“O Filho”, de Philipp Meyer (2013)

philipp meyerPhilipp Meyer nasceu em New York em 1974, estudou em Baltimore, foi mecânico de bicicletas e paramédico, entre outras coisas, até que, em 2009, publicou Ferrugem Americana.

Quatro anos depois, publicou este The Son, um verdadeiro épico sobre o Oeste americano, um romance que te agarra do princípio ao fim, contando a história de uma família de colonos, os McCullough.

A história, que começa nos finais do século 19, quando os colonos dizimam os índios, e acaba nos nossos dias, é-nos contada por três elementos da família, um de cada geração.

o filhoSem dúvida que os relatos mais interessantes são de Eli McCullough. Numa noite, a casa onde vivia com os pais, a irmão e o irmão, junto í  fronteira com as terras dos índios, é atacada pelos comanches. Todos são mortos violentamente e ele é tomado como escravo, vivendo os anos seguintes com os índios, aprendendo os seus usos e costumes. Mais tarde, quando os comanches são praticamente dizimados, regressa ao convívios dos brancos e torna-se ranger, combate depois no exército sulista, na guerra da sucessão e, finalmente, estabelece-se com um rancho, que há-de tornar-se num verdadeiro império quando se descobre petróleo no Texas.

Gostei bastante de ficar a conhecer muitas coisas sobre os comanches de que nunca tinha ouvido falar, apesar de tantos filmes de cowboys e revistas do Mundo de Aventuras.

Por exemplo: para os comanches, o bisonte era como o porco é para nós – aproveitava-se tudo.

«Os bisontes abatidos eram desmanchados onde caíam, embora “desmanchados” não seja a palavra certa; os Comanches eram como cirurgiões. A pele era cortada cuidadosamente ao longo da coluna, pois a melhor carne e os tendões mais compridos ficavam mesmo por baixo, e depois era tirada ao animal. (…) O estí´mago era removido, a erva tirada lá de dentro e o restante suco de imediato bebido como tónico, ou aplicado no rosto por aqueles que tinham furúnculos ou erupções cutâneas. O conteúdo dos intestinos era espremido entre os dedos e os próprios intestinos assados ou comidos crus. Os rins, o sebo dos rins e o sebo ao longo dos lombos também eram comidos crus enquanto o animal continuava a ser desmanchado, embora por vezes fossem ligeiramente assados, juntamente com os testículos do macho. (…) Se houvesse pouca água, as veias do animal eram abertas e o sangue bebido antes de ter tempo para coagular. O crânio era fendido, os miolos mexidos numa pele não curtida e igualmente ingeridos… (…) O estí´mago era lavado, seco e usado como reservatório de água. (…) A língua, a bossa, as costelas laterais e as costelas da bossa eram todas cortes de eleição e eram guardadas para churrasco. (…)»… e assim continua por mais alguns parágrafos, com uso para os ossos, a bexiga, o pericárdio, etc.

Para além de muito bem escrito, este calhamaço de 636 páginas (edição Bertrand, tradução de Fernanda Oliveira), ajuda-nos a perceber como foi a chacina dos índios, a expulsão dos mexicanos e até a explicar como o petróleo mudou a face da América e do mundo.

Aconselho vivamente.

“Número Zero” de Umberto Eco (2015)

Quem diria que Umberto Eco, agora com 83 anos, tinha um sentido de humor tão apurado e era capaz de escrever uma sátira tão bem esgalhada.

É que depois de títulos, digamos, tão sisudos como O Nome da Rosa, O Pêndulo de Foucault ou O Cemitério de Praga, eu não estaria í  espera de um Número Zero tão bem disposto e que se lê de uma penada (também são só 160 páginas e eu, ultimamente, só tenho lido tijolos de 600 páginas, no mínimo!)

numero zeroO Número Zero é sobre um jornal, chamado Amanhã, financiado por um Comendador, que pretende editar apenas números zero, com notícias e artigos que possam ameaçar certas pessoas importantes, a quem o Comendador queira influenciar.

Nas primeiras páginas do livro, Eco denuncia os truques que a comunicação social utiliza para nos implantar determinadas opiniões. Claro que o jornalista não pode e não deve emitir uma opinião, mas pode sempre entrevistar um popular que emite essa opinião por ele.

Os diálogos entre os vários jornalistas da redacção são bem divertidos, como este, por exemplo:

«No seu artigo sobre as prostitutas usa expressões como fazer um cagaçal, encanzinamento, conversa de merda e põe em cena uma putéfia que diz vai levar no cu»

«Mas é assim», protestou Constanza. Agora todos usam palavrões, mesmo na televisão, e dizem caralho, inclusive as senhoras.»

