“A Arte de Viajar”, de Paul Theroux (2011)

—Paul Theroux nasceu no Massachusetts, em 1941 e já viveu no Malawi, onde participou num golpe de Estado, em Itália, no Uganda, onde deu aulas de inglês e conheceu a sua mulher, e em Singapura. Actualmente, vive no Hawai.

É autor de muitos romances, alguns adaptados ao cinema (The Mosquito Coast, Waldo) e, sobretudo, de livros de viagens.

Este The Tao of Travel não é, propriamente, um livro de viagens, mas sim um livro sobre livros de viagens, uma espécie de antologia de escritores que escreveram sobre viagens, reais ou imaginárias.

—No capítulo Tudo é comestível algures, escreve: «gostava muito de fufu (puré de inhames) na Nigéria, e de cobra e tartaruga na China; tracei a linha na coruja bebé porque tinha pena daquelas aves de ar atormentado empoleiradas numa gaiola, í  espera de serem escolhidas para uma refeição. Uma noite comprei uma num restaurante, por sugestão do chefe. E libertei-a, para grande consternação dele. Tendão de vaca na sopa, parecendo pedaços de Tupperware, não era gostoso. («Se tiver quatro pernas e não for uma cadeira, se tiver asas e não for um avião, ou se nadar e não for um submarino, os Cantoneses comem», disse uma vez o príncipe Filipe, e foi vaiado.) Comi uns pardais na Birmânia e falei neles em O Grande Bazar Ferroviário. Cauda de crocodilo no Zambeze era bastante vulgar, servida guisada ou em bifes. (…) Outros viajantes cantam loas ao balut, embrião de pato, comido nas Filipinas; sopa tailandesa de língua de pato; e finanziera, guisado de crista de galo, do Piemonte italiano. O lutefisk, de que W. H. Auden fez troça nas suas viagens í  Islândia, lá é muito apreciado, juntamente com o hakuri, o tubarão putrefacto. Na Sicília e na Sardenha, podem oferecer-lhe «queijo de larvas», conhecido como casu marzu, que se pode confundir com arroz contorcido. A formiga escura de rabo grande na Amazónia colombiana (hormigas culonas de Santander) é apanhada pelo povo indígena Guane e torrada e servida como um «petisco excêntrico». A Coreia está cheia de especialidades culinárias, para além do cão: dalk-bal é mitra de galinhas muito bem frita, e no bar de mariscos saeng nakji são tentáculos de polvo preparados de modo simples: um polvo pequeno, vivo, é desmanchado com uma faca, cada um dos tentáculos é cortado e, ainda a mexer, comido cru, com um molho especial. Testículos de boi (criadillas) são vulgares em Espanha, e pâté de cotovia (pâté d’alouettes) é uma pasta popular em França. Fungo de lagarta (yartsa gunbu), uma larva de dois centímetros e meio de comprimento com um tumor fungóide de cinco centímetros na cabeça, é uma maravilha gustativa com propriedades medicinais que se encontra no Butão, no Tibete e no Nepal. Larvas de formiga preta (escamoles) fazem parte do prato combinado em certas partes do México.»

Ainda sobre a cozinha de algumas regiões, Theroux cita o escritor de viagens Patrick Leigh Fermor que, sobre a cozinha de um hotel da ilha Trindade, terá dito: «a cozinha de hotel na ilha é tão horrenda que é vantajoso encomendar uma maca ao mesmo tempo que o jantar.»

Ao longo das 350 páginas, Theroux fala-nos de lugares que têm nomes sugestivos, mas que são uma decepção (como Samarcanda ou Timbuctu), dos sítios que ele considera terem sido os mais perigosos que já visitou (e inclui a Inglaterra, no dia de jogos de futebol, estando entre as claques adversárias), etc.

Um livro interessante, para ir lendo, ao mesmo tempo que se lê outro livro “de fundo”.

“O Centenário que Fugiu pela Janela e Desapareceu”, de Jonas Jonasson

Há muito tempo que não me acontecia um barrete destes: comprar um livro porque a publicidade nos garante ser algo de divertido e uma “lufada de ar fresco” e, depois, não conseguir passar das primeiras cem páginas, devido í  patetice da história.

—“O Centenário…” foi publicado na Suécia em 2009 e rapidamente ganhou fama, sendo traduzido para várias línguas (a edição portuguesa é a tradução da edição francesa). Parece que já vendeu mais de um milhão de exemplares!

Parti para a leitura deste livro com alguma expectativa, causada pelo alarido da publicidade e, também, confesso, pelo sucesso recente da trilogia de outro autor sueco, o já falecido Stieg Larsson.

