“Visitar Amigos e Outros Contos”, de Luísa Costa Gomes (2024)

Luísa Costa Gomes gosta de nos contar histórias. Vencedora do Grande Prémio do Conto da Sociedade Portuguesa de Escritores tem já, no seu currículo, alguns livros de contos.

Depois de lermos “Setembro e Outros Contos” (2007) e “Afastar-se e Outros Contos” (2021), detivemo-nos, por estes dias, com este “Visitar Amigos”, editado já este ano.

São 13 contos, dos quais talvez destaque dois.

No conto “O Velho Senhor”, lemos este parágrafo:

“A mãe morrera num acesso de extrema discrição. Retirar-se por partes para um silêncio todo feito de modéstia, contíguo a uma etapa em que a sua única frase tinha sido, não me lembro, não sei, já não sei nada.”

O outro chama-se “Património” e começa assim:

“Na primavera dos seus quarenta e um anos, saindo de um duche frio, Félix teve a consciência de que nunca por nunca viria a ser rico. A nitidez, quase de alucinação, pode ter vindo do choque térmico, ou da fome danada com que sempre acordava. Secando-se depressa calculou que o esperavam anos e anos de contas e acertos, dívidas pequenas que iam transitando de mês a mês, mudando, na melhor das hipóteses, a intensidade com que as sentia”.

Mas há mais, muito mais…

A história “Catilinária”, começa assim:

“Não encontro dono de gato que o seja sem relutância. É comum julgar-se vítima de um acaso que lhe trouxe à porta, miando pela vida, uma exigência a que ele, por fraqueza, não resiste. Diz com ironia que é mais o gato que o tem a ele do que ele ao gato. Não convém argumentar”.

Muito bom…

“Antologia do Conto Erótico Brasileiro” (2024)

Eliane Robert Moraes organizou esta antologia, que vai desde contos escritos por Machado de Assis até a autores dos nossos dias, mais precisamente, desde 1886 a 2003.

Para nós foi uma completa desilusão. A culpa deve ser da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, coligida pela Natália Correia, que tanto prazer nos deu.

Esta Antologia brasileira tem muito pouco de erótica e os textos são muito pouco interessantes.

Para além do texto ordinário e asqueroso de Reinaldo Moraes e da sua “cinta caralha”, apenas vale a pena salientar o conto de Ignácio Loyola Brandão, “Obscenidades para uma dona de casa”, em que aprendemos alguns sinónimos de pénis que desconhecíamos” (“Repete essa palavra que não suo. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba”).

O resto, é um deserto de erotismo.

“Os Nossos Desconhecidos”, de Lydia Davis (2023)

Desta autora norte-americana (Massachussets, 1947), já tínhamos lido “Contos Completos”, mas esta nova colectânea é mais, digamos, radical.

Que dizer deste conto, intitulado “Momento Matrimonial de Irritação – Coco”:

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“Após muitos dias, ele disse à mulher:

«Podias fazer alguma coisa com este coco?»

A maioria destes textos são assim, curtos, simples frases ouvidas ao acaso. Outro exemplo, intitulado “Solteirona Melancólica”:

“O que é aquilo,

Tocando-lhe tão delicadamente durante o banho

Ah,

Um marcador de livros a flutuar…”

Na contracapa, diz-se que este livro é “gracioso, engraçado, estranho, surpreendente, improvável, persuasivo e comovedor”.

Estou de acordo com a maioria dos adjectivos.

“Colchão de Pedra”, de Margaret Atwood (2014)

A idade não parece afectar a imaginação de Margaret Atwood. Actualmente com 83 anos, a escritora canadiana continua bem viva.

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Esta colectânea de contos foi publicada originalmente há nove anos, e saiu agora em Portugal, pela Bertrand.

São nove fábulas de humor negro. É a própria autora que lhe chama fábulas, embora os personagens sejam humanos, e não animais.

Na história que dá nome ao livro, uma turista, a bordo de um cruzeiro no írtico, engendra um assassínio perfeito, usando um estromatólito.

Na última fábula, idosos de um lar enfrentam uma multidão de manifestantes jovens que querem acabar com os idosos que não servem para nada, a não ser, para consumirem os parcos recursos do planeta.

Vale a pena ler.

“Pequenas Coisas Como Estas”, de Claire Keegan (2021)

Claire Keegan (Wicklow, Irlanda, 1968), foi finalista do Booker Prize de 2022 com este livro.

Depois de ter lido um calhamaço com mais de 600 páginas, despachei este pequeno livro de 80 páginas numa penada.

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Por vezes, não é preciso escrever muito para se conseguir o que se pretende. O que esta escritora irlandesa quis foi falar-nos, de um modo simples, de mais uma tragédia relacionada com a igreja católica.

