“A Questão Finkler”, de Howard Jacobson (2010)

—Vencedor do Man Booker Prize de 2010, aqui está um romance que me diz pouco.

O The Times fala na musicalidade da linguagem de Jacobson. Talvez no original inglês isso se note – em português, não dei por nada de especial.

O romance conta-nos a história de Julian Treslove, um tipo banal, que, depois de ter sido assaltado, na rua, por uma carteirista, que o insulta, chamando-lhe judeu, decide transformar-se num verdadeiro judeu.

Treslove tem dois grandes amigos, Libor e Finkler, ambos viúvos e ambos judeus, mas não muito praticantes. Libor, o mais idoso, é mais ou menos indiferente e Finkler, assume-se como judeu envergonhado, por causa do conflito israelo-árabe.

O livro está cheio de piadas sobre os judeus. Os filmes do Woody Allen também e, na minha opinião, têm mais piada.

Não me convenceu.

“Life” – de Keiht Richards, com James Fox

Diz-se que, quando o mundo acabar, restarão as baratas e Keith Richards. Ao ler esta autobiografia percebe-se porquê.

Numa linguagem adequadamente coloquial, o guitarrista e co-fundador dos Rolling Stones conta-nos as histórias da sua vida – e muitas histórias tem ele para contar!

Começamos pela infância de Keith, na Inglaterra do post-guerra, e ficamos a saber que os pais viviam com dificuldades. Filho único da Doris e do Bert, Keith cedo se destacou pelo mau comportamento:

Na página 62 conta-nos a perseguição que ele e outros moviam a um miúdo que se «julgava um generalzinho, só por ser capitão da equipa desportiva, o melhor da turma, e o representante de todos os delegados. Andava sempre de peito inchado e era muito arrogante com os miúdos mais novos. Decidimos pagar-lhe da mesma moeda. Lembro-me bem dele, chama-se Swanton. Chovia e fazia frio. Primeiro, despimo-lo, depois perseguimo-lo até ele trepar a uma árvore. Só lhe deixámos o boné com as fitinhas douradas. Muito depois de ele descer da árvore, o Swanton viria a tornar-se professor de estudos medievais na Universidade de Exeter.»

A memória de Richards é prodigiosa, lembrando-se de como e quando e com quem tocou o quê – ou então, foi capaz de manter uma espécie de diário, estes anos todos, o que pareceria improvável para um tipo que, como ele, foi heroinómano muitos anos, para além de ter experimentado todo o tipo de drogas, lícitas e, sobretudo, ilícitas.

—Richards conta-nos como nasceram os Rolling Stones, uma banda despretensiosa, que apenas queria tocar blues de Chicago mas que, quase por acaso, começou a fabricar grandes êxitos. Um dos primeiros foi As Tears Go By, que valeram a Richards, as primeiras libras a sério.

Diz ele, na página 181: «Ainda me lembro do primeiro dinheiro a sério que recebi. (…) Punha-me a olhar para as notas. Contava-as, voltava a admirá-las. Tocava-as, cheirava-as. Não fiz nada com elas! Só as guardei numa caixa, enquanto pensava: “Foda-se! A massa que eu tenho!” Não queria comprar nada em particular e também não a queria estoirar. Pela primeira vez na vida, tinha dinheiro… “Talvez compre uma camisa nova, cordas novas para a guitarra”. Mas era, sobretudo: “Nem acredito nesta merda!” Com as fuças da rainha bem impressas, assinadas pelo tipo certo. Nunca tinha tido tanto dinheiro nas mãos., mais do que o meu pai ganhava num ano, ele que se matava a bulir.»

Richards era mesmo um pobretanas e, graças í  música, tornou-se num milionário, proprietário de Bentleys e de várias mansões em, pelo menos, três continentes.

Autor de muitas das músicas dos Stones (Mick Jagger, embora também componha, dedica-se mais í s letras), Richards vai-nos contando os altos e baixos da banda, a morte de Brian Jones, a saída de Bill Wyman, a entrada e a saída de Mick Taylor, a entrada de Ronnie Wood e, por vezes, não é nada meigo para com os seus companheiros.

