Redação: A faca

A faca dá-nos o leite, o queijo e a manteiga. Eu gosto muito das facas. Na quinta do meu afí´ há três facas que estão no curral e quando lá fou passar as vérias, gosto muito de mugir as facas. Depois, lefo o leite í  minha afó Firgínia, que o aquece no vogão. É preciso ter cuidado quando se aquece o leite porque se ele verfe, deita por vora. A faca, quando está zangada, marra com duas coisas que tem em cima da cabeça e que são os cornos e que o meu pai também parece que tem e í s fezes até lhe doem í  brafa que ele tem que tomar um comprimido. Quando as facas são muitas chamam-se manada e quando são poucas, chamam-se só poucas facas. Quando ví´r crescido não quero ser faca porque senão tinha que vicar vechado no curral e não podia brincar í s escondidas e í  apanhada. ““ in Pão com Manteiga, 24 outubro 1982

“Contos de Odessa”, de Isaac Babel

Muito oportuna esta edição da Relógio de ígua. Numa altura em que a Ucrânia, e nomeadamente Odessa, estão permanentemente nas notícias, pelas piores razões, o lançamento destes Contos de Odessa dão uma ideia de como seria a vida nessa cidade, nos primeiros anos do século 20.

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Isaac Babel nasceu em 1894, em Odessa, e terá morrido em 1940, num Gulag, í s mãos do KGB ““ quer isto dizer que foi contemporâneo do domínio russo dos czares e, depois, dos bolcheviques.

A imagem que transparece de Odessa, nestes contos, é de uma cidade violenta, a que chamam a Marselha do Mar Negro, em que digladiam gangues, contrabandistas, malfeitores, ladrões e bêbados, judeus e gentios.

O livro é traduzido do russo por Nailia Baldé e a linguagem de Babel é muito peculiar. Os assaltantes do bairro de Moldavanka têm em Bênia Krik o seu chefe, conhecido como o Rei. Logo no primeiro conto, estamos no casamento do Rei:

“…Os convidados sentaram-se í  mesa sem respeitarem idades. Uma velhice tola não é menos tolerável do que uma juventude cobarde. Também não respeitaram as fortunas. O forro de uma bolsa bem recheada é feito de lágrimas.”

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Ao longo dos oito contos deste pequeno livro, vamos conhecendo muitas figuras deste bairro de Moldavanka, como, por exemplo, Liovka.

“…Um dia, Liovka, o mais novo dos Krik, conheceu Tabl, a filha de Liubka. Em russo, Tabl significa pombinha. Ele viu-a e desapareceu de casa por três dias. Ficava deliciado com o pó das calçadas desconhecidas e com os gerânios nas janelas alheias. Passados três dias, Liovka voltou para casa e encontrou o pai no jardim. O velho estava a cear. Madame Gorobtchik estava sentada ao lado do marido e olhava em redor como uma assassina.”

Um livro muito curioso.

Consulta médica

A ““ Doutor, tem que me ajudar!

B ““ Diga lá! Parece muito aflito!

A ““ E estou! Veja lá que, de há uns tempos para cá, quando como, sinto um PLUNK no coração e fico assustadíssimo!

B ““ Um PLUNK? Refere-se a um PLUNK isolado ou a um PLUNK precedido de um SPLASH?

A ““ Bom… isso depende da comida. Por exemplo, se como um bom bife de vaca, costume sentir um PLUNK logo seguido de um FENK, por vezes intervalados por um SPLASH agudo.

B ““ Estou a ver… e esse PLUNK SPLASH FENK não varia com a bebida?

A ““ Claro que varia, doutor. Se bebo cerveja, o SPLASH é mais grave e o FENK é substituído por uma espécie de BLURP-ZINK.

B ““ Portanto, trata-se, nesse caso, de um PLUNK SPLASH BLURP-ZINK…

A ““ Exacto. Mas se acompanhar o bife com vinho, o PLUNK desaparece, mas, em compensação, surge um FINK-TANG que me aflige imenso, sobretudo porque, entre o SPLASH e o BLURP-ZINK interpõe-se um BLIP-BLIP irritante!

B ““ Curioso… muito curioso… já tenho visto doentes com PRUNG BLIP-BLURP SPLASH POING, mas o senhor é o primeiro que me surge com FINK-TANG SPLASH BLIP-BLIP BLURP-ZINK.

A ““ Então, doutor… o que me aconselha?

B ““ Só vejo uma solução: BANG!

