A onda de crimes violentos, em Portugal, é uma treta!
Tudo invenção da comunicação social!
A prova é esta notícia, publicada no DN de ontem e intitulada “Crianças dão de caras com ladrão a assaltar casa”.
A prosa, da autoria de Júlio Almeida, é digna de uma composição da instrução primária. Eu tive um professor primário, chamado André, que se metia nos copos. Por vezes, nas aulas depois do almoço, já chegava com um grãozinho na asa. Compreensivelmente, não lhe apetecia ter que aturar putos de 9 anos. Então, com a sua voz de trovão, informava a turma: “Hoje vamos fazer uma composição. O tema é: ‘o eléctrico parou’. Têm duas horas para a fazer!”. E sentava-se í secretária a dormir a sesta, enquanto nós puxávamos pelo bestunto, a tentar imaginar uma história que ilustrasse aquela frase: “o eléctrico parou”.
Foi o mestre André que me ensinou a escrever, estou convencido disso. E quer-me parecer que este Júlio Almeida, correspondente do DN em Aveiro, também deve ter tido um professor parecido com o meu. O Director do jornal deve ter espalhado a ordem: são precisas notícias sobre a onda de criminalidade, em Portugal. Tudo merece ser noticiado: a velhinha assaltada nos Correios, o velhote roubado na paragem de autocarro, o miúdo assaltado na escola, tudo faz parte desta onda de criminalidade que assola o país.
Vai daí, o Júlio Almeida foi í procura de qualquer coisa que pudesse ilustrar este facto. E eis que dá de caras com esta história, que começa assim:
“Um susto de morte” foi o que sentiu a família residente em Chão do Rio, Riomeão, no concelho de Santa Maria da Feira”.
Logo aqui, o texto parece uma daquelas composições que a malta fazia na instrução primária, quando assinava: Artur Fernando, Avenida Gomes Pereira, Benfica, Lisboa, Portugal, Europa, Planeta Terra, Universo!
Eu sei lá onde fica Chão do Rio! Eu sei lá onde fica Riomeão! Mesmo Santa Maria da Feira… mas, vá lá… o concelho já basta, para quê o nome do lugar?
Adiante.
“O pai, corticeiro numa fábrica de Santa Maria de Lamas, entrou pelo portão de ferro, eram cerca das 18.00, sem dar conta de qualquer anormalidade.”
Logo no segundo parágrafo da noticia, aparece o pai. Mas… o pai de quem? O pai do Céu? O pai do bandido? O pai das crianças? O pai do jornalista?
Enfim, o pai é corticeiro em Santa Maria de Lamas, embora viva em Santa Maria da Feira. Começamos a desconfiar das Santas Marias em toda esta história…
Continuemos com a notícia/composição: “Seriam as duas filhas menores a dar o primeiro alarme quando, depois de abrirem a porta da casa térrea, depararam com a presença de um estranho de saco numa mão e capacete de moto, na outra. Ao deparar com as crianças, de 13 e 7 anos, o suspeito, que estava desarmado, de luvas postas e cara í mostra, pediu-lhes ‘calma’ dizendo que ‘andava aos limões’ e imediatamente fugiu, saltando de uma altura de metro e meio”.
O texto é delicioso, sobretudo o pormenor do ladrão dizer que “andava aos limões”. Quase que temos pena dele e ficamos aflitos quando sabemos que o pobre homem saltou de uma altura de metro e meio. Será que se aleijou?
Voltemos í composição: “o dono da casa foi logo atrás do homem que, ao deparar-se com um precipício nas traseiras, correu pelo meio dos quintais vizinhos, saltando entre silvas e arame farpado que lhe causaram arranhões no corpo”.
Vejam como somos violentos para com os ladrões, obrigando-os a arranharem-se nas silvas e nos arames farpados, construindo precipícios nas traseiras das nossas casas, enfim, dificultando-lhes a sua actividade, de um modo sádico.
Mas não é tudo. A vida dos ladrões portugueses está cada vez mais difícil. Ora vejamos: “Os constantes gritos de socorro lançados, chamaram a atenção de vizinhos, alguns seus familiares que, em pouco tempo, cercaram o presumível larápio acabando por imobilizá-lo com algumas ‘pauladas’, com receio que estivesse armado.”
Não chegava o bandido ter ficado todo arranhado com as silvas e os arames farpados! Ainda teve que levar umas pauladas, coitado! Quem defende os bandidos, em Portugal? O Procurador Geral da República? O Cavaco Silva? O Nuno Rogeiro?
Mas a notícia/composição/romance prossegue: “Atendendo a que as meninas do casal estavam em ‘estado de choque’ com o que tinham presenciado no ‘assustador’ final da tarde, seria requisitado o apoio do INEM que mobilizou para o local uma psicóloga para as confortar”.
E o ladrão? Não teve direito a apoio psicológico? Francamente! O tipo é apanhado pelas miúdas, tem que mentir, dizendo que anda aos limões, é obrigado a saltar de uma altura de metro e meio, de fugir por entre silvas e arames farpados, acaba por levar umas pauladas e, no fim, é preso e não tem direito, sequer, ao apoio de uma psicóloga?! Como querem, depois, que a reinserção social seja possível?
Na minha opinião, a culpa é, também, do próprio ladrão, que não deve muito í inteligência. Ora vejam lá o que ele tentou roubar: “ouro no valor de dois mil euros, bijutaria diversa, dois telemóveis, um relógio de pulso oficial do Futebol Clube do Porto e uma quantia em dinheiro que a família não quis divulgar”.
Roubar um relógio do FCP? Grande estúpido! Só se fosse para o esmagar, destruir, partir, compactar, atomizar, esmigalhar, dissolver, evaporar, condensar, esfarrapar, e, depois, deitar fora!
Humilhado, o ladrão “foi presente a tribunal e ficou em liberdade a aguardar julgamento, mas sujeito a apresentações periódicas no posto da polícia”.
Felizmente, o DN publica uma foto da casa assaltada. Desafio todos os larápios das redondezas a assaltarem a casa! Não deixem que o vosso bom nome seja arrastado na lama por jornalistas de segunda!
Agora, a sério: esta notícia é bem o espelho do jornalismo que se pratica em Portugal. Como é que os jornalistas portugueses enfrentam, de um modo responsável, o aumento da criminalidade, em Portugal? Noticiando tudo, desde o assalto mais idiota, como este, ao assassinato mais violento. Esta notícia ocupa três quartos da página 22 do DN de ontem, a toda a largura da página (5 colunas). Fica tudo ao mesmo nível. E, noticiando tudo, todos ficamos com a ideia de que, em cada esquina, há um bandido í nossa espera.
Tenham vergonha, caramba!