Critica muito Brian, pelo seu gosto pelo vedetismo e por andar sempre tão drogado que pouco contribuía para a banda, fala, amargamente, dos desentendimentos com Jagger, nos últimos 20 anos, mais coisa menos coisa, o que não os impediu de continuar a compor e fazer mega-digressões. De Charlie Watts, o baterista, só diz bem…

Fala-nos, também, das suas namoradas e esposas e, claro, da sua dependência da heroína.

Na página 329, a propósito de uma das muitas curas a que se submeteu: «Não sei bem qual é a ideia que as pessoas em geral fazem de uma verdadeira crise de privação. (…) O corpo revira-se todo de dentro para fora; rejeita-se a si mesmo durante três dias. Sabes que depois disso há-de acalmar, mas serão os três dias mais longos da tua vida. É então que te perguntas: “Por que raio me sujeito eu a isto, quando podia estar a viver uma puta de uma vida perfeitamente normal de estrela de rock cheia de pasta?” Em vez disso, estás ali aos vómitos e a trepar pelas paredes. Por que é que te sujeitas a isso? Não sei, continuo sem saber. Com a pele arrepiada e as tripas num remoinho, braços e pernas aos safanões incontroláveis, vomitas-te e cagas-te ao mesmo tempo, tens merda a sair-te do nariz e dos olhos. í€ primeira vez que acontece a sério, um homem sensato diz: “Estou agarrado”. Mas nem isso impede um homem sensato de voltar í  carga.»

Uma boa parte do livro é dedicada í s digressões dos Stones, começando pelas primeiras, em ambiente familiar, com um ou dois autocarros, até í s mais recentes, que envolvem centenas de pessoas e de veículos. Os acompanhantes dessas digressões podem ser, por vezes, bem curiosos, como um tal Dr. Bill (nome fictício), que acompanhou a banda na digressão de 1972.

Richards conta, na página 333: «Mas o Dr. Bill estava ali, sobretudo, para caçar pachachas. Sendo ele um médico jovem e atraente, foi coisa que não lhe faltou. Mandou fazer cartões de visita: “Dr. Bill”, digamos assim, “Médico dos Rolling Stones”. Antes do concerto começar, ele escrutinava cuidadosamente o público e entregava vinte ou trinta cartões í s gajas mais boas que encontrasse, mesmo que estivessem com namorado. No verso do cartão, o nome do hotel e o número da suite. E mesmo as tipas com namorado apareciam, mais tarde, para o visitar. Mostravam o cartão na recepção e o Dr. Bill sabia que de entre seis ou sete miúdas, pelo menos uma ou duas havia de comer, só por lhes prometer que as apresentaria aos Stones.  Queca garantida todas as noites. Além disso, tinha uma mala cheia das mais variadas substâncias, Demerol ou qualquer merda que lhe pedisses.»

Problemas com as autoridades teve Richards de sobra, tendo estado detido várias vezes, a maior parte delas por posse de droga. Mas, certa vez, na Austrália, a razão foi outra.

Conta ele, na página 355: «E ainda houve a pequena temporada que eu e o Bobby passámos com duas gajas que engatámos em Adelaide. (…) Tinham ácido, que nem é uma das minhas drogas preferidas, mas tínhamos dois ou três dias de folga em Adelaide, as tipas eram jeitosas e viviam num pequeno bungalow hippie no cimo de uma colina, muitas velas e incenso e candeeiros a petróleo cheios de fuligem. (…) E quando tivemos que partir para Perth, na outra ponta da porra do continente, , dissemos-lhes: “Por que é que não vêm connosco?” Vieram mesmo. Estávamos todos mais pedrados que o Grand Canyon quando entrámos no avião. A meio caminho entre Adelaide e Perth, saíram de repente as duas da casa de banho, seminuas. Tinham-se estado a comer lá dentro e saíram aos saltos e aos risinhos, as destrambelhadas das tipas. (…) E, de facto, detiveram-nos aos quatro por algum tempo, depois de aterrarmos.»