«O que faz a alta sociedade não nos interessa. Nós devemos pensar nos leitores que têm ainda medo dos palavrões.»

Um dos jornalistas, entretanto, está a investigar a possibilidade de Mussolini não ter sido assassinado e estar ainda vivo, quem sabe, na Argentina e tudo isso envolveria uma teoria da conspiração gigantesca. O desenvolvimento desta história acabará por levar ao fim do jornal e, sinceramente, cheira-me que Eco queria mesmo contar esta história mas, como não dava para fazer uma romance, envolveu-a na história do jornal.

Número Zero é uma pequena novela que se lê rapidamente e com prazer.

Uma pequena nota para um erro frequente em português, mas que não se devia ver num livro.

Está na página 52 e seguintes:

«Porque crescem as bananas nas árvores», em vez de “por que crescem as bananas nas árvores”. Esta confusão entre “porque” e “por que” repete-se mais de vinte vezes! É obra!

“Um Homem Apaixonado”, de Karl Ove Knausgard (2009)

E já está despachado o segundo tijolo dos seis que constituem este momumental projecto que é “A Minha Luta”, da autoria do norueguês Knausgard.

homem apaixonadoDepois de A Morte do Pai, este Um Homem Apaixonado tem, como pano de fundo, o segundo casamento do autor, com Linda, e o nascimento dos três filhos, Vanja, Heidi e Jon, em apenas 4 anos.

O título é um pouco enganador porque, apesar de apaixonado, Karl Ove passa o tempo a discutir com Linda que, ainda por cima, é bipolar.

O autor debate-se entre a vidinha de todos os dias, fazer, comer limpar a casa, mudar as fraldas aos miúdos, levá-los ao infantário, aturá-los, fazer o jantar, levar o lixo para os contentores e arranjar tempo para escrever.

Tal como no primeiro volume, ora levamos com a descrição pormenorizada de como Karl Ove limpa o chão da cozinha, incluindo que tipo de detergente usa, ora apanhamos com uma exposição demorada sobre Dostoievsky ou qualquer outro clássico.

E podemos dizer que, ao fim e ao cabo, não se passa nada. Karl Ove discute com Linda ou com a vizinha de baixo, que é russa e faz barulho fora de horas, mudam-se de Estocolmo para Malmo, de vez em quando vai fazer leituras a Universidades, compra livros e discos, tem jantares com amigos, fala sobre tudo e nada com o seu amigo Geir e, quase no final do livro, vai jogar í  bola com um grupo de conhecidos, cai e fractura uma clavícula, o que deixa Linda muito chateada porque, nos dois meses seguintes, terá que ser ela a tomar conta dos três miúdos sozinha.

Delicioso!

No entanto, notei uma incongruência no autor. Na página 457, numa conversa com Geir, Karl Ove diz:

«Lembro-me de a Tonje estar sempre a falar de uma coisa terrível que lhe tinha acontecido, muitos anos antes. (…) Ao fim de dois anos, acabou por me contar tudo. Eu não tinha bebido. E ouvi-a com toda a atenção, sem pensar em mais nada. Ouvi atentamente cada palavra que ela dizia e, depois, falámos muitas vezes sobre o assunto. Mas acabei por esquecer tudo. Passados poucos meses, já não lembrava fosse do que fosse. Nada.»

E o autor continua neste tom, lamentando-se por ter, na altura, apenas 35 anos e ter já a memória tão queimada… e no entanto, ao longo destes dois livros relata episódios do passado, até da sua adolescência, com grande profusão de pormenores, incluindo longos diálogos.

Estamos, portanto, perante uma autobiografia ficcionada, e não há mal nenhum nisso.

Só um pequeno pormenor, quanto í  edição, da responsabilidade da Relógio d´Agua (tradução do inglês de Miguel Serras Pereira): talvez com a pressa de lançar o livro no mercado, existem vários erros, digamos, tipográficos, que uma revisão aturada teria evitado.

Por exemplo: “O tema da discussão eram agora” (página 38); “chávenas de café e piores numa bandeja” (em vez de pires, página 297), “Linda pusera em cima da mesa pratos da cozinha que trouxera da cozinha” (página 386). E há mais.

Fico í  espera do 3º volume.

“A Amiga Genial” (2011), de Elena Ferrante

Pouco se sabe de Elena Ferrante, a começar pelo próprio nome, que não deve ser esse.

Sabe-se que nasceu em Nápoles e que é mãe e mais nada. Não dá entrevistas, não se deixa fotografar e, no entanto, é considerada uma das escritores italianas mais importantes da actualidade.

amiga genialEste L’Amica Genial (Relógio de ígua, tradução de Margarida periquito) foi uma agradável surpresa e devorei-o em três tempos.