No final do livro, uma nota dá-nos conta das chamadas Lavandarias de Madalena, instituições ligadas a conventos que albergavam raparigas “…pecadoras”, aquelas que engravidavam depois de terem sido violadas, ou depois de uma relação ocasional, e que eram solteiras. Diz a nota que essas mulheres eram “…escondidas, aprisionadas e obrigadas a trabalhar nessas instituições”. Muitos dos registos dessas lavandarias foram destruídos e não se sabe ao certo quantas mulheres albergaram. Há quem fale em 10 mil, há quem diga que foram 30 mil. Muitas dessas mulheres perderam os seus bebés, muitas perderam as suas vidas. Um relatório recente da Comissão de Investigação dos Lares para Mães Solteiras concluiu que 9 mil crianças morreram em apenas 18 das instituições investigadas. Em 2014, a investigadora Catherine Corless descobriu que 796 bebés morreram entre 1925 e 1961 no lar de Tuam, no condado de Galway.

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É sobre isto que trata esta pequena, mas eloquente novela.

Bill Furlong vendia carvão, antracite e lenha. Vivia numa pequena vila irlandesa, com a sua mulher e as suas cinco filhas. Um dia, ao entregar carvão no convento local, deparou-se com uma rapariga presa no reservatório de carvão.

Depois de muito matutar, Bill Furlong tomou uma decisão em relação í quela rapariga. O que fez, não foi nada de especial, mas são Pequenas Coisas Como Estas que podem fazer a diferença.

Vale a pena ler.

“Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar (1962)

Quando, em 1975, comprei “…Todos os Fogos o Fogo”, de Cortázar, este livrinho que agora a Cavalo de Ferro decidiu reeditar, escapou-me.

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O livro está dividido em quatro partes: a primeira parte chama-se “…Manual de Instruções” e inclui, por exemplo, Instruções para Chorar, Instruções para Cantar, Instruções para matar formigas em Roma e outras.

A segunda parte tem o título “…Ocupações Particulares”, onde Cortázar falar da sua enorme família e de como ela se comporta para caçar jaguares ou em velórios, para além de outras ocupações particulares.

A terceira parte, chamada, “…Material Plástico”, reúne pequenos contos, como este, intitulado “…Progresso e Retrocesso”:

“…Inventaram um vidro que deixava passar as moscas. A mosca vinha, empurrava um pouco com a cabeça, e pof!, já estava do outro lado.

Alegria enorme da mosca.

Foi tudo destruído por um sábio húngaro ao descobrir que a mosca podia entrar mas não sair, ou vice-versa, por causa de um defeito qualquer na flexibilidade das fibras desse vidro, que era muito fibroso. Em seguida inventaram o cata-moscas com um torrão de açúcar no interior, e muitas moscas morriam desesperadas. Assim acabou qualquer hipótese de confraternização com estes animais dignos de melhor sorte.”

Finalmente, a quarta parte reúne as “…Histórias de Cronópios e de Famas”. São seres imaginários e, juntamente com os esperanças, formam um conjunto surrealista inventado por Cortázar. Por exemplo, “…Conservação das Recordações”:

“…Para conservarem as suas recordações, os famas embalsamam-nas da seguinte forma: depois de fixada a recordação com todos os pormenores, envolvem-na dos pés í  cabeça num lençol preto e encostam-na de pé contra a parede da sala, com um pequeno cartão que diz: «Excursão a Quilmes» ou «Frank Sinatra».

Os cronópios, em contrapartida, esses seres desarrumados e mornos, deixam as recordações í  solta pela casa, a gritar alegremente, andam entre elas e quando uma passa a correr acariciam-na suavemente e dizem: «não te magoes» ou «cuidado com os degraus». (…)” Não há dúvida que é um livro diferente e penso que já ninguém escreve assim… e é pena…

Outros livros de Cortázar: Um Certo Lucas; O Jogo do Mundo;

“Um Certo Lucas”, de Julio Cortázar (1979)

Nos anos 70 do século passado, Julio Cortázar (1914-1984) foi um dos meus escritores de culto. Nesses anos, andava a descobrir os escritores sul-americanos e, de certo modo, a escrita mais ou menos surrealista. Cortázar foi um deles e devorei livros como “…Blow-up e Outras Histórias” (Edição Europa-América, lido em janeiro de 1978), “…Bestiário” (Publicações Dom Quixote, lido em novembro de 1978) e “…Todos os Fogos o Fogo” (Estampa, lido em junho de 1975).

Depois, Cortázar esfumou-se das edições portuguesas, ou assim me pareceu. Mais recentemente, a Cavalo de Ferro decidiu, e bem, publicar Cortázar, nomeadamente, “…A Volta ao Dia em 80 Mundos” e “…O Jogo do Mundo (Rayuela)” ““ e agora, este “…Um Certo Lucas”.

Trata-se de um pequeno livro com textos curtos; não se pode dizer que são contos, mas alguns são isso mesmo; outros são pequenas reflexões sobre tudo e sobre nada.

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Na página 29, Lucas está numa sala de concertos, enquanto um pianista toca muito mal Katchaturian. Lucas

“…í  procura de qualquer coisa no chão entre as cadeiras da plateia e apalpando tudo em seu redor.

