“Belos Cavalos”, de Cormac McCarthy (1992)

cormac-mccarthyConheci Cormac McCarthy com A Estrada (2006) e fiquei logo adepto da sua escrita.

Logo a seguir, o nome deste escritor norte-americano foi muito badalado graças ao filme dos irmãos Coen Este País Não É Para Velhos.

Li o livro primeiro e confesso que, tanto o livro como o filme me desiludiram um pouco. Já escrevi porquê.

Posteriormente, li Filho de Deus (1973) e Suttree (1979) e o quadro começou a compor-se.

Cormac McCarhty nasceu em 1933, mas vive há muitos anos no Texas, em Santa Fé e os seus livros são, no fundo, livros de cowboys.

Belos CavalosEste Belos Cavalos (All The Pretty Horses) é claramente um western, embora a acção decorra na segunda metade do século 20.

O herói é John Grady Cole, um jovem adolescente que ainda não completou 17 anos mas tem a maturidade de um homem feito, graças í  vida dura que leva.

John Grady passa praticamente todo o livro em cima de um cavalo, excepto durante o período em que está preso numa miserável prisão mexicana.

Grady e um amigo decidem deixar a sua terra natal e cavalgar até ao México, onde arranjam trabalho como domadores de cavalos selvagens. Depois, tudo lhes acontece.

No final, qual poor and lonesome cowboy, John Grady despede-se do amigo e vai-se embora, em direcção ao horizonte.

«Onde fica a tua terra? perguntou

Não sei, disse John Grady. Não sei onde fica. Não sei o que acontece í s terras.

Rawlins não respondeu.

Até í  vista, parceiro, despediu-se John Grady.

Seja, até í  vista.

Ficou ali de pé, a segurar o cavalo enquanto o cavaleiro dava meia volta e viu-o trotar para longe e mergulhar aos poucos na linha do horizonte.»

Gostei.

“Filho de Deus”, de Cormac McCarthy (1973)

Conheci este autor norte-americano através do surpreendente A Estrada (2006), um dos livros que mais me marcou nos últimos anos.

cormac mccarthyLogo no ano seguinte, em 2007, Cormac McCarthy foi muito falado a propósito do filme dos irmãos Coen, No Country for Old Men, baseado no seu livro homónimo, Este País Não é Para Velhos (2005).

Fui em busca de mais livros seus.

McCarthy, vencedor do National Book Award e do Pullitzer, nasceu em 1933, em Rhode Island, mas vive há muitos anos no Texas e alguns dos seus livros têm esta zona dos States como pano de fundo.

É o caso de Suttree e de Child of God, este último baseado em factos verídicos.

O livro conta-nos a história de Lester Ballard, um solitário camponês que, afastado das suas terras, e sofrendo de graves perturbações psicóticas, inicia uma série de crimes hediondos, incluindo, por exemplo, profanação de cadáveres.

Um pequeno excerto:

filho de deus«Você não é da polícia, disse o rapaz.

Isso é cá comigo, disse Ballard. O que é que vocês os dois estão a fazer aqui?

Estávamos só aqui sentados, disse a rapariga. Tinha preso ao ombro um enfeite de folhagens de gaze com duas rosas de crepe púrpura.

Estavam-se a preparar para foder, não estavam? Observou a cara deles.

É melhor ter cuidado com a língua, disse o rapaz.

Porquê? És tu que me vais obrigar?

Deita a espingarda e vais ver.

Se estás em pulgas, salta cá para fora, disse Ballard.

O rapaz curvou-se sobre o painel de instrumentos e girou a chave na ignição, fazendo o motor soltar alguns roncos.

Larga isso da mão, disse Ballard.

O motor teimava em não pegar. O rapaz levantara o braço como se fosse dar uma pancada no cano da espingarda quando Ballard lhe deu um tiro no pescoço. Ele caiu de lado sobre o colo da rapariga. Ela juntou as mãos e pí´-las debaixo do queixo. Oh não, disse.

Ballard puxou a alavanca da arma e meteu outro cartucho na câmara. Eu avisei esse estúpido, disse ele. Ou não avisei? Não sei porque é que as pessoas se gostam de fazer surdas.»

Este é o estilo de McCarthy, sincopado, frases curtas, discurso directo e indirecto misturados, o que dá um ritmo muito especial í  narrativa.

Gosto.

“Suttree”, de Cormac McCarthy

—Cornelius Suttree habita numa casa flutuante, no rio Tennessee, perto de Knoxville. É ele o protagonista deste romance, datado de 1979, cheio de personagens estranhos, marginais, excêntricos, criminosos e pobres que, no entanto, mantêm um certo código de conduta, onde não falta a solidariedade, apesar do individualismo feroz de todos eles.