Quase no final do calhamaço, Keith Richards conta o episódio recente, em que caiu de uma árvore, tendo feito uma fractura do crânio e respectivo hematoma subdural. E diz, na página 562: «Receitaram-me um medicamento chamado Dilantin, que torna o sangue mais espesso. Por causa disso, não voltei a snifar coca, que o torna mais liquefeito, tal como a Aspirina. Foi o Andrew quem mo explicou, na Nova Zelândia. “Faça o que fizer, acabou-se a cocaína!” Tudo bem, pá. A bem dizer, já tinha dado í  narina quanto chegasse para uma vida inteira; não sinto a falta da coca nem um bocadinho. Acho que foi ela que se fartou de mim.»

De facto, com tantos excessos cometidos ao longo de quase 70 anos, chegamos í  conclusão que foram as drogas e o álcool que se fartaram deste Rolling Stone genuíno.

“Life” é um livro que se lê com agrado, como um conjunto de histórias mais ou menos divertidas e, ainda, como um testemunho de um dos protagonistas da revolução que a música pop-rock causou nos usos e costumes do mundo ocidental, nos finais da década de 60.

Como bónus, Richards explica-nos como afina as suas mais de cem guitarras, com 5 cordas e em open tunning.

“Palácio da Lua”, de Paul Auster (1989)

—Se este tivesse sido o meu primeiro romance de Auster, de certeza que teria ficado agradavelmente surpreendido. Acontece que Moon Palace é o meu 16º romance de Paul Auster e só agora o li porque esteve fora da circulação alguns anos.

Como é habitual nos romances de Auster, o acaso impera.

Marco Stanley Fogg, que chega a Nova Iorque em 1965, com 18 anos, procura trabalho para custear os seus estudos universitários. Respondendo a um anúncio, torna-se acompanhante de um intelectual idoso, que se desloca em cadeira de rodas e que tem um temperamento irascível. Fogg vai descobri mais tarde que esse homem é, afinal, o seu aví´ e, no decurso dessa descoberta, acaba por descobrir também o seu pai.

Pelo meio, Auster conta-nos inúmeras histórias e ficamos com a sensação que a mente do escritor fervilha de episódios, acontecimentos, casos, vidas e que ele próprio tem dificuldade em filtrar o que é importante e é acessório e a trama central fica de tal modo enredada nas histórias laterais que, no final, não és capaz de fazer um resumo coerente do livro.

Esse “defeito” das histórias de Auster parece-me exacerbado neste livro e, embora eu goste, em geral, das obras dele, esta história não me entusiasmou muito.

“Em Casa – Breve História da Vida Privada” (2010), de Bill Bryson

Se Bill Bryson não existisse, tinha que ser inventado. Não conheço nenhum outro autor como ele. Para além dos livros de viagens, Bryson consegue escrever sobre coisas que mais ninguém se dá ao “incómodo” de escrever. São trivialidades, curiosidades históricas, pormenores que talvez tenham mudado a história e o mundo; por exemplo, foi graças í  leitura deste livro que me apercebi da importância do desenvolvimento da anestesia na história da humanidade.

Bryson aproveita qualquer coisa para falar de uma coisa qualquer e aplica esta técnica em todos os seus livros. Pode aproveitar um passeio pelas montanhas norte-americanas para nos falar de botas de sola de borracha ou contar episódios da sua infância e, a propósito, falar de quem inventou o abre-cápsulas.

Dele, já li, sempre com muito gosto, Made in America (1994), onde aprendi, por exemplo, que foi na América que foi “inventado” o chop suey, as french fries e muita da comida “italiana”, Crónicas de Uma Pequena Ilha (1995), uma colecção de crónicas sobre o Reino Unido, Por Aqui e Por Ali (1997), a descrição bem humorada de uma caminhada de mais de três mil quilómetros pelos Apalaches norte-americanos, Notas sobre um País Grande (1998), uma série de crónicas sobre os States, Breve História de Quase Tudo (2003), cujo título diz tudo sobre quase nada e A Vida e as Aventuras do Rapaz Relâmpago (2006), onde, a propósito da sua infância, nos fala da invenção do frigorífico e da televisão, da banda desenhada e dos gelados, da Grande Guerra e do algodão doce.