– O senhor perdeu alguma coisa? ““ perguntou a senhoras entre cujos tornozelos proliferavam os dedos de Lucas.

– A música, minha senhora.”

Mais í  frente, Lucas medita sobre a ecologia e diz:

“…Nesta época de regresso descontrolado e turístico í  natureza, em que os cidadãos olham para a vida no campo como Rousseau olhava para o bom selvagem, solidarizo-me mais do que nunca com: a) Max Jacob que, em resposta a um convite para passar um fim-de-semana no campo, disse meio estupefacto meio assustado «No campo, nesse lugar onde os frangos passeiam crus?»”

Lucas sente pudor sempre que, numa qualquer reunião com amigos, tem vontade de ir í  casa de banho.

“…É inútil a multiplicação de silenciadores, como envolver a zona das coxas em todas as toalhas ao seu alcance e até mesmo as toalhas de banho dos donos da casa; praticamente sempre, depois daquilo que poderia ter sido uma agradável transferência, o peido final irrompe tumultuoso.

(…) isto é muito diferente, pensa Lucas, da simplicidade das crianças que interrompem a melhor das reuniões anunciando: Mamã, quero fazer cocó. Abençoado, pensa Lucas sem seguida, o peta anónimo que compí´s aquela quadra na qual se proclama que não há prazer mais requintado/do que um cagar vagaroso/ nem prazer mais delicado/ que depois de ter cagado.”

Aconselho.

Surpresas da Pesca

Não tinha dado nada.

Preparava-me para voltar para casa, mas resolvi atirar a linha uma última vez.

Senti um esticão bem forte. Segurei firme e comecei a enrolar o carreto com cuidado, devagar. E não é que vejo vir um nazi no anzol! Um nazi bem bom, dos grandes! Fiquei admiradíssimo, tinham-me que já não havia. Tratei de o tirar com o auxílio do camaroeiro e fui verificar imediatamente. Era mesmo. General e SS, calculem! Com boné, medalhas, suástica e tudo! Vá lá uma pessoa acreditar no que lhe dizem! Meti-o logo numa lata, enquanto estava fresco, e despachei-o para a Peixaria Nacional. Lá devem saber o que fazer com ele. A mim, francamente, não me serve para nada.

  • in “Contos do Gin Tonic”, Mário-Henrique Leiria, 1973

“Chamadas Telefónicas”, de Roberto Bolaí±o (1997)

Bolaí±o (Santiago do Chile, 1953-Barcelona, 2003) escreveu febrilmente, como dizem as suas biografias e a maior parte da sua obra viu a luz do dia após a sua morte.

Esta colectânea de contos, no entanto, foi publicada em vida, em 1997 e é mais uma prova de que Bolaí±o era um grande contador de histórias.

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O livro está dividido em três partes: Chamadas Telefónicas e Detectives, cada uma com cinco contos e A Vida de Anne Moore, com quatro.

O conto que encerre o livro conta-nos a história dessa tal Anne Moore e podia ser um argumento para um filme, ou um romance, ou uma série de contos, tal o número de acontecimentos que marcaram a vida de Anne. Sobretudo esta história fez-me lembrar alguns livros do Henry Miller. Aconselho.

Outras obras de Roberto Bola^no: Os Detectives Selvagens; 2666

“Crimes Exemplares”, de Max Aub (1956/2001)

Max Aub nasceu em França em 1903, mas mudou-se para Valência aos 11 anos, adquirindo a nacionalidade espanhola. Quando Franco subiu ao poder, exilou-se no México, onde morreu em 1971.

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Em 1956 publicou este Crimes Exemplares, um livro que colecciona confissões de assassinos, com um toque de humor negro.

Em 1981, o livro ganhou o Grande Prémio do Humor Negro, em Paris.

Em 2001, em Espanha, foi publicada esta versão do livro, com mais de 30 ilustrações.

A edição portuguesa, da Antígona, saiu no ano passado. É um livro muito bonito, de capa dura, impresso em papel offset de 140 gramas.

Por vezes, as histórias, são tão curtas que apenas têm uma frase, como esta:

– Matei-a porque me doía o estí´mago

Ou esta:

– Matei-a porque lhe doía o estí´mago

Outras, têm meia dúzia de linhas:

Terminara o meu trabalho, não julguem que foi fácil: oito dias para passar a limpo aquele projecto. No dia seguinte de manhã seriam os exames semestrais. E aquele cretino chega, para encher a sua caneta no meu frasco de tinta-da-china, e deixa-o cair em cima do meu projecto… Foi instintivo, espetei-lhe o compasso no estí´mago.

Ou ainda esta:

Matei-o porque me doía a cabeça. E ele veio falar-me, sem descanso, de coisas para que eu me estava absolutamente nas tintas. É a verdade, embora elas talvez me tivessem podido interessar. Antes de o fazer, olhei, ostensivamente, seis vezes para o relógio; ele não ligou nenhuma. Creio que é uma atenuante que deve ser seriamente levada em conta.

Um livro diferente e, repito, muito bonito.