Trata-se do primeiro volume de uma tetralogia narrada por uma rapariga de um bairro pobre de Nápoles.

Com uma linguagem simples e fluente, vamos conhecendo as histórias de Elena Greco (a narradora), da sua grande amiga e inspiradora, Lila Cerullo, dos seus amigos e das respectivas famílias, do sapateiro, do charcuteiro, do mafioso do costume, do porteiro da Câmara.

Ao contrário dos outros miúdos, Elena vai continuando os estudos, da escola básica para o liceu e, í  medida que vai obtendo mais sucesso escolar, maior é a sua luta interior: por um lado, deseja ardentemente sair do bairro, viver outra vida, mas por outro é ali que estão as suas raízes.

Por outro lado, a sua grande amiga, Lina, que parecia ser mais capaz de romper com a vida do bairro, vai desistindo da escola, adaptando-se.

Como diz a professora de Elena: «A beleza que a Cerullo possuía na mente desde pequena não encontrou saída, Greco, e foi-lhe toda parar í  cara, ao peito, í s coxas e ao cu, lugares onde depressa desaparece, e é como se nunca a tivesse tido».

Não pude deixar de estabelecer um paralelo entre estas histórias e as que vivo, profissionalmente, no meu dia a dia, há 30 anos.

O livro termina com o casamento de Lina, aos 16 anos e espero que o segundo volume saia em breve.

Aconselho vivamente.

“O Assassinato de Margaret Thatcher”, de Hilary Mantel (2014)

Hilary Mantel (n. Thompson, GB, 1952) ganhou por duas vezes o Man Booker Prize, o que é um feito inédito.

assassinatoIsso e mais o título sugestivo do livro fez com que o comprasse.

Trata-se de uma colectânea de onze contos, o último dos quais dá título ao livro. Um eventual militante do IRA entra no apartamento de uma cidadã de Windsor, cuja janela dá para um local onde Thatcher há de passar, com o intuito de a assassinar a tiro.

Mas, como acontece nas restantes dez histórias, nada de especial acontece. O gozo das histórias é a escrita de Mantel, já que as histórias propriamente ditas não têm nada de especial.

Dispensável.

“A Vida Privada de Maxwell Sim”, de Jonathan Coe (2010)

Comprei este romance de Jonathan Coe (Bronsgrove, GB, 1961), graças í  crítica que li no Público, intitulada “O homem que se apaixonou pela voz do GPS“.

E, afinal, nem este título é completamente fiel, nem o conteúdo entusiástico da crítica corresponde í  realidade.

vida privadaA Vida Privada de Maxwell Sim é uma manta de retalhos, como se o autor tivesse meia-dúzia de histórias para contar e decidisse inventar uma personagem, Max Sim, para servir de fio condutor.

O tom da narrativa é muito coloquial, fazendo-me lembrar os livros de Nic Hornby, os quais prefiro, sem dúvida.

Em resumo, muito resumido, Maxwell Sim é um quarentão divorciado, trabalhador de um aramazém, deprimido, de baixa médica, órfão de mãe e com um pai distante. Um amigo propõe-lhe um novo emprego: ir até í  Escócia vender uma nova marca de escovas de dentes. “Uma história hilariante”, diz o crítico do Público.

Hardly…

E depois de muitas voltas mais ou menos inverosímeis, o final pretende ser surpreendente, mas é pífio.

Não aconselho.

Nota: a tradução de Elsa T. S. Vieira pode estar óptima, mas alguém tem que ensinar-lhe, a ela ou ao revisor, a diferença entre “porque” e “por que”.

Página 156: «Porque pareciam estar todos com tanta pressa? Que diferença fazia chegar ao destino meia-hora mais tarde?» – claro que “porque” devia ser “por que” (qual a razão).

Página 276: «Por que raio te dei ouvidos? Porque te deixei tratar-me dessa maneira…» – afinal, até parece que sabem usar o “por que” como deve ser… na primeira frase porque, na segunda, repete-se o erro da página 156.

“A Balada de Adam Henry”, de Ian McEwan (2014)

Começo pelo título em português: claro que não é fácil traduzir o título original (The Children Act), mas talvez com um pouco de esforço se tivesse encontrado uma solução mais elegante do que A Balada de Adam Henry.

Faz-me lembrar a velha tradução da série televisiva Hill Street Blues por A Balada de Hill Street.

The Children Act tem, em inglês, o duplo sentido de poder significar um acto de uma criança e a lei que protege os direitos das crianças.

