“A Morte do Comendador”, Volume III, de Haruki Murakami (2017)

Quando terminei a leitura do primeiro volume de A Morte do Comendador, fiquei de pé atrás e escrevi: vou ler o segundo volume e depois digo alguma coisa…

Acabei ontem o segundo volume e posso dizer que não fiquei com o pé atrás – fiquei com os dois.

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Murakami, o aclamado escritor, é mesmo um escritor da moda e consegue publicar dois volumes de uma história inverosímil, que mistura realidade com o submundo da fantasia, só tolerável porque, sendo japonês, é assim uma espécie de “realismo fantástico” asiático.

Para além da banalidade das frases feitas, que já tinha notado, destaque para três tiques insuportáveis: a descrição minuciosa de coisas do dia-a-dia que, se no caso do norueguês Knausgard pode ser novidade, no caso deste japonês, é enfadonho; a igualmente minuciosa descrição das fatiotas que os personagens usam; e, finalmente, a obsessão pelos seios da Marie, a personagem de 13 anos, que tem o peito “liso como uma tábua”, mas que tem esperança que as mamas possam crescer e caber numa copa 3C (verídico!).

Um exemplo na página 184:

“Menshiki chegou í s onze e vinte. assim que ouvi o Jaguar, vesti o blusão de cabedal e fui ao seu encontro. ele saiu do carro com um corta-vento azul-escuro acolchoado, calças de ganga pretas justas e sapatos desportivos de pele. Tinha um lenço leve em volta do pescoço.”

Outro exemplo, na página 414:

“Já no fim da chamada, Marie confidenciou-me que o peito se tinha desenvolvido (…)
‘Ainda não estão completamente crescidos, mas para lá caminham – murmurou ela em jeito de confidência.”

Para já não falar nas personagens de cerca de 60 centímetros que saem de um quadro pintado a óleo e surgem como Ideias, arrastando o protagonista para o submundo, onde é preciso atravessar uma espécie de rio das Metáforas e para não falar sequer na possibilidade de o mesmo protagonista ter engravidado a ex-esposa durante um sonho.

Não há pachorra para estas japonisices

“Sabrina”, de Nick Drnaso (2018)

Nick Drnaso (1989, Palos Hills, Ilinois) é um autor de novelas gráficas norte-americano.

“Sabrina” conseguiu ser a primeira novela gráfica a ser nomeada para o Booker Prize.

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As críticas foram entusiásticas e unânimes e, por exemplo, Zaddie Smith (a escritora britânica de ascendência jamaicana) considera-a uma obra-prima, “maravilhosamente escrita e desenhada, possuindo todo o poder político da polémica e em simultâneo, toda a delicadeza da verdadeira grande arte.”

Confesso que não fiquei tão entusiasmado, depois de ler e ver as quase 200 páginas de “Sabrina”.

O fio da história é isso mesmo, um fio. Sabrina, que nós nunca chegamos a conhecer, desaparece e, mais tarde, ficamos a saber que foi assassinada.

O que o autor nos mostra são as reacções de amigos e familiares e como as suas vidas são alteradas pelo desaparecimento de Sabrina.

A história é contada em quadradinhos muito despojados, minimalistas; os desenhos são muito simples, geométricos e as figuras humanas têm poucas expressões faciais. Todos parecem tristes e deprimidos e é esse o tom geral da novela: tristeza e depressão.

Para quem, como eu, está habituado í  banda desenhada, digamos, clássica (do Astérix aos heróis da Marvel), este Nick Drnaso abriu uma nova porta, sem dúvida.

Mas, como romance, prefiro os que não têm bonecos…

“Grace”, de Margaret Atwood (1996)

Em 1843, no Canadá, Grace Marks, com apenas 16 anos, foi condenada pela participação no assassínio do seu patrão e da sua governante e amante. Depois de muita polémica, o Tribunal condenou í  morte por enforcamento o moço da estrebaria, que teria sido o assassino material de ambos e Grace, embora acusada de ter sido a instigadora e cúmplice, foi condenada a prisão perpétua, devido í  sua juventude.

