que fala na queda da ditadura grega, por exemplo.
É um livro muito interessante, que foi finalista do Man Booker Internacional de 2009, e que poderia ainda ser mais interessante se não fosse “…tão francês”, uma vez que a autora refere nomes de apresentadores de televisão e respectivos programas e outros acontecimentos (guerras da Indochina e da Argélia) que dizem respeito apenas aos franceses. Vale a pena ler.
Notei isso exatamente sobre as memórias políticas. Na verdade a maiorira, quase a totalidade, estão centradas em França. Mas como diz, surpreendeu-me um pouco a ausência de referência ao 25 de Abril.
Depois deste li também “Uma paixão simples”. Foram os únicos que li. Gostei de ambos.