Balada é que não!

A única coisa mais parecida com balada será o poema que Adam Henry envia para a juíza e o facto de a juíza tocar piano…

ian mcewanIan McEwan (nascido em 1948) é um dos escritores da actualidade que mais aprecio.

Devido í s suas primeiras obras, ficou conhecido como Ian Macabro e é certo que todos os seus livros têm um lado negro bem vincado.

Neste The Children Act é-nos contada a história de Fiona Maye, uma juíza de 60 anos, do Supremo Tribunal, que julga casos de família e menores.

baladaO casamento de Fiona está num impasse. Demasiado absorvida pela sua profissão, a juíza começa a perder o marido, que se apaixona por uma jovem.

História habitual.

É com este pano de fundo que é chamada a julgar o caso de um jovem de 17 anos, testemunha de Jeová, a morrer de leucemia e que recusa uma transfusão de sangue que o pode salvar.

Fiona decide visitar o jovem, o tal Adam Henry, internado no hospital e entre eles nasce uma empatia que terá desenvolvimentos inesperados.

Para enriquecer a história, conhecemos alguns casos que Fiona tem que julgar. Um deles fez-me lembrar a minha realidade como Médico de Família, a trabalhar numa região de bairros sociais:

«Quatro anos antes, com dezoito anos, depois de uma rapariga o acusar por má-fé de violação, passou algumas semanas detido numa prisão para jovens infractores e puseram-no com pulseira electrónica e termo de identidade e residência durante seis meses. Havia bons indícios de mensagens por telemóvel a apontar para o facto de o sexo ter sido consensual, mas a polícia recusou investigar, pois tinham objectivos a atingir em casos de violação. Gallagher era precisamente o tipo de homem de que precisavam. No primeiro dia do julgamento, provas comprometedoras apresentadas pela melhor amiga da acusadora demoliram a acusação. A suposta vítima tinha esperança de receber dinheiro da Autoridade de Protecção por Danos de Origem Criminosa para comprar uma nova Xbox.»

Mais um bom romance de McEwan.

Outras obras deste autor: Mel, Na Praia de Chesil, Cães Pretos, Entre Lençóis, Jardim de Cimento, Solar.

O Nobel para Rita, já

Rita Redshoes é uma menina que canta e até já editou alguns discos de música pop, cantada em inglês (daí o apelido, que Sapatos Vermelhos soaria foleiro…)

Não satisfeita com a música, decidiu, também, escrever um livro.

Pior: decidiu publicar um livro!

rita redshoesChama-se “Sonhos de uma Rapariga Quase Normal” (edição Guerra & Paz) e o Diário de Notícias dedica-lhe, hoje, uma página inteira, com chamada de primeira página.

E essa chamada diz: «Passos Coelho pediu a Rita em casamento. E ela disse que sim».

A acompanhar esta frase bombástica, uma foto da menina, ocupando um quarto da primeira página do jornal.

Que se passa, afinal?

Afinal, foi simplesmente um sonho da Ritinha.

Pois a Ritinha lembrou-se de tomar nota dos seus sonhos e, não satisfeita com isso, vertê-los para livro e publicá-los!

Que ideia genial!

Vale a pena transcrever a prosa transcendente do livro da Rita.

«Boa tarde. Peço desculpa por incomodar, mas há coisas na vida inexplicáveis, encontros, certezas… e uma dessas coisas aconteceu-me agora mesmo quando a vi entrar. Rita, aceitas ser minha noiva?, pergunta-lhe o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho. “Sim”, responde-lhe Rita Redshoes. “Eu respondi sim! Sim… e até mesmo no próprio sonho me lembro de ter pensado que estava completamente louca”, escreve a artista, contando o que se passou na noite de 15 para 16 de fevereiro de 2014».

Felizmente, a Rita conta no livro que também sonhou com António Costa, e assim a Oposição não fica zangada…

O artigo não especifica se Rita é suficientemente democrática para ter sonhado, também, com Paulo Portas, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Garcia Pereira, mas ficamos a saber que sonhou com Pinto da Costa, Obama, Maria Callas e José Rodrigues dos Santos.

Confesso que fiquei com curiosidade, não para saber o conteúdo desses sonhos, para para saber o que levou o Diário de Notícias a publicar isto, ainda por cima, no suplemento Mais Artes.

Depois da biografia em que revela que Portas se demitiu por sms, só faltava a Passos Coelho um livro de uma jovem cantora que confessa que, pelo menos simbolicamente, desejava casar com ele.

Claro que o Freud poderia explicar isto, se valesse a pena.

Não vale.

