Muito interessante, este romance de Barnes, que nos conta a história da relação difícil entre Chostakovitch e a ditadura soviética.
Começo por dizer que Chostakovitch é um dos meus compositores preferidos. Nos anos 70 do século passado, assistimos, no velho S. Luís, í 10ª Sinfonia e emocionei-me. Estávamos lá em cima, no chamado 2º Balcão e, no último andamento, quando as percussões entram em verdadeiro delírio, o músico da tarola, a rufar a toda a brida, deixa fugir uma baqueta, que voa por cima da orquestra, mas ele continua a bater furiosamente no instrumento até ao fim!
A relação de Chostakovitch com Estaline foi muito difícil e o compositor só não terá ido parar í Sibéria porque convinha, ao poder soviético, ter um músico oficial, que personificasse as ideias marxistas-leninistas em relação í arte, nomeadamente, í música. Ainda por cima, Stravinsky tinha sido um traidor e mudara-se de armas e bagagens para o inimigo, isto é, para os States.
Apesar de todas as pressões, Chostakovitch foi resistindo, acabando por ceder muitos anos depois, filiando-se no Partido Comunista na era de Krutchev, o Labrego (como era conhecido í boca pequena…).
O livro de Barnes é muito curioso porque vai contando esta história em pequenos parágrafos, por vezes com apenas meia dúzia de linhas.
E tem tiradas muito boas.
Como esta, sobre o facto de Chosta usar a ironia nas suas composições, como maneira de ludibriar a censura.
“Num mundo ideal, um jovem não devia ser uma pessoa irónica. Nessa idade, a ironia impede o crescimento, atrofia a imaginação. É melhor começar a vida com um estado de espírito animado e sincero, acreditar nos outros, ser franco acerca de tudo e com toda a gente. E depois, quando compreendemos melhor as coisas, desenvolver o sentido da ironia. A progressão natural da vida humana é do optimismo para o pessimismo; e o sentido da ironia ajuda a moderar o pessimismo, ajuda a produzir equilíbrio, harmonia.”
Ou esta, em que Chostakovitch diz o que pensa de Picasso, que apregoava o seu comunismo, mas que nunca viveu sob o jugo soviético:
“(…)tinha Picasso por sacana e por cobarde. Como era fácil ser comunista quando não vivíamos sob o comunismo! Picasso passara a vida a pintar as suas merdas e a celebrar o poder soviético. Mas ai de qualquer artistazinho, a sofrer sob o poder soviético, que tentasse pintar como Picasso.”
Chostakovitch nunca teve a coragem de enfrentar a ditadura. Ou, afinal, ser cobarde exige maior coragem?
“Mas não era fácil ser cobarde. Ser herói era muito mais fácil do que ser cobarde. Para ser herói era só preciso ser bravo por um momento – quando puxávamos da pistola, lançávamos a bomba, carregávamos no detonador, eliminávamos o tirano e a nós também. Mas ser cobarde era embarcar numa carreira que durava toda a vida. Nunca podíamos descansar. (…) Ser cobarde exigia tenacidade, persistência, recusa em mudar – o que tornava isso, de certa maneira, numa espécie de coragem”.
Para o fim da vida, Chostakovitch está cansado e desolado.
“(…)em que ponto é que o pessimismo se torna desolação? As suas últimas músicas de câmara formulavam essa pergunta. Disse ao violista Fyodor Druzhinin que o primeiro andamento do seu Quarteto nº 15 devia ser tocado «de modo que as moscas caiam mortas no ar e a assistência comece a abandonar a sala, de puro tédio»”
The Noise of Time foi editado pela Quetzal e tem tradução de Helena Cardoso.
Gostei muito.
Outras obras de Julian Barnes: Amor & Etc; Arthur & George; O Sentido do Fim