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Margaret Atwood fez um trabalho exaustivo de investigação, estudando os jornais da época, livros e revistas, que mencionaram em abundância aqueles crimes, estudou, certamente, outras publicações contemporâneas, onde foi buscar informações sobre sessões espíritas, mesmerismo e hipnotismo, usos e costumes das criadas, o que elas usavam para tirar nódoas, como cozinhavam, o que faziam para corar roupas, etc – e como toda essa informação escreveu este romance muito interessante, quase todo na primeira pessoa, com a voz de Grace Marks.

Gostei muito do livro, não só pela linguagem coloquial da Grace Marks, mas também pela personagem do Dr. Jordan, um jovem psiquiatra, que se interessa pelo caso e que, através de entrevistas a Grace, tenta compreender a personalidade da alegada criminosa, í  luz das novas teorias psiquiátricas, quando o Freud ainda não tinha nascido…

Vale a pena ler.

“A Morte do Comendador”, de Haruki Murakami (2017)

Os livros de Murakami deixam-me ambivalente. Por um lado, a sua escrita simples, directa, quase coloquial, a sua capacidade para contar histórias, fazendo-as correr suavemente, como se fosse fácil, cativam-me – e a prova é que li este primeiro volume de uma penada.

Por outro lado, esta “mania” que Murakami tem de misturar a realidade com cenas do Outro Mundo, irrita-me um bocado.

Foi por isso que, depois de ler, de enfiada, Em Busca do Carneiro Selvagem, Kafka í  Beira-Mar , e A Rapariga que Inventou um Sonho, fiquei farto de Murakami por sete anos.

Recaí agora.

A Morte do Comendador conta-nos a história de um pintor retratista de 36 anos, recém divorciado, que se retira para as montanhas, para uma casa que pertenceu a outro pintor, já falecido. No sótão dessa casa descobre um quadro intitulado A Morte do Comendador.

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Entretanto, trava conhecimento com um homem muito rico e pinta o seu retrato. Durante a noite, ouve um sino e descobre que o som vem de uma espécie de cripta. Ele e o seu novo amigo conseguem escavar a tal cripta e, aparentemente, está vazia mas, dias depois, o pintor é visitado por um ser do Além, vestido como o comendador do quadro.

Estão a ver por que me irrito com Murakami?…

Quanto í s frases feitas, são í  pazada. Por exemplo, só nas páginas 122 e 123, encontrei: insistir na tecla, nunca as vira mais gordas, como tínhamos vindo ao mundo, estás mortinho por saber, vender o seu peixe.

E no entanto… e no entanto, vou ler o segundo volume e depois digo alguma coisa…

“A História de uma Serva”, de Margaret Atwood (1985)

Só agora me dispus a ler este romance de Margaret Atwood (Otawa, Canadá, 1939), escritora sobejamente conhecida, com inúmeras obras publicadas, entre elas, O Assassino Cego (Booker Prize de 2000).

—E só agora o decidi ler porque, mais de trinta anos depois da sua publicação, a sua autora decidiu escrever um segundo livro, que deverá ser uma espécie de continuação do primeiro, e esse facto foi largamente noticiado e acabou por me despertar a curiosidade.

Confesso que o livro não me entusiasmou por aí além. No que respeita a distopias, O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1931) e 1984, de George Orwell (1949), estabeleceram níveis difíceis de atingir, muito menos de superar.

No entanto, a história que Atwood inventou está bem urdida e deixa-nos alguma água na boca, na medida em que muita coisa é sugerida, mas pouca coisa é revelada. Por exemplo, como é que os Estados Unidos se transformaram naquela bizarra República de Gileade, onde ficam as colónias, terá havido uma catástrofe nuclear, etc.

—O mais curioso do livro acaba por ser a “semelhança” entre essa República de Gileade e a actual administração de Donald Trump. E coloco muitas aspas na semelhança, evidentemente. No entanto, o puritanismo evangélico, um certo desprezo pelas mulheres, a crença na supremacia dos brancos – tudo isso cheira í  América de Trump.

No fundo, Margaret Atwood inventou uma espécie de Daesh cristão, décadas antes do próprio Daesh.

Vale a pena ler, quanto mais não seja para podermos ler a sua sequela, a editar já este ano.

“21 Lições para o Século XXI”, de Yuval Noah Harari (2018)

Depois de lermos, com muito agrado, o primeiro livro deste historiador israelita, Sapiens, avançámos para este, que é o seu terceiro livro, e ainda gostámos mais.