É um romance denso e foi difícil chegar ao fim. Ao contrário do despojamento, por exemplo, da “A Estrada“, este “Suttree” tem passagens muito complexas.

Um exemplo, entre muitos:

«Coisas antigas estranhamente novas, a cidade vista com um olhar clarividente. A repetição das imagens da própria urbe, qual enxurrada, devastara-a, e ele via agora, erectas e sem atavios sobre a planície aluvial morta, formas mais sinistras, a cidade das suas memórias tão fantasmagórica como ele mesmo e a sua pessoa reduzida a uma silhueta entre as ruínas, esgravatando artefactos ressequidos como um obscuro paleoantropóide no meio das ossadas de acampamentos arrasados onde não resta ninguém para dar voz ao que sucedeu.» (pág. 260)

Não deve ter sido fácil traduzir este livro. O tradutor, Paulo Faria, conta, no seu Prefácio, que visitou Knoxville, para melhor se inteirar do ambiente onde “Suttree” se desenrola e diz que a descrição que Mccarthy faz desta cidade já foi comparada í  Dublin de James Joyce, em “Ulysses” ou a São Petersburgo de Dostoiévski, em “Crime e Castigo”.

Outro exemplo:

«Suttree ouviu risos e sons de festa rija. Com a clarividência de um louco, viu a natureza perecível da sua carne. Meretrizes com seus indumentos desgraciosos chamavam-no de pequenos alpendres na noite, vestidas de andrajos berrantes, qual panóplia de bonecas extraídas de um sonho obsceno. E pelos estreitos caminhos, por entre a chuva e os relâmpagos, veio uma trupe de esquálidos foliões, carregando aos ombros, sobre varas, um dragão alado numa jaula e ainda outras feras alquímicas, quimeras e cacodemónios trespassados por chuços de caçar javalis, e uma farmacopeia de condimentos infernais a adornar um tabuleiro transportado por duendes, com um gnomo encanecido como porta-estandarte, a gritar imprecações torpes pelo orifício que lhe fazia as vezes de boca, e um flautista flauteando uma flauta de osso de borrelho e trazendo í  cinta um frasquinho de vidro contendo um qualquer combustível fumegante que chocalhava lá dentro, viscoso como azougue.» (pág. 299 e 300)

E a linguagem é sempre assim, lírica e rebuscada, mesmo para descrever as cenas mais prosaicas:

«De cabelo negro, as pernas raiadas de fuligem, coxas rijas sob o vestido fino, movia-se com uma espécie de obscenidade lírica. Faltava-lhe um dente da frente e, quando sorria, enfiava a ponta da língua no hiato. Quando o bar fechou, rolaram pelas ruas no banco traseiro de um táxi e ele afagou-lhe um seio na palma da mão e ela enfiou-lhe a língua na boca. Ele afastou-lhe as coxas húmidas e nuas com a mão, o calor molhado a empastar tudo o que ali sentia sob o dedo, na comissura forrada de seda.» (pág. 260)

McCarhy é natural de Knosville e este deve ser o romance mais autobiográfico do autor de “Este País Não é Para Velhos“.

“Este País Não É Para Velhos”, de Cormac McCarthy

estepais.jpgDecidi ler o livro antes de ver o filme. Quando vejo o filme primeiro, fico com pouca vontade de ler o livro. Regra geral.

Gostei muito do outro livro que li de McCarthy, “A Estrada”. Considerei-o, mesmo, um dos melhores livros dos últimos tempos. Por isso, fiquei um pouco desiludido com este “No Country For Old Men”, publicado em 2005.

É um livro árido, com uma história muito simples, violência a rodos e um xerife que gosta de filosofar. Há páginas inteiras de diálogos, aparentemente desnecessários, fazendo lembrar os diálogos de “Pulp Fiction”

Exemplo:

“Arrombas cofres, é?
Se eu arrombo cofres?
Isso.
Como é que essa ideia te passou pela cabeça?
Não sei. És um arrombador de cofres ou não?
Não.
Bom, alguma coisa tens de ser. Certo?
Toda a gente é alguma coisa.
Alguma vez estiveste na Califórnia?
Sim. Já estive na Califórnia. Tenho um irmão a viver lá.
E ele gosta daquilo?
Não sei. Vive lá.
Mas tu não eras capaz de lá viver, pois não?
Não.
Achas que é para lá que eu devo ir?”

E assim sucessivamente. Gosto destes diálogos mas, í s tantas, farta um bocado. Outra técnica que McCarthy usa e abusa, neste livro, é a da utilização da conjunção copulativa.

Exemplo:

“Pí´s a mão em concha e varreu o troco de cima do balcão para a palma da outra mão e guardou as moedas no bolso e deu meia volta e dirigiu-se para a porta.”

Até parece que McCarthy estava já a pensar no argumento para um filme…