Mas foi a desilusão total. A custo, fui avançando na leitura, tropeçando na falta de credibilidade da história. No dia em completa 100 anos, o velhote decide fugir do lar onde reside, apanha uma camioneta, depois de roubar uma mala com milhões de coroas a um perigoso bandido, junta-se a um sem-abrigo que vive numa estação de caminho de ferro abandonada, matam o bandido, fechando-o numa câmara frigorífica e, posteriormente, enfiam-no num contentor que vai para Adis Abeba!…

Mas o pior são os flash-back da vida do velhote. O primeiro flash-back coloca-o em plena guerra civil espanhola, tratando o general Franco por tu e o segundo coloca-o numa base militar americana, em Los Alamos, servindo café e bolinhos a Oppenheimer, durante uma reunião para o fabrico da bomba atómica!

Foi aqui que fechei o livro e o arrumei definitivamente na prateleira.

Na contra-capa do livro, está esta frase: «um livro capaz do impossível: fazer-nos ansiar pela velhice! Altamente viciante!» – Luis Filipe Borges (Boinas).

Boinas?!

Se eu tivesse lido esta frase, deste conhecido engraçadinho da nossa praça, certamente nunca teria comprado este livro!

“Love”, de Toni Morrison (2003)

—Toni Morrison, aliás, Chloe Ardelia Wofford, nasceu em 1931, no Ohio, e foi galardoada com o Prémio Nobel em 1993.

Love” é o seu oitavo romance e conta-nos a história de Bill Cosey e dos seus amores.

A diferença é que a história é contada através das mulheres que rodearam Cosey, nomeadamente, a filha e a segunda mulher, que têm praticamente a mesma idade, já que Cosey casou com uma miúda de 11 anos, quando já tinha uma filha, mais ou menos com essa idade.

—A outra diferença é que a história é contada aos solavancos no tempo, para trás e para a frente, nem sempre desvendando tudo e o leitor tem que ir juntando as peças do puzzle.

Só bem a meio do livro se tem uma ideia geral do que se passa e, mesmo assim…

Confesso que antes de ler este livro desconhecia que Toni Morrison era afro-americana. Depois, quando tomei conhecimento desse facto, percebi melhor a sua escrita. De facto, ao lermos esta história, só perifericamente damos conta que estamos perante personagens de raça negra.

A escrita de Toni Morrison é “poética”, no sentido em que utiliza imagens novas para descrever acções e sentimentos, mas a leitura do livro não é fácil e requer atenção redobrada.

A edição da Dom Quixote, com a tradução, penso que correcta, de Maria João Freire de Andrade, tem um erro de português indesculpável na página 147: «Ele estava ali para o que ela precisa-se».

Não se admite!

“O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco (2010)

Se me perguntassem qual é o tema deste romance de Umberto Eco teria alguma dificuldade em fazer um resumo correcto, tal é a diversidade de acontecimentos e de personagens que povoam estas 557 páginas.

—O livro é apresentado sob a forma do diário de um tal Simone Simonini, notário e falsificador, e única personagem inventada das histórias verídicas que percorrem os últimos anos do século 18, que passam por Turim, Palermo e Paris e envolvem Garibaldi, a Comuna de Paris, o caso Dreyfus, a guerra entre católicos, maçons e judeus, as voltas e as reviravoltas da espionagem e contra-espionagem. E muitas outras coisas.

Tantas e tão variadas que, por vezes, é difícil acompanhar a narrativa, ainda por cima porque, por vezes, ela recorre a flashback. Confesso que, í s tantas, já não sabia muito bem a quem Simonini se referia. Para complicar ainda tudo isto, Simonini assume uma dupla personalidade, sendo por vezes o abade Dalla Picolla…

Por todo o texto perpassa um ódio intenso aos hebreus, como neste naco:

«E quando eu já era suficientemente crescido para entender, recordava-me de qu o hebreu, além de vaidoso como um espanhol, ignorante como um croata, cúpido com um levantino, ingrato como um maltês, insolente como um cigano, imundo como um inglês, gorduroso como um calmuco, imperioso como um prussiano e maledicente com um astiense, é adúltero por cio irrefreável – depende da circuncisão, que os torna mais erécteis, com uma desproporção monstruosa entre o nanismo da corporatura e a capacidade cavernosa daquela sua excrescência semimutilada.»