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 24 abril 1982

Historinhas

* Era uma vez um homem com mau feitio.
Tinha tão mau feitio que os fatos lhe assentavam bem.
Um dia conheceu um alfaiate compreensivo.
Viveram felizes para sempre.

* Era outra vez um homem perante o qual todos ficavam de boca aberta.
Não que fosse muito belo ou terrivelmente feio.
Não que o seu porte fosse majestoso ou a sua figura ridícula.
Não que usasse roupas estranhas ou óculos na boca.
Simplesmente, perante ele, todos ficavam de boca aberta.
Era dentista.

* Era uma vez dois amigos muito amigos.
Certo dia, encontraram-se e fizeram uma combinação.
No dia seguinte, fizeram um saiote.
Um ano depois tinham uma excelente fábrica de lingerie.
* Estamos aqui para homenagear o nosso colega Rebelo.
Vamos homenageá-lo pela sua brilhante conduta durante todos estes anos ao serviço da nossa empresa.
Ele, que de tudo se privou, que se humilhou, que se deu de alma e coração í  tarefa que desempenhava.
Ele, Rebelo, empregado dedicado, merece a nossa homenagem.
Foi ontem, enquanto trabalhava com o frenesim habitual, que um ataque cardíaco levou o nosso colega para uma vida melhor.
Rebelo levantou-se da assistência, comovido e disse, com a voz embargada pela emoção:
– Parece que está equivocado, sr. Administrador… eu estou aqui…vivo…
Incomodado, o administrador deu-lhe um tiro certeiro e a sessão de homenagem prosseguiu, conforme o previsto.

* Era de noite.
No inverno.
Chovia.
O vento uivava de vez em quando.
Enfim, aqueles condimentos do costume, vocês sabem…
O Carlinhos não queria comer a sopa.
Também era habitual.
Nos dias em que o pai ia fazer serão, sentia-se mais livre e dava-se ao luxo de desobedecer í  mãe.
A mãe insistia. Ralhava. Prometia. Ameaçava. Que vinha o homem do saco e que o levava! O Carlinhos não acreditava. Que viesse!
E não é que veio mesmo?
Era o sr. João, carteiro da área. Pousou o saco da correspondência no hall de entrada e meteu-se no quarto com a mãe.
Quando o pai voltou mais cedo do serão e descarregou a pistola nos miolos dos adúlteros, o Carlinhos não percebeu.
Pois de foi ele que não quis comer a sopa…

  • in Pão com Manteiga no Contra-Ataque, 17 de abril 1982

Sansões e dalilas

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A União Europeia esteve reunida para decidir o sexto pacote de sanções a aplicar í  Rússia.

Já vão no sexto pacote, mas o essencial fica sempre de fora, isto é, deixar de importar petróleo e gás russos. Esta seria a sanção verdadeiramente importante, já que a União Europeia paga cerca de 260 milhões de euros por dia ao sr. Putin.

Mas alguns membros da EU não concordam com essa sanção, nomeadamente o sr. Orban, da Hungria.

Sendo assim, a União Europeia, não conseguindo impor sansões, fica-se pela dalilas.

“Um Certo Lucas”, de Julio Cortázar (1979)

Nos anos 70 do século passado, Julio Cortázar (1914-1984) foi um dos meus escritores de culto. Nesses anos, andava a descobrir os escritores sul-americanos e, de certo modo, a escrita mais ou menos surrealista. Cortázar foi um deles e devorei livros como “…Blow-up e Outras Histórias” (Edição Europa-América, lido em janeiro de 1978), “…Bestiário” (Publicações Dom Quixote, lido em novembro de 1978) e “…Todos os Fogos o Fogo” (Estampa, lido em junho de 1975).

Depois, Cortázar esfumou-se das edições portuguesas, ou assim me pareceu. Mais recentemente, a Cavalo de Ferro decidiu, e bem, publicar Cortázar, nomeadamente, “…A Volta ao Dia em 80 Mundos” e “…O Jogo do Mundo (Rayuela)” ““ e agora, este “…Um Certo Lucas”.

Trata-se de um pequeno livro com textos curtos; não se pode dizer que são contos, mas alguns são isso mesmo; outros são pequenas reflexões sobre tudo e sobre nada.

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Na página 29, Lucas está numa sala de concertos, enquanto um pianista toca muito mal Katchaturian. Lucas

“…í  procura de qualquer coisa no chão entre as cadeiras da plateia e apalpando tudo em seu redor.

