“A Trombeta do Anjo Vingador”, de Dalton Trevisan (1977)

E com mais este livrinho de contos, acho que esgotei a criação de Dalton Trevisan, pelo menos a publicada em Portugal.

A Trombeta do Anjo Vingador é mais uma colecção de contos curtos que versam sempre sobre a mesma temática: ciúme, engano, separação, ódio, amor, grandes bebedeiras, surras na mulher, vidas mais ou menos desgracidas, como o autor lhes chama.

Diz-se que os escritores estão sempre a escrever o mesmo livro e com Tevisam isso é evidente. Os livrinhos têm diferentes títulos, mas as historinhas são todas idênticas e podíamos perfeitamente trocar os títulos, que ninguém daria por isso, a não ser o autor. Talvez… (O Vampiro de Curitiba, Cemitério de Elefantes, A Polaquinha, Novelas Nada Exemplares, Guerra Conjugal).

trombetaObsessões do escritor: elefantes de faiança como decoração pirosa, vidro moído que se ingere para partir deste mundo cruel, cheiro a cadela molhada, o João, a Maria, os inhos e as inhas, a perfídia.

«Abandonada pelo sedutor, ingeriu quinze comprimidos de aspirina. Não morreu, agora com tossinha nervosa que disfarça a dispepsia crónica. Sem amigas, repudiada pelas mães dos alunos, proibido o salão de baile. Guarda-pó dobrado no braço, transferida para a escola isolada no fundão. Sempre cativa do Josias, saudoso no saxofone da bandinha. Ela quem paga as prestações da fogosa mota vermelha. Só para vê-lo em nuvem de pó com outra na garupa».

Dalton evita os rodriguinhos. Escreve o essencial.

«Não tem café. Nem um bolacha mofada. Uma única salsicha. Na despensa a lata esquecida de milho verde.

Todos os copos – até os de brinde – usados na pia. Enche na torneira o menos sujo, merda de água, podre de cloro.

No banheiro, mãos no azulejo plantadas, urina longamente. Arrepiado ao pensar no banho frio, ninguém para ligar o aquecedor, quando havia aquecedor.

Na toalha, o bafio da cadela molhada.»

Gostei.

“Guerra Conjugal”, de Dalton Trevisan (2006)

guerra conjugalMais um livrinho de contos de Dalton Trevisan, de quem já falei recentemente aqui e aqui.

As personagens destas curtas narrativas chamam-se sempre João e Maria e repetem-se as traições, os ciúmes, o engano, a loucura, o vidro moído que se toma para morrer e fugir desta vida desgraçada.

Acabados de casar, os Joões, por vezes, não conseguem consumar o acto e acusam as Marias de não serem virgens, outras vezes, os Joões espancam as Marias e, algumas vezes, elas parecem gostar, ou acomodar-se.

A linguagem é, como sempre, depurada. O essencial:

«Triste achava-se Maria no ponto do í´nibus, apresentou-se um cavalheiro de nome Ovídio. Entre os dois nasceu uma paixão. Com ele, embora senhor idoso e de óculo, sentia o verdadeiro amor. Ovídio procedia com agrado e meiguice; ora, jamais era acariciada por João que, saciado, lhe dava as costas e punha-se a roncar.»

Tudo explicado em meia-dúzia de frases.

«Miseravelmente traído pela memória: o resto de açúcar na xícara de café, o sangue da pulga no pijama, um toque de caspa no paletó – era ela. Esquecer nos braços de outra era fazê-la mais lembrada».

Algumas destas histórias sugerem-se canções de Chico Buarque…

“Novelas Nada Exemplares”, de Dalton Trevisan (1979)

novelas nada exemplaresNamoro í  janela, í s escondidas do pai, o padrasto que apaga os cigarros nos braços da enteada, homens e mulheres solitários, com vidas interrompidas, mulheres que seduzem com um copo de vinho, quartos de hotel onde não se dorme por causa dos pardais, homens que fazem barulho a comer a sopa e enojam as mulheres, escritores que se fazem valer da fama para seduzir jovens.