Dos padres, Simonini também não gostava:

«Começas a tê-los í  tua volta assim que nasces, quando te baptizam, voltas a encontrá-los na escola, se os teus pais foram tão beatos que te confiaram a eles, depois há a primeira comunhão, e a catequese, e o crisma; o padre está no dia do teu casamento a dizer-te o que deves fazer no quarto, e no dia seguinte a perguntar-te na confissão quantas vezes fizeste aquilo para poder excitar-se por detrás da grade. Falam-te com horror do sexo, mas todos os dias tu os vês sair de um leito incestuoso sem terem sequer lavado as mãos, e vão comer e beber o seu senhor, para depois o cagar e o mijar.

Repetem que o seu reino não é deste mundo, e metem as mãos em tudo aquilo que podem roubar. A civilização não chegará í  perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra tiver sido libertada daquela escória».

Mas além odiar os judeus, desprezar os padres e não poder com os jesuítas, também não vai muito í  bola com os alemães:

«Aos alemães conheci-os, e até trabalhei para eles: o mais baixo nível de humanidade concebível. Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperatividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montões desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos século passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo das estradas. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de uma alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto a das outras raças apenas quinze.»

E, de quando em vez, frases como esta: «uma mística é uma histérica que encontrou o seu confessor antes do seu médico».

Há autores que ficam colados a um determinado livro e será difícil que Umberto Eco se consiga descolar de “O Nome da Rosa” e, mesmo sem querer, acabamos por fazer comparações.

Mas é verdade que “O Cemitério de Praga” não me despertou tanto interesse.

Os alemães – fezes, suor e urina

“Um alemão produz, em média, o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função intestinal em prejuízo da cerebral, que demonstra a sua inferioridade fisiológica. Nos tempos das invasões bárbaras, as hordas germânicas cobriam o percurso com montes desrazoáveis de matéria fecal. Por outro lado, também nos séculos passados, um viajante francês percebia imediatamente se já tinha atravessado a fronteira alsaciana pela anormal dimensão dos excrementos abandonados ao longo da estrada. Mas se fosse só isso: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de um alemão contém vinte por cento de azoto, enquanto o das outras raças apenas quinze”.

– in “O Cemitério de Praga”, de Umberto Eco

“Os Crimes dos Viúvos Negros”, de Isaac Asimov (1971)

Isaac Asimov (1920-1992) é sobretudo conhecido pelas suas obras de ficção científica. No entanto, também escreveu algumas novelas e pequenas histórias que se podem enquadrar na chamada literatura policial.

—“Os Crimes dos Viúvos Negros” reúne uma dúzia de pequenas histórias publicadas no Ellery Queen’s Mystery Magazine, muito ao jeito dos mistérios de Connan Doyle ou Agatha Christie.

O esquema é sempre o mesmo: um grupo de homens reúne-se uma vez por mês, í  volta de uma refeição. Rejeitando a presença de mulheres, têm sempre um convidado que lhes propõe um mistério. Segue-se uma espécie de interrogatório e, no final, é o mordomo, Henry, que deslinda a história.

Confesso que o livro me desiludiu. As histórias são demasiado rebuscadas e os diálogos são fastidiosos.

Prefiro o Asimov dos robots.

“O Projecto Janus”, de Philip Kerr (2006)

Philip Kerr nasceu em Edinburgo, em 1956, é autor de 14 romances e colaborador de vários jornais britânicos.

—“O Projecto Janus” é um policial, í  boa maneira de Rex Stout ou Raymond Chandler, salvo as devidas distâncias.

O herói da história é um detective alemão, Bernie Gunther, que foi polícia antes da 2ª Grande Guerra, membro dos SS durante a Guerra, sem nunca ter pertencido ao partido nazi e que, depois da guerra, decide seguir a carreira de investigador particular.

Vai ser uma carreia curta, no entanto, já que Gunther se vê envolvido numa trama que o vai obrigar a mudar de vida. Essa trama envolve um médico nazi que fazia experiências de vacina contra a malária em prisioneiros, agentes da CIA e grupos de judeus perseguidores de criminosos nazis.

A acção decorre na Alemanha e na íustria e a recriação desses locais, no post-guerra, parece muito credível.

A linguagem mordaz de Kerr aproxima-se bastante dos escritores do romance negro norte-americano.

Exemplos:

«(a porta) abriu-se, revelando um homem numa cadeira de rodas, com os joelhos cobertos por uma manta e uma enfermeira de uniforme atrás. A enfermeira tinha um ar mais quente do que a manta e, instintivamente, percebi qual delas preferia ter ao colo. Estava a começar a sentir-me melhor.»