—Neste At Home – A Short History of Private Life, a propósito da casa onde vive, em Inglaterra, Bryson vai-nos contando, divisão a divisão, como surgiram as várias dependências de uma habitação, como se desenvolveram as lareiras, as roupas, a iluminação, os estuques, os revestimentos, os jardins, a relação entre os senhores e os criados, a alimentação, as pragas, os animais domésticos e muitos etc.

O que mais me impressiona nos livros de Bryson é a quantidade de pormenores “insignificantes” que não encontraríamos em mais lado nenhum, fruto, certamente, de uma pesquisa incessante e, diria, obsessiva.

Os exemplos sucedem-se. O que serão, por exemplo, os rotten boroughs?

“Os rotten boroughs eram aqueles (círculos eleitorais) em que um membro do Parlamento podia ser eleito por um pequeno número de pessoas, como acontecia em Bute, na Escócia, onde apenas um residente em catorze mil tinha o direito de votar, pelo que, obviamente, poderia eleger-se a si próprio.”

E de onde vem o nome da banda rock Jethro Tull, cujo primeiro êxito foi “Living in the Past?”

Bryson revela: “Os agricultores também beneficiaram de um novo aparelho com rodas inventado, por volta de 1700, por Jethro Tull, um agricultor e pensador agrícola de Berkshire”.

A curiosidade de Bryson leva-o a coscuvilhar estatísticas, em busca de informações de que mais nenhum autor se lembraria. A propósito das escadas e dos acidentes e elas podem provocar, escreve: “Não surpreende que descer uma escada seja muito mais arriscado que subir. Quase 90% de todas as lesões ocorrem durante a descida. A probabilidade de sofrer uma queda grave é de 57 % em lanços direitos de escadas, mas apenas de 37% em escadas com algum desvio. Os patamares também de obedecer a uma determinada dimensão – o comprimento de um degrau mais o comprimento de um passo é considerado o correcto – para não quebrarem o ritmo do utilizador da escada. O ritmo interrompido é considerado o prelúdio para uma queda”.

A pouca importância que a Medicina tinha na vida das pessoas dos séculos passados, devido ao pouco que tinha para oferecer í s pessoas, está bem patente neste exemplo, que Bryson nos conta:

“Sem grande surpresa, por vezes as pessoas, levadas pela dor e por uma cautela natural em relação aos médicos, experimentavam remédios extremos em casa. Gouverneur Morris, um dos signatários da Declaração de Independência, matou-se ao forçar uma barba de baleia pelo pénis acima, para tentar limpar um bloqueio urinário.”

A propósito dos hábitos de higiene, Bryson explica que, até há bem pouco tempo, a lavagem de todo o corpo não era uma técnica muito apreciada:

“Lavar as mãos muito, os pés pouco e a cabeça nunca, era um provérbio inglês comum. A rainha Isabel, numa citação  muito referida, tomava banho sempre uma vez por mês, ‘quer ela precise ou não’. Em 1653, John Evelyn, o cronista, registou a decisão hesitante de lavar o cabelo anualmente. Robert Hooke, o cientista, lavava os pés com frequência (porque o tranquilizava), mas parece não ter passado muito tempo húmido acima dos tornozelos. No diário que manteve durante nove anos e meio, Samuel Pepys só refere uma vez que a esposa tenha tomado banho. Em França, o rei Luis XIII ficou sem tomar banho quase até ao sétimo aniversário, em 1608.”

E chega de citações. Bryson enche-nos destas pequenas informações e mantem-nos agarrados í  leitura de mais este livro, ao longo das suas mais de 500 páginas.

 

“A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao”, de Junot Diaz (2007)

Junot Diaz é um jovem escritor, natural da República Dominicana (nasceu em 1968) e este romance é o seu primeiro trabalho de fí´lego, e logo ganhou o Prémio Pulitzer de 2008.