“O Mundo Ardente”, de Siri Hustved (2014)

1150733bSiri Hustved (Minnesota, 2014) é autora, até agora, de cinco romances, um livro de poesia, dois livros de ensaios e mais umas quantas obras de não-ficção, mas acaba muitas vezes por ser conhecida pelo facto de estar casada com Paul Auster…

Talvez por isso, tenha escolhido este tema para o seu último romance.

mundo ardenteThe Blazing World é sobre Harriet Burden, uma artista-performer nova-iorquina, mais conhecida por ser a mulher de um marchant famoso.

Para que as suas obras fossem reconhecidas, Harriet pediu sucessivamente a três homens para assinarem por ela, como se fossem eles os autores – e as três exposições que daí nasceram foram sempre um sucesso. E Harriet sempre acreditou que tal só era possível porque os autores eram homens; se os críticos soubessem que a autoria das obras pertencia a uma mulher, tudo passaria despercebido.

E, de facto, é difícil recordarmo-nos de pintoras, escultoras, artistas plásticas em geral, do sexo feminino.

O Mundo Ardente, formalmente, é diferente do habitual: cada capítulo é um testemunho escrito, ou uma entrevista de alguém que conheceu e conviveu com Harriet ou, então, pedaços dos muitos cadernos que Harriet escreveu. E a pouco e pouco vamos construindo o puzzle da vida de Harriet.

Uma obra interessante, embora o mundo das artes plásticas, as suas guerras e tricas, que me parecem muito nova-iorquinas, esteja um pouco longe dos meus interesses.

“A Morte do Pai”, de Karl Ove Knausgard (2009)

Knausgard nasceu em 1968 em Oslo, capital da Noruega, e vive actualmente em Malmo (Suécia).

knausgardEstes dois factos simples talvez ajudem a perceber uma obra como esta. Talvez o facto de ser originário do norte da Europa, possa ajudar a explicar a frieza com que este escritor se expõe neste projecto, que envolve seis livros autobiográficos, sob o título genérico e provocatório de “A Minha Luta”.

O primeiro livro, “A Morte do Pai”, é sobre isso mesmo, a morte do pai de Knausgard; a relação entre ambos não terá sido a melhor e isso nota-se na amargura com que o autor descreve o seu pai, um professor de província, que se tornou alcoólico no fim da vida.

morte do paiNestas primeiras 377 páginas (parece que os seis livros somam 3500 páginas…), Knausgard conta-nos diversos episódios da sua infância e juventude, a sua relação com uma mãe, que me pareceu ausente, e com o irmão mais velho, que lhe serviu de modelo durante algum tempo. A certa altura, o livro centra-se na morte do pai e Knausgard descreve minuciosamente, os dias que passou com o irmão a limpar a casa onde o pai vivia e que se tinha transformado num armazém de lixo e garrafas vazias – e, nesses dias, reencontra a avó paterna, já um pouco demente e, também ela, dependente do álcool.

Minucioso é o termo.

Knausgard preenche páginas e páginas com a descrição minuciosa de coisas banais.

Um exemplo, na página 275:

«Tirei um saco plástico da gaveta, esvaziei os dois cinzeiros que estavam na mesa, fechei-o e deitei-o no saco de lixo preto meio cheio que estava no canto, arranjei um pano, limpei o tabaco e as migalhas da mesa, pus o pacote de tabaco e a máquina de enrolar a um canto, sob o parapeito da janela, abri a janela e prendia-a com o ferrolho.»

Ou este outro, na página 320:

«Na cozinha, despejei a água, torci o pano e pousei-o na borda do balde, e a minha avó sentou-se no seu lugar de sempre. Quando tirei o cinzeiro da mesa, ela levantou a cortina e olhou para fora. Esvaziei o cinzeiro, voltei, peguei nas chávenas, pu-las no lava-louça, humedeci o pano da cozinha, espalhei detergente na mesa e estava a limpá-la quando Yngve entrou com um saco em cada mão. Pousou os sacos e começou a tirar coisas. Primeiro aquilo que iríamos comer e que ele pousou na bancada, quatro filetes de salmão embalados a vácuo, um saco de batatas com vestígios de terra, uma couve-flor e um pacote de ervilhas congeladas, e depois todas as outras coisas, algumas que enfiou no frigorífico e outras no armário ao lado».

De salientar o pormenor dos filetes de salmão embalados no vácuo e das batatas com vestígios de terra…

E descrições destas abundam no livro.

Mas é assim a vida, não é?… feita de rotinas, de gestos mecânicos de coisas comezinhas.

Um dos livros mais marcantes dos últimos tempos.