Outro exemplo:

«Pedi também um conhaque duplo por causa do frio. Pelo menos, foi a justificação que dei a mim mesmo. Mas sabia que era mais por causa do primeiro encontro com os advogados de Gruen. Os advogados causam-me inquietação. Como a ideia de apanhar sífilis.»

E mais:

«- Se quer saber, pode atribuir-se a culpa toda da Reforma í  cerveja forte – disse. – O vinho é uma bebida perfeitamente católica. Torna as pessoas ensonadas e cúmplices. A cerveja só as torna agressivas. E olhe para os países que consomem muita cerveja. São sobretudo protestantes. E os países onde se bebe muito vinho? Católicos romanos.»

Já há alguns anos que não lia um policial tão divertido.

“Contos Carnívoros”, de Bernard Quiriny (2008)

—Bernard Quiriny nasceu em 1978, na Bélgica e este é o seu primeiro livro publicado em português (edição Ahab, tradução de Miguel Serras Pereira).

São 14 histórias surpreendentes, umas mais inspiradas que outras, mas todas com uma linguagem que faz lembrar Edgar Alan Poe.

A imaginação de Quiriny permite-nos descobrir o bispo argentino que tem dois corpos, que usa aleatoriamente, a mulher-laranja, que se deixa descascar e beber pelos amantes, a tribo da Amazónia cuja língua ninguém compreende, ou o homem que consegue ouvir as pessoas falarem sobre ele, í  distância.

E ainda há Pierre Gould e Renouvier, duas personagens que surgem em várias histórias, não sendo os mesmos em todas elas.

Aconselho.

“O Colosso de Maroussi”, de Henry Miller (1941)

Henry Miller (1891-1980) não é um autor consensual.

Eu gosto muito de Henry Miller.

Comecei por ler, em 1972, Pesadelo Climatizado (The Air Conditioned Nightmare, 1945) e, no ano seguinte, O Olho Cosmológico (The Cosmoligical Eye, 1939), ambos em edição Estampa, numa colecção em que foram divulgados grandes autores, praticamente desconhecidos em Portugal.

Em 1977 li Sexo em Clichy (Quiet Days in Clichy, 1956), em edição brasileira e, dois anos depois, Um Diabo no Paraíso (A Devil in Paradise, 1956).

Em 1980 e 81, devorei os grandes clássicos de Miller: Trópico de Câncer (1934), Trópico de Capricórnio (1939), Sexus (1949), Plexus (1952) e Nexus (1960).

Em 1985 li, meio enjoado, o pornográfico Opus Pistorum (escrito em 1941 e descoberto em 1983) e Cartas a Anais Ninn (1965).

Em 1993, foi a vez de Crazy Cock (escrito em 1930 e publicado em 1991) e, finalmente, em 1997, Moloch (escrito em 1927 e publicado em 1992).

—E ao longo de todos estes anos, li várias referências a este O Colosso de Maroussi (1941), mas só agora, graças a esta edição da Tinta da China (tradução de Raquel Mouta), consegui lê-lo.

Alguns críticos e o próprio Miller consideram esta como a sua melhor obra literária. Não sei dizer se isso é verdade. Trata-se, de facto, de um livro excessivo, ao bom estilo exagerado de Miller, em que o autor expõe as suas ideias utópicas sobre a Humanidade.

Em 1941, Miller decidiu fazer uma pausa na sua actividade literária e, deixando Paris, onde residia, foi passar seis meses í  Grécia. A segunda guerra mundial já tinha começado há dois anos, mas Miller passa-lhe ao lado, tão fascinado que está pela Grécia, que ele elogia até ao infinito.

Página 28: «Os homens podem andar por aí no seu corropio insignificante e inútil, até mesmo na Grécia, mas a magia divina ainda aqui é operante e, por muito que a raça humana faça ou tente fazer, a Grécia continua a ser um local sagrado – e tenho a convicção de que assim continuará a ser até ao fim dos tempos.»

Claro que Miller não podia adivinhar que a Grécia dos nossos dias iria estar de joelhos, humilhada pelos Mercados e que o facto de ter sido o berço da civilização ocidental tem tanto valor como cascas de amendoins.

Fascinado pelos locais históricos gregos, Miller encontra neles a solução para todos os males.

Página 100: «Não precisamos de melhores instrumentos cirúrgicos, precisamos de uma vida melhor. Se todos os cirurgiões, todos os psicanalistas, todos os médicos em geral pudessem ser afastados da sua actividade e reunidos por um breve período no grande anfiteatro de Epidauro, se pudessem discutir em paz e sossego as necessidades urgentes e fundamentais da humanidade em geral, a resposta seria rápida e unânime: REVOLUí‡íƒO».