—O romance conta a história da vida, breve, de Oscar, um dominicano obeso e virgem, que não consegue cumprir a tradição machista dos nascidos em Santo Domingo. Tímido e envergonhado pela sua obesidade, Oscar mantém-se afastado das raparigas e embrenhado nos heróis da ficção científica e da banda desenhada.

Paralelamente, Diaz aproveita para nos transmitir o medo, a repressão, o arbítrio da ditadura de Trujillo, El Jefe, que dominou a República Dominicana entre 1930 e 1961. Trujillo era assim uma espécie de Salazar das Caraíbas e a sua ditadura fez com que muitos dominicanos emigrassem para os Estados Unidos.

A propósito de Trujillo, diz o autor:

«Perguntem a qualquer um dos vosso familiares mais velhos e eles dir-vos-ão: o Trujillo pode ter sido um Ditador, mas era um Ditador dominicano, o que é um outro modo de dizer que era o Principal Bellaco do País. Acreditava que, na República Dominicana, todas as ratas eram, literalmente, suas. É um facto bem documentado que, na República Dominicana do Trujillo, se uma pessoa pertencesse a uma dada classe e deixasse uma filha jeitosa perto do El Jefe, numa semana já ela estava a mamar o coiso dele como uma qualquer profissional e não haveria nada que se pudesse fazer acerca disso!»

Esta era a grande diferença entre Trujillo e Salazar, já que o nosso ditador foi muito mais discreto com as mulheres, e se alguma lhe mamou o coiso, é coisa que desconhecemos…

Livro interessante, mas não muito…

í“ Bonifácio – vai dar banho ao cão!

João Bonifácio é aquele senhor que escreve críticas de discos, livros, e outras coisas. Além de escrever, publica-as! No Público.

Foi ele que, numa conversa com o fadista Camané, se referiu ao poema de Jacques Brel, “Ne me quittes pas”, traduzindo «l’ombre de ton ombre, l’ombre de ton chien» por “o ombro do teu cão»!

Desde esse texto inesquecível, de abril de 2007, que nunca mais li nada do Bonifácio, mas hoje, não resisti a ler a crítica que ele faz ao livro “Pornopopeia“, de Reinaldo Moraes.

Claro que Bonifácio exultou com o livro! Pois se ele é só buceta, coca e malandragem!

Não discuto gostos. Penso que o livro em questão é uma obra menor, de temática repetitiva e que, apesar de ter caído no goto de alguns críticos, não vai ficar na história.

Mas o que não posso aceitar é que o Bonifácio escreva esta alarvidade:

«”Pornopopeia” tem sido comparado ao Henry Millers e aos Bukowskis, mas é um erro. Miller e Bukowski eram escritores menores que nunca é demais menorizar. Moares é outra loiça.»

Com que então, Bonifácio, Henry Miller é um escritor menor e Reinaldo Moraes é outra loiça?

Vai mas é dar banho ao ombro do teu cão, pá!

 

“Némesis”, de Philip Roth (2010)

Roth anda obcecado com o acaso, com as circunstâncias da vida que podem mudar todo um plano laboriosamente construído, com a impotência dos seres perante a força dos acontecimentos inesperados e imprevisíveis.

Acaba por ser esse o tema dos seus últimos livros, Todo-o-mundo (2006), Indignação (2008) e A Humilhação (2009).

—Em Némesis, a força das circunstâncias é representada pela poliomielite. A acção decorre em Newark, nos anos 40. Um jovem judeu, Bucky Cantor, fica livre da tropa e, portanto de participar na 2ª Grande Guerra, devido a sofrer de alta miopia. Frustrado por não poder combater ao lado dos seus amigos, dedica-se ao desporto e dá aulas a miúdos do bairro judeu. Cantor é um modelo de jovem, amado por novos e velhos. Tem uma jovem namorada e pensa em casar e constituir uma família. Mas, com o Verão, vem uma nova epidemia de poliomielite que, naqueles tempos pré-vacina, é devastadora.