– O senhor perdeu alguma coisa? ““ perguntou a senhoras entre cujos tornozelos proliferavam os dedos de Lucas.

– A música, minha senhora.”

Mais í  frente, Lucas medita sobre a ecologia e diz:

“…Nesta época de regresso descontrolado e turístico í  natureza, em que os cidadãos olham para a vida no campo como Rousseau olhava para o bom selvagem, solidarizo-me mais do que nunca com: a) Max Jacob que, em resposta a um convite para passar um fim-de-semana no campo, disse meio estupefacto meio assustado «No campo, nesse lugar onde os frangos passeiam crus?»”

Lucas sente pudor sempre que, numa qualquer reunião com amigos, tem vontade de ir í  casa de banho.

“…É inútil a multiplicação de silenciadores, como envolver a zona das coxas em todas as toalhas ao seu alcance e até mesmo as toalhas de banho dos donos da casa; praticamente sempre, depois daquilo que poderia ter sido uma agradável transferência, o peido final irrompe tumultuoso.

(…) isto é muito diferente, pensa Lucas, da simplicidade das crianças que interrompem a melhor das reuniões anunciando: Mamã, quero fazer cocó. Abençoado, pensa Lucas sem seguida, o peta anónimo que compí´s aquela quadra na qual se proclama que não há prazer mais requintado/do que um cagar vagaroso/ nem prazer mais delicado/ que depois de ter cagado.”

Aconselho.

“As Maravilhas”, de Elena Midel (2020)

Elena Medel  (Córdoba, Espanha, 1985) é autora de vários livros de poesia, mas este pequeno romance, o seu primeiro, foi considerado o melhor livro de 2020, tendo ganho o Prémio Francisco Umbral.

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É um livro triste, cujos capítulos saltitam entre 2018, 1969, 1998, 1975. Conta-nos a história de Maria que engravidou muito jovem, tendo deixado a filha Carmen para ser criada pela sua mãe e pelo tio Chico, e partiu para Madrid, onde levou uma vida difícil de empregada da limpeza.

Por sua vez, Carmen cresceu e criou a sua própria família; teve duas filhas, sendo que a mais velha, Alicia, abandonou a família.

No centro destas histórias está a solidão e a falta de dinheiro, os direitos das mulheres e a dificuldade em ter uma vida independente e livre para quem vive o dia-a-dia a contar os tostões.

Paralelamente, vamos tomando contacto com alguns momentos importantes da História mais recente de Espanha, desde o funeral de Franco, í  maioria absoluta de Felipe Gonzalez.

Uma pequena novela interessante.

“Tomás Nevinson”, de Javier Marías (2021)

Suspeito que, depois de escrever, ou enquanto escrevia, “…Berta Isla“, Javier Marías achou que tinha em mãos uma muito boa ideia e que podia e devia explorá-la.

Berta Isla era casada com Tomás Nevinson, um homem com dupla nacionalidade, inglês e espanhol, e versado em muitas línguas e capaz de fazer diversos sotaques e tons de voz.

Cedo foi recrutado para os serviços secretos britânicos e nesse primeiro livro, embora saibamos alguns episódios da sua vida de espião, sabemos, sobretudo, como a sua mulher suporta as suas longas ausências e até a notícia da sua morte que, afinal, era claramente exagerada.

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Neste volume de 650 páginas, Marías conta-nos o regresso de Nevinson do mundo dos mortos, a sua reintegração na embaixada de Londres em Madrid e, finalmente, descreve-nos, em pormenor, a sua nova missão.

Javier Marías é abundante em descrições dos pensamentos e das angústias das personagens; por exemplo, demora cerca de cem páginas para descrever o encontro de Nevinson com o seu chefe, altura em que vai conhecer a sua nova missão.

Esta última missão de Tomás Nevinson consiste em tentar descobrir qual de três mulheres, que vivem numa determinada cidade, teve um passado terrorista, ligado ao IRA e í  ETA ““ e o livro é muito crítico em relação a estas duas organizações terroristas, descrevendo os seus atentados nos anos 90 do século 20.

Travestido em professor de inglês, Nevinson, com outro nome, claro, vai aproximar-se das três mulheres, tentando perceber qual delas teve um passado de terrorista.

E, finalmente, quando se descobrir qual delas é a tal, será que Nevinson é capaz de a matar?

Curiosa esta frase, colocada na boca do protagonista e muito actual: “E esse conceito moderno de crimes de guerra é ridículo, é estúpido, porque a guerra se compõe sobretudo de crimes, em todas as frentes, e do primeiro ao último dia”.