—O livro está dividido nas seguintes partes: O Desfio Tecnológico, o Desafio Político, Desespero e Esperança, Verdade e Resiliência.

Cada uma destas partes, encerra diversos capítulos, num total de 21.

Já tinha escrito um texto a propósito de uma passagem deste livro, em que Harari fala dos nacionalismos – está aqui.

Mas todo o livro é citável…

Na impossibilidade de transcrever todo o livro, vou salientar aqui alguns trechos que me tocaram mais.

“Não tenho a menor ideia de como será o mercado de trabalho em 2050. É relativamente consensual que a aprendizagem automática e a robótica irão mudar quase todas as áreas profissionais – da produção de iogurte ao ensino do yoga.”

(pag. 41 – Capítulo Trabalho – Quando fores grande, talvez não tenhas profissão)

“A seguir, combinamos o algoritmo com sensores biométricos e o algoritmo, agora, fica a saber de que modo cada frame do filme influenciou o nosso ritmo cardíaco, a nossa tensão arterial e a nossa actividade cerebral. Enquanto vemos, por exemplo, Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, o algoritmo pode reparar que a cena da violação suscitou em nós uma levíssima e quase imperceptível excitação, que quando Vincent dispara sem querer para a cara de Marvin isso nos faz rir com sentimentos de culpa, e que não percebemos a piada do «Big Kahuna Burger» mas que nos rimos na mesma para não parecermos estúpidos. Quando forçamos o riso, usamos músculo  e circuitos cerebrais diferentes dos que accionamos quando algo nos faz rir de verdade.”

(pag. 77; Capítulo Liberdade – A Big Data está de olho em ti)

“Em 2011, irrompeu um escândalo quando o jornal ultraortodoxo de Brooklyn Di Tzeitung publicou uma fotografia oficial do governo de Obama mas apagou digitalmente a secretária de Estado Hillary Clinton. O jornal explicou que se viu forçado a fazê-lo devido í s «leis de castidade judaicas». Deu-se um escândalo parecido quando o HaMevaser apagou Angela Merkel de uma fotografia tirada numa manifestação contra o massacre do Charlie Hebdo, não fosse a sua imagem despertar pensamentos libidinosos nas mentes dos leitores devotos. O editor de um terceiro jornal judeu ultraortodoxo, Hamodia, defendeu esta política, explicando que «estamos a seguir milhares de anos de tradição judaica».

(pag. 123 – Capítulo Civilização – Só existe uma civilização no mundo)

“Há mil anos, se adoecêssemos, o sítio onde vivíamos era decisivo. Na Europa, o padre local provavelmente dir-nos-ia que tínhamos provocado a ira de Deus e que, para recuperarmos a nossa saúde, deveríamos doar qualquer coisa í  Igreja, fazer uma peregrinação a um local sagrado e rezar com fervor a Deus, pedindo-lhe perdão. Ou, por outro lado, a bruxa da aldeia podia explicar-nos que estávamos possuídos por um demónio e que ela podia expulsá-lo com cânticos, danças e o sangue de um galo preto.
No Médio Oriente, os médicos formados í  luz das tradições clássicas podiam explicar-nos que os nossos quatro humores corporais estavam em desequilíbrio e que podíamos harmonizá-los seguindo um dado regime alimentar e tomando poções fedorentas. Na Índia, os peritos ayurvédicos avançariam as suas próprias teorias sobre o equilíbrio entre os elementos corporais, conhecidos como doshas, e recomendar-nos-iam um tratamento de ervas, massagens e posturas de yoga. Médicos chineses, xamãs siberianos, curandeiros africanos, terapeutas ameríndios – todos os impérios, reinos e tribos tinham as suas próprias tradições e os seus respectivos peritos (…). A única coisa comum í s práticas medicinais europeias, chinesas, africanas e americanas era o facto de, em todos esses lugares, pelo menos um terço das crianças morrer antes de atingir a idade adulta e a esperança média de vida se situar abaixo dos 50 anos.”

