Lidei algum tempo com o Raul Solnado, nos anos 80 do século passado. Escrevi alguns textos, que ele depois interpretava, dando-lhes, muitas vezes, a graça que eles não tinham.
Do pouco tempo que passámos juntos, recordo uma pessoa afável e com uma inteligência aguçada.
Recordo, também, o nervosismo que senti quando me convidou para escrever, juntamente com ele e com o Mário Zambujal, o “Lá em Casa Tudo Bem”. Percebi que aquela não era a minha guerra: uma coisa era escrever uns epigramas e um textos despreocupados para o Pão Comanteiga, outra era escrever uma série de televisão para o Raul Solnado. Acabei por desistir, depois de 12 semanas de grande ansiedade e 12 episódios escritos e re-escritos, com muita ajuda do Zambujal e do Solnado.
Mas foi uma honra ter colaborado com o Solnado que, apesar da diferença de idades e de estatuto, sempre me tratou como um igual.
Recordo um dos textos que escrevi para ele:
“Venho aqui falar em nome dos pequenos e médios ladrões, larápios, carteiristas e ofícios correlativos.
Bom… para que não haja confusões, não sou o porta-voz dessas profissões que são, sem dúvida, as mais antigas do mundo… mas li no jornal uma notícia que me deixou revoltado.
É que a crise ataca todos e não escapa ninguém!
Já não basta um tipo ter que palmar quatro ou cinco carteiras no Metro, pondo em risco a sua integridade física. Depois, chega a casa e as carteiras só têm documentos e fotografias da família – nem uma nota para amostra!
Andamos todos tesos!
E os pequenos roubos já não dão lucro! É um risco que não vale a pena correr!
Hoje em dia, ou se rouba a sério, assim uma coisa em grande, com estilo, ou mais vale arranjar um emprego, nem que seja com contrato a prazo numa empresa em situação económica difícil.
E depois, ainda por cima, como um azar nunca vem só, andaram a colar aqueles cartazes nas estações do Metro, que dizem “cuidado com os carteiristas”!
E as pessoas estão sempre a pau, com a mãozinha a segurar a carteira.
Depois vem um carteirista mais inexperiente, tanta palmar qualquer coisa e pimba!… é apanhado com a boca na botija!
A polícia está farta, já não fecha os olhos a nada e lá vai o larápio para a prisão!
Para a prisão?!… Mas qual prisão?!…
É aqui que entra a notícia: segundo a Direcção Geral dos Serviços Prisionais, as 48 cadeias portuguesas estão a abarrotar!
6 478 presos! Não cabe nem mais um ! Lotação esgotada!
É uma situação que não se registava desde 1967 – há 17 anos, portanto!
Estão a ver isto?!
Se um larápio qualquer for apanhado pela polícia, fica preso onde?…
As escolas são poucas para os alunos;
Os hospitais não chegam para os doentes;
Os edifícios públicos são pequenos para as repartições.
Isto não pode continuar assim!…
Se esta noite mesmo, um polícia de giro capturar algum rato de automóveis, não tem outro remédio senão levá-lo par casa, dar-lhe jantar e depois fechá-lo na despensa, í espera que haja vaga em Alcoentre.
Sinceramente, só vejo uma solução: enquanto não se conseguirem mais prisões, levem os presos para os museus.
Seria a única maneira de os nossos museus deixarem de estar í s moscas!
Boa noite e façam o favor de ser felizes.”
- esta crónica foi para o ar no programa televisivo “Fim de semana”, a 4/2/1984. De Dezembro de 1983 a Junho de 1984, escrevi crónicas que o Raul Solnado interpretava, melhorando-as com as suas “buchas”.
Colaborei, também com o Raul Solnado na escrita de crónicas semanais no Programa da Manhã da Rádio Comercial, entre Outubro de 1984 e Março de 1985.
Finalmente, fui co-autor, com ele e com o Mário Zambujal, dos primeiros 12 episódios da primeira sitcom portuguesa, “Lá em Casa Tudo Bem”.
Foi o Solnado quem me propí´s para membro da Sociedade Portuguesa de Autores, em 1984.
Só conheci o Raul Solnado na televisão, no cinema e uma vez, no teatro.
Quando eu era jovem, chorava até í s lágrimas com os monólogos que o tornaram conhecido e com a desajeitada maneira de cantar os “malmequeres de Santarém”!
Hoje, ao ve-lo partir, e recordando as participações dele em programas de televisão e mesmo em alguns debates, sinto que a sua maneira de encarar a vida é, de facto, pouco vulgar.
Ele conseguia ter sempre um comentário jocoso, sem ofender e crítico, sem desmoralizar.
Como ouvi í sua companheira, todos os dias ele se esforçava por levar uma ideia nova ou uma palavra diferente.
Criativos destes, procuram-se!
O texto está espantosamente actual. Impressionou-me em particular aquela de só valer a pena roubar a sério e em estilo. Actual.