Recomendo.

Antigamente também havia super-heróis

Os super-heróis não são uma criação recente, como se poderia supor. Já na Antiguidade, muitos homens e mulheres se distinguiram pelos seus feitos, merecendo o epíteto de heróis. No entanto, se tivessem vivido no século 20 e vendessem as suas histórias a uma qualquer empresa de banda desenhada, certamente que seriam tão super-heróis como o homem aranha ou o super-homem.

Façamos uma rápida recapitulação dos grandes super-heróis de antigamente, sem preocupações cornológicas.

Todos se recordam de Spartakus que, com uma fisgas de ir aos passarinhos furou o olho do gigante Adamastor num combate que se tornou célebre em todo o Egipto. Ou Alexandre o Grande que, í  frente de um exército montado em elefantes, atravessou os Himalaias, derrotando os Persas em Ormuz, sem lugar para dúvidas nem lugar para mortos, que foram aos milhares. Todos se recordam também do pequeno David, possuidor de uma farta cabeleira que, graças í  sua força bruta, impediu que o Circo de Roma se desmoronasse durante o terramoto de 1755. Foi também nessa data que Joana D”™ Arc se tornou famosa ao transformar o pão que levava aos pobrezinhos esfomeados, em rosas perfumadas, ao ser interpelada por Lord Nelson que acabava de chegar da batalha de Aljubarrota, na qual, í  frente de um pequeno exército, derrotara as hordas dos temíveis Hunos, que pretendiam conquistar o Peloponeso.

Foi a histórica batalha de La Lys, em que também se distinguiu Guilherme Tell que, com um único tiro de pistola, acertou em cheio na maçã de Adão de Gengis Khan, pondo fim ao reinado de terror daquele impiedoso imperador jugoslavo.

Não menos famosa foi Deuladeu Martins, uma super-heroína lusa que, munida de uma pá de padeiro, esmagou o crânio do gigante Golias ““ essa fera hedionda, possuidor de um único olho, situado a meia distância.

Citemos ainda Bufalo Bill, espadachim exímio que, num duelo nunca visto, porque era noite, e estava escuro, derrotou Napoleão na grande batalha de Trafalgar, quando os ingleses, fartos e cansados da Guerra dos Cem Anos procuravam, a todo o custo, submeter os povos das Antilhas britânicas.

Outro grande nome foi, sem dúvida, Nabocudonosor, mas esse não foi herói.

Herói foi, no entanto, Robin dos Bosques, cavaleiro da Transilvânia que, durante a noite, se transformava num insaciável vampiro, conhecido pelo nome de Conde de Sabrosa, que aterrorizava toda a região limítrofe do seu castelo. Ou esse outro herói, o dr. Frankenstein que, graças a um produto químico que ele próprio fabricava no seu laboratório secreto, se transformava em dr. Jeckyl. Os americanos lembram-se bem dele e da sua actuação decisiva para a independência dos Estados Unidos,

 E o grande Ulisses que, na batalha de Trancoso, preferiu ser decepado a deixar a bandeira nacional nas mãos dos austro-húngaros, acabando por morrer com a bandeira nos dentes.

E os nomes dos super-heróis de antigamente poderiam seguir-se. Seria uma lista interminável.

El Cid, o campeador, herói britânico, que preferiu juntar-se aos povos árabes e lutar pela sua independência, nas ardentes areias do deserto paquistanês.

Robinson Crusoe que, com um golpe de espada trespassou a enorme baleia Moby Dick.

Bem-Hur que, mercê da sua super-força, afastou as águas do Mar Vermelho para deixar passar os Curdos, que fugiam dos agressores gauleses.

Lawrence da Arábia, que ficou na História como desbravador da selva africana, enfrentando feras, antropófagos e a malária, acabando por morrer í s mãos de King Kong, terrível chefe etíope que, na altura, dominava todas as tribos a norte do Tibete.

Ou Sir Lancelot e D”™Artagnan, dois dos famosos cavaleiros da Távola Redonda, que se distinguiram na busca da pedra filosofal, derrotando dragões e monstros fantásticos, como o de Loch Ness e o da Lagoa de Melides.

Que nos desculpem as memórias dos que não foram aqui citados, mas para todos os super-heróis de antigamente aqui fica a nossa homenagem e o nosso muito obrigado.

  • in Pão com Manteiga, programa da Rádio Comercial – emitido em 13 de setembro de 1981