(pag. 133 – Capítulo Civilização – Só existe uma civilização no mundo)

“Então, como deve o estado lidar com o terrorismo? Um combate contra-terrorista bem-sucedido deve fazer-se em três frentes. Primeiro, os governos devem concentrar-se em acções clandestinas contra as redes terroristas. Em segundo lugar, os meios de comunicação não devem perder a perspectiva, evitando a histeria. O teatro do terror não consegue viver sem exposição mediática. Infelizmente, os meios de comunicação oferecem-na de graça, relatando obsessivamente ataques terroristas e inflacionando o seu perigo, uma vez que as peças jornalísticas sobre terrorismo aumentam muito mais as vendas do que as peças sobre diabetes ou poluição atmosférica.”

(pag. 197 – Capítulo Terrorismo – Não entrar em pânico)

“E quanto í  bestialidade? Já participei em diversos debates públicos e privados sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e há quase sempre um espertalhão que pergunta: «Se permitimos o casamento entre dois homens, por que não permitir o casamento entre um homem e uma ovelha?». Do ponto de vista secular, a resposta é evidente. As relações saudáveis requerem profundidade emocional, intelectual e até espiritual. Um casamento que não tenha esta profundidade vai deixar o indivíduo frustrado, só e psicologicamente atrofiado. Enquanto dois homens podem certamente satisfazer as necessidades emocionais, intelectuais e espirituais um do outro, um relacionamento com uma ovelha não pode.
(…) E o que dizer de uma relação entre um pai e sua filha? São ambos seres humanos, então qual é o mal? Bom, vários estudos psicológicos já demonstraram que esse tipo de relação inflige um dano imenso e geralmente irreparável nos filhos. Além disso, reflectem e intensificam tendências destrutivas nos pais. A evolução moldou a psique do Sapiens de modo que as relações românticas não se misturem com as relações parentais. Assim, não precisamos de Deus ou da Bíblia para nos opormos ao incesto – basta lermos os estudos psicológicos sobre o assunto.”

(pag. 240 – Capítulo Secularismo – Reconhecer a nossa sombra)

“O poder do pensamento grupal é tão inexorável que é difícil romper com a sua influência mesmo quando as perspectivas em causa parecem bastante arbitrárias. Assim, nos EUA, os conservadores de direita tendem a importar-se menos com coisas como a poluição e as espécies em vias de extinção do que os progressistas de esquerda, motivo pelo qual o Louisiana tem leis ambientais muito mais permissivas do que o Massachussetts. Estamos habituados a esta situação, pelo que damos como banal, mas, na verdade, é surpreendente. Seria de pensar que os conservadores se importariam muito mais com a conservação da velha ordem ecológica e com a protecção das suas terras, as suas florestas e os seus rios ancestrais. Por sua vez, seria de esperar que os progressistas estivessem muito mais abertos a mudanças na natureza, especialmente se o objectivo fosse acelerar o progresso e aumentar a qualidade de vida dos seres humanos. No entanto, uma vez estabelecidas as directrizes partidárias quanto a um tema, devido a várias particularidades históricas, torna-se normal para os conservadores desvalorizarem as preocupações com rios poluídos e com o desaparecimento de aves, ao passo que os progressistas de esquerda tendem a recear qualquer alteração í  velha ordem ecológica”.

(pag. 256 – Capítulo Ignorância – Sabemos menos do que julgamos)

Vale a pena ler.

 

 

“A Praia de Manhattan”, de Jennifer Egan (2017)

—Jennifer Egan (Chicago, 1962) ganhou o Prémio Pulitzer de 2011 com o romance A Visita do Brutamontes (está ali na prateleira para ler) e com este A Praia de Manhattan parece ter-se afirmado como uma das mais importantes escritoras norte-americanas da actualidade.

A acção deste novo livro de Egan passa-se nos anos 40 do século passado, durante a Segunda Grande Guerra e a protagonista, Anna, percorre todo o livro, desde os tempos em que, ainda criança, acompanha o pai nas suas visitas a dirigentes sindicais do Porto de Nova Iorque mais ou menos relacionados com as máfias irlandesa e italiana, até í  sua mudança para a Califórnia, por motivos de força maior, que só a leitura deste excelente livro revelará.

—O pai de Anna vai desaparecer de cena, assim como a sua irmã deficiente, e até a sua mãe, ex-bailarina, e Anna, sozinha, acaba por arranjar trabalho no Porto, como soldadora e, pouco depois, torna-se uma das primeiras mulheres a mergulhar com escafandro.