Eis alguns dos temas destas novelas que nada têm de exemplares.

Trevisan não é fácil de ler.

A sua escrita é tão depurada, cingindo-se ao essencial, que tem que ser lida com muita atenção e, de preferência, em voz alta.

«Cabelos ruivos na pia, o vestido com duas rodelas de suor e, no espelho, o rosto intruso. Dele fazia parte, o sangue da pulga na cueca, a caspa no paletó ao fim do dia.»

«Sílvia não queria envelhecer: roía a unha, depois a pintava, roía e pintava de novo. Em vão passeava nua no quarto. E buscava, cada dia, um fio branco na franjinha.»

«Cristina serviu-lhe vidro moído no feijão, sem que desconfiasse; cólicas tão fortes que rolava no chão, língua de fora. João dormia só na cama de casal. Certa noite procurou o anel de cabelos de Negrinha, não achou. Cristina o queimara e, além dele, o próprio retrato».

São exemplos ao acaso.

Mestre do conto, Trevisan conta-nos histórias que, a maior parte das vezes, não têm final, como na vida.

Obras de Dalton Trevisan

Dalton Trevisan nasceu em 1925, em Curitiba e, no ano passado, foi o vencedor do Prémio Camões.

Mais um daqueles escritores obscuros que ganham prémios e ninguém lê, pensei eu.

E tinha razão.

Só que, ao ler um livro de Trevisan, temos mesmo que ler todos os outros.

Entrei em contacto com a obra de Trevisan através de O Vampiro de Curitiba (1965), um pequeno livrinho de histórias curtas (103 páginas).

Gosto muito de histórias curtas, desde que o Mário-Henrique Leiria me iniciou com os Contos do Gin Tonic.

Trevisan tem uma escrita única, sincopada, sintética, com um ritmo muito próprio.

o vampiro de curitibaNelsinho é o vampiro de Curitiba, sempre pronto a ferrar o dente em qualquer moça, sem olhar í  idade ou í  aparência.

Os diálogos são especiais.

Exemplo:

«- Você é loira natural?

– O doutor não vê?

– A fama de loira é de fria. Só que não acredito.

– A loira não é feito a morena.

– A morena é mais carinhosa. Você não é católica, é?

– Sou calvinista.

Calvinista, ai, de rostinho abrasado na mesma hora.

– A religião moderna não faz, da virgindade, um cavalo de batalha. A moça, sendo direita, pode ter experiência. Autorizada pelo pastor a conhecer os prazeres da vida.

– …

– Sabia que os turistas acham uma graça em nosso conceito de virgindade?

– Nunca soube.

– Você é temperamento calmo ou nervoso?

– Sou calmo.

– Tem os atributos da nervosa; ainda não sabe que é. Suas medidas são perfeitas. Não é você que joga ví´lei?

– É, sim.

– Gostaria de a ter visto de calção. Joga bem?»

Cemitério de ElefantesE assim por diante.

Sendo assim, passei para Cemitério de Elefantes, publicado em 1984.

É um livrinho ainda mais pequeno (94 páginas), incluindo um prefácio de Fernando Assis Pacheco.

Os heróis deste livro são os bêbados – homens que bebem para afogar desgostos ou porque sim.

Lê-se numa tarde.

E vicia.

a polaquinhaPassei, então, ao único romance que Trevisan publicou: A Polaquinha (1985).

Também não é extenso.

São 150 páginas que contam a história de uma moça que, de namorado em namorado, acaba na prostituição (“polaca”, vulgarmente, significa prostituta).

A vida banal da prostituta, que recebe clientes, com quem finge prazer, é bem ilustrado com os últimos cinco ou seis capítulos do livro – todos praticamente iguais!

E como vicia, já tenho mais três livros de Trevisan para ler…