E contra essa força do acaso, não é possível lutar. Podes ser muito bem comportado, educado, grande atleta, cuidadoso – podes ser tudo o que há de bom, que nada disso te vai salvar da morte ou de uma paralisia deformante e incapacitante.

Tal como nos outro livros, Deus está ausente, ou melhor, está presente mas nada faz. A propósito do velório de um jovem de 12 anos, morto pela polio, Roth escreve:

«O Sr. Cantor teria achado uma afronta muito menor se as pessoas ali reunidas pelo luto se declarassem oficiantes da majestade solar, filhas de uma divindade solar justa, e, í  maneira fervorosa das antigas civilizações pagãs do nosso hemisfério, se entregassem a uma dança ritual do sol í  volta da campa do rapaz morto (…) – muito melhor honrar com as nossas orações o encontro diário e tangível com esse ubíquo olho de ouro isolado no corpo azul do céu e o seu poder imanente de incinerar a terra – do que engolir a mentira oficial segundo a qual Deus é bom e dobrar a cerviz perante um assassino de crianças a sangue frio.»

Afinal, aquilo a que chamamos Deus talvez não passe do Acaso, e pode, ou não, ser bom. Como refere Roth: «Umas vezes temos sorte, outras não. Toda a biografia é acaso e, a começar pela concepção, o acaso – a tirania da contingência – é tudo.»

Apenas uma curiosidade: no fim do livro, um dos jovens reinado por Bucky Cantor, reencontra o seu antigo treinado, muitos anos depois e pergunta-lhe como é a sua vida agora. Cantor responde: «Eu não sou pessoa de grandes convivências, Arnie. Vou ao cinema. Aos domingos desço até ao Ironbound e como um bom jantar português. Gosto de me sentar no parque quando o tempo está bom. Vejo TV. Vejo os noticiários.» (sublinhado meu)

Bucky Cantor, judeu de Newark, gosta de comer um bom jantar português.

Tem bom gosto.

Roth também.

 

 

“Como É Possível Ser Português?”, de Michel BJ Cartier

Nascido em 1939, em França, Cartier vive em Portugal há anos o que o fez aventurar-se a escrever esta espécie de dicionário, directamente em português.

—Não faria mal nenhum, não fosse o caso de, aqui e ali, não se perceber o que ele quer dizer. Além disso, não houve grande cuidado na revisão do texto, já que Cartier repete a mesma coisa várias vezes, em partes diferentes do livro. Por exemplo, sobre o herói de BD Tintin, esclarece que o nome do seu autor Hergé, é um pseudónimo de Georges Remi, pelo menos, em dois trechos do livro. Também refere, em três ocasiões diferentes, que a palavra “azar” provém do árabe az-zahr, que significa dado. E estes são apenas dois de muitos exemplos de repetições desnecessárias e que poderiam ter desaparecido se o texto tivesse sido revisto.

Como estrangeiro que é, Cartier sacou bem alguns vícios da nossa língua coloquial e quase que consegue ter alguma graça.

Exemplo, com a palavra “andar”:

«Deslocar-se a pé. Em outras palavras, indica e traduz a locomoção. Mas é também sinónimo de piso (Eu moro no 5º andar). e mesmo de apartamento (Visite o nosso andar modelo). Não confundir com “andor” (apesar do facto de que o mesmo não pode andar sozinho). Se alguém pode perfeitamente andar a correr, a recíproca não existe (e porque não?). Usa-se também peremptoriamente associado com “tocar” na expressão definitiva, sinónima de “E pronto!” ou “Vamos embora!”: Toca a andar! (pronunciada: tocandar). Encontra-se também em expressões curiosas e automáticas feitas principalmente pelo telefone, tais como: “Onde é que tu andas?”, ou: “O que é que tu andas a fazer?” Os pais podem também chamar a atenção do filho ou da filha, exigindo: “Anda cá!”»