Para além de uma história muito rica de peripécias, em que as personagens são consistentes e credíveis, o principal destaque deste livro vai para a narrativa verdadeiramente cinematográfica. Com efeito, ao lermos o livro, estamos a “ver” as cenas num écran.

Não me admira nada que este livro seja, em breve, adaptado ao cinema, como já aconteceu com outro romance de Jennifer Egan, O Circo Invisível (2014).

Recomendo.

Edição Quetzal, tradução de Vasco Teles de Menezes.

“Sapiens – História Breve da Humanidade, de Yuval Noah Harari (2013)

Harari (Haifa, Israel, 1976) é um professor de História que se tornou conhecido mundialmente com este calhamaço de 500 páginas em que descreve a História da Humanidade.

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O Homo sapiens começa por ser um animal insignificante e, depois da revolução cognitiva, da revolução agrícola e da revolução científica, transforma-se numa espéice de um deus, capaz de acabar consigo próprio.

De um modo muito claro, Harari vai-nos mostrando como essa evolução foi possível.

Na impossibilidade de transcrever todo o livro, deixo aqui, apenas, algumas passagens:

“A grande maioria da comunicação humana é composta por mexericos. (…) Acha que os professores de História falam sobre os motivos subjacentes í  Primeira Guerra Mundial quando se encontram para almoçar, ou que os físicos nucleares aproveitam as pausas para café das conferências científicas para falarem de quarks? Por vezes. Mas o mais comum é coscovilahrem sobre a professora que apanhou o marido com outra, ou o propósito da altercação entre o chefe do departamento e o reitor, ou acerca dos rumores de que um colega usou os fundos de uma investigação para comprar um Lexus. Por norma, os mexericos centram-se nas infrações. Os divulgadores de rumores são o «quarto Estado» original: jornalistas que informam a sociedade e, assim, nos protegem de trapaceiros e parasitas”. (pag 37)

—“De todas as actividades humanas colectivas, a mais difícil de organizar é a violência. Dizer que uma ordem social é mantida pela força militar suscita, de imediato, a questão: o que mantém a ordem militar? É impossível organizar um exército apenas pela coerção. Pelo menos, alguns dos comandantes e dos soldados têm de acreditar verdadeiramente nalguma coisa, seja em Deus, na honra, na pátria, na virilidade ou no dinheiro.” (pag 138)

“Tal como duas notas musicais opostas tocadas em conjunto fazem desenvolver uma melodia, também a discórdia nos nossos pensamentos, ideias e valores nos obriga a pensar, a reavaliar e a criticar. A coerência é apanágio das mentes obtusas”. (pag 200)

“A 23 de agosto de 1572, os católicos franceses, que realçavam a importância das boas acções, atacaram comunidades de porotestantes franceses que enalteciam o amor de Deus pela humanidade. Neste ataque, o dia do massacre de São Bartolomeu, foram chacinados entre 5000 e 10000 protestantes em menos de 24 horas. Quando o Papa, em Roma, soube o que tinha acontecido em França, ficou de tal forma feliz, que organizou orações festivas para celebrar a ocasião e contratou Giorgio Vasari para decorar uma das salas do Vaticano com um fresco do massacre (a sala está hoje encerrada aos visitantes). Foram mortos mais cristãos por outros cristãos nessas 24 horas do que pelo Império Romano politeísta durante toda a sua existência”. (pag 255)

“Os nossos primos chimpazés raramente se lavam e nunca mudam de roupa. Também não nos sentimos enojados pelos facto dos nossos cães e gatos domésticos não tomarem banho nem mudarem de pelagem, todos os dias. Fazemos-lhes festas, abraçamo-los e beijamo-los constantemente. Muitas vezes, as crianças pequenas das sociedades ricas não gostam de tomar banho e são necessários anos de educação e disciplina parental para adoptarem este hábito supostamente atraente. É tudo uma questão de expectativas.” (pag 448)

Vale a pena ler.

Edição Elsinore, tradução de Rita Carvalho e Guerra

“A Sucessão”, de Jean-Paul Dubois (2016)

Jean-Paul Dubois (Toulouse, 1950) é um discreto escritor francês que, apesar de já ter quinze romances publicados, continua muito pouco conhecido e do qual pouco se sabe, por culpa dele —próprio que, pelos vistos, não gosta de propaganda. Terá tido estudos de sociologia, terá sido jornalista, com reportagens publicadas, por exemplo, no Nouvel Observateur.