Ao longo do livro, Miller vai visitando o Peloponeso, Olímpia, Delfos, algumas ilhas gregas, faz amizade com escritores e artistas gregos, mas o que lhe interessa mais é o comum dos mortais. Glorifica a pobreza. Endeusa a simplicidade e diaboliza a América, como símbolo do capitalismo furioso.

E é excessivo nas palavras. Por exemplo, isto, a propósito de Saturno:

Página 127: «Saturno é um símbolo vivo da tristeza, morbidez, desgraça e fatalidade. A sua tonalidade de um branco leitoso desperta associações inevitáveis com tripas, matéria cinzenta, órgãos vulneráveis e ocultos, doenças repugnantes, tubos de ensaio, espécimes de laboratório, catarro, reuma, ectoplasma, tonalidades melancólicas, fenómenos mórbidos, guerras de íncubus e súcubus, esterilidade, anemia, indecisão, derrotismo, obstipação, antitoxinas, romances fracos, hérnias, meningite, letra-morta, burocracia, condições de vida da classe trabalhadora, fábricas clandestinas, a YMCA, encontros do Esforço Cristão, sessões espíritas, poetas como T. S. Elliot, fanáticos como John Alexander Dowie, curandeiras como Mary Baker Eddy, estadistas com Chamberlain, fatalidades triviais como escorregar numa casca de banana e partir a cabeça, sonhar com dias melhores e ficar entalado entre dois camiões, afogar-se na própria banheira, matar acidentalmente o nosso melhor amigo, morrer de soluços e não no campo de batalha, e assim por diante, ad infinitum».

Miller estava, nesta altura, muito zangado com a América e verdadeiramente apaixonado pela Grécia.

Página 245: «Hoje, como ontem, a Grécia é extremamente importante para quem pretende encontrar-se a si mesmo. A minha experiência não é única. E talvez devesse acrescentar que não há povo no mundo que precise mais daquilo que a Grécia tem para oferecer do que os americanos. a Grécia não é apenas a antítese da América, é mais do que isso, é a solução para os males que nos atormentam. Economicamente, pode parecer insignificante, mas espiritualmente a Grécia ainda é a mãe de todas as nações, a fonte da sabedoria e da inspiração».

Não deixa de ser irónico ler estas palavras num momento em que a Grécia está tão em baixo, dependente da ajuda internacional e, internamente, a braços com uma crise de identidade.

O Colosso de Maroussi é um livro curioso, sobretudo, pelos excessos e pela paixão de Miller e acaba por ser um livro de viagens, datado, é certo, mas vivido.

Ray Bradbury – morreu o autor de Fahrenheit 451

No passado dia 5, morreu Ray Bradbury. Tinha 91 anos e foi um dos mais influentes autores de ficção científica.

—Ficou famoso, sobretudo, por Fahrenheit 451, novela publicada no ano em que eu nasci, 1953.

Muito antes de ler o livro, li a adaptação cinematográfica que François Truffaut fez de Fahrenheit 451. O filme foi estreado em Portugal em dezembro de 1967 e já não me lembro se o vi no Estúdio 444 ou no Quarteto.

Lembro-me, no entanto, que o filme me impressionou, não só pela  Julie Christie, que impressionava muito boa gente nos anos 60, mas sobretudo pela história: uma sociedade onde os livros são proibidos; quem é apanhado com livros é severamente castigado e os livros são destruídos por uma brigada especial de bombeiros, que os queimam í  temperatura de 451 graus Fahenheit. Por isso, os defensores dos livros decidem decorar as grandes obras; cada militante é um livro. Encontram-se clandestinamente para recordarem, uns aos outros, as grandes obras, que assim se manterão, através da tradição oral.

E não terá sido através da tradição oral que as grandes obras nasceram?

Bradbury foi ainda autor de muitas short stories de ficção científica, muitas delas adaptadas ao cinema ouÂ í  televisão.

De Bradbury, para além de Fahrenheit 451, li ainda Muito Depois da Meia-Noite (Long After Midnight, 1974) e A íšltima Cidade de Marte (I Sing The Body Electric, 1948-1969), duas colectâneas de contos publicadas na colecção Argonauta, da qual fui fã na década de 80, e também o romance A Morte é um Acto Solitário (Death is a Lonely Business, 1985).

Entretanto, afastei-me da ficção científica e acho que já não tenho muita pachorra para esse estilo de histórias; ou então, escasseiam autores como Bradbury, Asimov, Philip K. Dick ou Robert Heinlein.