Nos anos 70 do século passado, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), foi um dos meus preferidos.
Foi entre 1975 e 1978 que li Todos os Fogos o Fogo (1966), Bestiário (1951) e Blow-up e Outras Histórias (título original: Las Armas Secretas, 1959).
Eram livros de contos, onde Cortázar misturava realidade com fantasia, í boa maneira de outros autores latino-americanos, como Garcia Marquez, mas com um cunho político mais marcado.
No entanto, a principal obra de Cortazár, só em 2008 viu a luz  do dia em Portugal, graças í Cavalo de Ferro (tradução de Alberto Simões). Trata-se de Rayuela, com o incompreensível título em português de O Jogo do Mundo.
Com efeito, rayuela é o nome castelhano para o conhecido jogo da macaca e, caso não se quisesse optar por esses título em português, mais valia manter o título original.
Rayuela é um calhamaço de mais de 600 páginas e o próprio autor diz, logo no início, que não é preciso ler todos os capítulos. Cortázar dá-nos duas opções: ou lemos o livro da forma tradicional, capítulo a capítulo e, chegando ao fim do capítulo 56, por volta da página 400, «onde se encontrarão três vistosas estrelas que correspondem í palavra FIM», podemos parar – ou começamos no capítulo 73 e vamos, depois, seguindo uma sequência determinada (no fim de cada capítulo, indica-se qual o capítulo que deve ser lido a seguir).
Optei pela forma tradicional de leitura e confesso que tive alguma dificuldade em ultrapassar algumas páginas.
A história tem duas partes, uma passada em Paris, outra em Buenos Aires. O único personagem comum é Horácio Oliveira, um argentino que vive em Paris durante algum tempo e depois regressa í sua terra. Há também uma personagem feminina que, em Paris se chama Maga e é uruguaia e em Buenos Aires se chama Tanita; no fundo, são a mesma pessoa, não sendo.
Li algures que a escrita de Rayuela teria sido influenciada pelos livros torrenciais de Henry Miller, que também viveu em Paris durante alguns anos, escrevendo Nexus, Plexus, Sexus e os Trópicos de Cancer e Capricórnio.
Não estou de acordo.
Embora haja alguns pontos de contacto: a prosa avassaladora, a referência constante a escritores, pintores, músicos, etc, o surrealismo de algumas cenas fez-me lembrar, sobretudo, as obras de Boris Vian.
Alguns parágrafos são tão longos que é difícil lê-los de uma assentada.
Um pequeno exemplo:
«Apenas dessa vez, hipnotizado como um matador mítico para quem matar é devolver o touro ao mar e o mar ao céu, Oliveira humilhou a Maga durante uma longa noite da qual pouco falaram depois, fê-la Pasífae, virou-a e usou-a como um adolescente, explorou-a e exigiu dela a servidão da puta mais triste, elevou-a a constelação, teve-a entre os seus braços a cheirar a sangue, fê-la beber o sémen que corre pela boca como o desafio do Logos, sorveu a sombra do seu ventre e da sua anca, levando-lhe í cara para untá-la de si mesma, parte última do conhecimento que só um homem pode dar a uma mulher, encheu-a de pele, cabelo, saliva e queixas, esvaziou-a até ao fim da sua magnífica força…» (etc…)
Os jogos de palavras e o gozo das palavras são, por vezes, um fim em si mesmos.
Um exemplo:
«Foi procurar o Dicionário da Real Academia Espanhola, onde a palavra real fora determinantemente destruída a golpes de canivete, e abriu-o ao acaso, preparando a seguinte tirada para Manu:
“Cansado do cliente e dos seus cleonasmos, clausuraram-lhe a clavícula e o clítio, fazendo-o claudicar com algum cloridrato. Em seguida, aplicaram-lhe um clister clínico na cloaca, o que fez com que eclodisse uma clivagem de tão clivosa ascensão de água mesclada com cloro. Só então o cliente se declarou um clérigo claustrofóbico”».
Não foi nada fácil ler este calhamaço, xiça!