Este romance, A Sucessão, foi finalista do Prémio Goncourt de 2016 e em boa hora o adquiri e o li com muito agrado. Ao contrário de lixo que anda por aí, este discreto livro é um dos melhores que li nos últimos tempos.

Conta-nos a história de Paul Katrakilis, um médico francês que prefere a pelota basca í  medicina, sendo jogador profissional em Miami, onde foi feliz feliz.

Paul provém de uma família, no mínimo, estranha: o aví´ terá sido médico de Estaline e suicidou-se; o pai, também médico, suicidou-se; a mãe e o tio, irmão da mãe, ambos relojoeiros, além de terem vivido mais ou menos em incesto, também se suicidaram.

—Talvez por tudo isso, Paul fugiu de França e da medicina, encontrando a felicidade na pelota basca e em Miami.

Mas a história de Paul é também sobre o amor impossível, com uma norueguesa 26 anos mais velha, sobre a solidão e sobre a eutanásia.

Sobre essa paixão impossível, escreve Dubois:

“Estava na ordem das coisas, pois essa Ingvild Lunde encarnava mais ou menos tudo o que um homem pode sonhar desde a adolescência, ou seja, um ser simbiótico que tinha simultaneamente o tamanho do pai e o corpo da mãe.”

Paul acaba por regressar í s origens e enfrentar os fantasmas de uma história familiar muito pesada.

E depois de deixar o desporto e voltar í  medicina, Paul debate-se com a monotonia das queixas dos doentes (e como eu o compreendo…):

«”É aqui, doutor, que está o mal. Sinto guinadas de dor. Sobretudo quando como alface e tomate. O resto do tempo? Estou bem” Palpações, perguntas sobre o trânsito intestinal, fazer exercício, síndrome do cólon irritável, não se preocupar, e também, porque não, deixar de comer alface e tomate durante um tempo. A mãe dele poderia ter dito a mesma coisa.»

E ainda:

“E havia o consultório, o telefone a tocar, todas essas pessoas que entravam e saíam da minha casa, que batiam com as portas. Eram a minha família numerosa. Contavam-me a vida delas, que muitas vezes era tão triste como a minha, falavam-me das fezes dos seus bebés, do seu herpes genital, da mulher que os punha malucos, do marido que só pensava naquilo. O resto do tempo, doía-lhes aqui. Não, doutor, um pouco mais acima. Sim, aqui, exactamente.”

Aconselho vivamente.

Edição Sextante, com tradução de Joana Cabral.

“A Bastarda de Istambul”, de Elif Shafak (2007)

Elif Shafak (Estraburgo, 1971) é uma escritora turca que escreve em inglês e colabora com jornais como o Guardian, o New York Times ou o Independent.

—Este romance, publicado, em primeiro lugar, na Turquia e só um ano depois em Inglaterra, causou alguma polémica e a autora foi levada a tribunal, acusada de “denegrir a identidade turca”.

A razão para esta acusação, que acabou por não ser provada, reside na essência deste romance: as relações entre turcos e arménios, tendo como pano de fundo o genocídio dos arménios, sempre negado pelos turcos.

No entanto, a história principal do livro é a de Asya, uma bastarda, filha de pai incógnito – embora acabemos por saber quem foi o pai nas últimas páginas.

A mãe de Asya, Zeliha, é uma jovem habitante de Istambul que gosta de provocar, usando mini-saias escandalosamente curtas, piercings e tatuagens.

—Asya e a mãe vivem numa casa só de mulheres, com as três irmãs de Zeliha e a avó materna.

Cada uma das tias tem as suas particularidades e a sua história e todas elas se cruzam com as histórias de arménios.

Os 18 capítulos têm, como títulos, ingredientes das várias refeições tipicamente turcas que vão sendo referidas na história, começando com “canela”, continuando com “cascas de laranja”, “figos secos”… e acabando com “cianeto de potássio”.

Um livro curioso e que vale a pena ler.

Edição Jacarandá, com tradução de Maria João Freire de Andrade.