Se o autor se tivesse cingido í  análise destas palavras ou frases da nossa linguagem do dia-a-dia, talvez tivesse conseguido fazer um livrinho coerente e simpático, fazendo lembrar um brilhante Elucidário de Conhecimentos Quase Inúteis (1985), de Roby Amorim, pequena publicação onde eram explicadas as origens dde algumas expressões correntes, como “ir para o maneta”.

Mas Cartier mistura muita coisa, pequenas informações linguísticas, datas históricas, citações de filósofos e escritores franceses e até referências í  actualidade política (uma das entradas, por exemplo, é TGV…)

E por vezes, parece que se perde no português, que perde o fio í  meada. Um exemplo: a propósito da palavra “dias”, espanta-se por usarmos “segunda, terça, quarta, quinta, sexta”, enquanto os ingleses e os franceses têm um nome para cada dia da semana. Mas, depois, acrescenta: «Infelizmente, os Portugueses não são os únicos originais neste aspecto: também os Gregos (apesar dos inumeráveis deuses da Antiguidade) “traduzem” os quatro primeiros dias da semana, contando por números ordinais (no feminino, como em Português), depois do Sábado (Savvato que é neutro) e do Domingo (Kuriaki, também feminino); Sexta-feira, também no feminino, se diz Paraskevi. Onde é que se encontra e exclusividade ou originalidade portuguesa? Mas, de todo o jeito e em poucas palavras: Deus seja louvado!»

Perceberam? Eu não.

E há muitos trechos destes no livro, o que é pena, porque o resultado final acaba por ser um pouco entediante.

Acrescentaria: o autor pergunta “Como é possível ser português?” e eu pergunto: “como é possível uma editora publicar um livro destes?”

“O Evangelho de Fogo” (2008), de Michel Faber

—Michel Faber é um escritor nascido na Holanda, criado na Austrália e residente na Escócia.

Autor de sete romances, dele, só tinha lido “Debaixo da Pele” (2000), e achei-o surpreendente, uma história original e inquietante.

Mas este “O Evangelho de Fogo” é uma desilusão.

Conta a história de Theo Griepenkerl, um modesto académico que, por mero acaso, descobre, numa museu iraquiano, uns manuscritos que são, afinal, o quinto evangelho – ainda por cima, escrito por uma testemunha ocular, alguém que, de facto, conviveu com Cristo.

Trata-se de uma excelente ideia mas, na minha opinião, Faber não conseguiu (ou não quis) desenvolvê-la completamente.

“A Sombra do que Fomos”, de Luis Sepúlveda (2009)

—A contra-capa deste pequeno livro diz tudo:

«Num velho armazém de um bairro popular de Santiago do Chile, três sexagenários esperam impacientes pela chegada de um quarto homem. Cacho Salinas, Lolo Garmendia e Lucho Arencibia, antigos militantes de esquerda derrotados pelo golpe de estado de Pinochet e condenados ao exílio, voltam a reunir-se trinta e cinco anos depois, convocados por Pedro Nolasco, um antigo camarada sob cujas ordens vão executar uma arrojada acção revolucionária. Mas quando Nolasco se dirige para o local do encontro é vítima de um golpe cego do destino e morre atingido por um gira-discos que insolitamente é lançado por uma janela, na sequência de uma desavença conjugal.»

É isto. “A Sombra do que fomos” é uma historieta. Tem graça, está bem escrita, mas sabe a pouco.

Algumas passagens fizeram-me recuar aos tempos do PREC. Exemplo:

«Na assembleia, Coco Aravena sentia-se eufórico porque a comissão de agitação e propaganda do Partido Comunista Revolucionário Marxista-Leninista, pensamento Mao-Tsé Tung, tendência Enver Hodxa, bastante diferente da camarilha liquidacionista que se fazia chamar Partido Comunista Revolucionário Marxista-Leninista, pensamento Mao-Tsé Tung, tendência bandeira vermelha, o tinha escolhido para a leitura de uma resolução do Comité Central destinada a mudar a história.»

É o segundo livro de Sepulveda que leio e não me entusiasma.