“Empúsio”, de Olga Tokarczuck (2022)

O excelente livro “…Viagens“ deu-me a conhecer esta escritora polaca ((Sulechow, 1962). Li-o em 2019, que foi o ano em que Tokarczuck recebeu o Nobel.

Depois desse livro, li todos os que foram publicados em Portugal: “…Conduz o Teu Arado Sobre os Corpos dos Mortos“, “…Outrora e Outros Tempos“, “…Casa de Dia, Casa de Noite“ e “…Histórias Bizarras“.

Todas essas leituras fizeram com que Olga Tokarczuck se tornasse uma das minhas escritoras preferidas.

E surgiu, agora, este “…Empúsio” ““ neologismo que é uma amálgama linguística de Empusa, figura mitológica grega e Simpósio.

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A acção decorre em 1913 na cidade termal de Gorbersdorf, na Baixa Silésia. É lá que existe um famoso sanatório que permite a cura da tuberculose, graças a um conjunto de tratamentos que consistem, fundamentalmente, em repouso, boa alimentação, caminhadas, duches e massagens. Embora o bacilo de Koch já fosse conhecido, ainda não existiam os anti-tuberculostáticos, nem a BCG.

A principal personagem é um jovem engenheiro hidráulico, de Lviv, chamado Mieczyslaw. Está alojado na Hospedaria para Cavalheiros, onde vai conviver com mais quatro ou cinco personagens, todos homens, claro. Aproveitam as caminhadas e as refeições para, depois de beberem boas quantidades de uma tintura alcoólica, discutirem assuntos importantes como a morte, a religião, a arte, a democracia ou, acima de tudo, as mulheres, que eles menosprezam.

Diz Lukas (pág. 52):

“…- As mulheres são por natureza mais delicadas e mais sensíveis e, por isso, tendem com facilidade a agir impensadamente”

Diz outro (pág. 54):

“…- Nos homens, a força de vontade ajuda a combater alguma das tentações da loucura, mas as mulheres, que praticamente são desprovidas dela, não têm armas para lutar”

Diz o médico, o Dr. SemperweiB (pág. 173)

“…- Cozinheira… Sabe que a culpa dos nossos fracassos é das nossas mães. São elas que moldam a nossa atitude para com o mundo e os nossos corpos. São estas as mais recentes descobertas de uma ciência chamada psicanálise. (…)

São as mães ““ prosseguiu ““ que contagiam os filhos com uma emotividade excessiva, o que faz com que fiquem vulneráveis a muitas doenças e fraquezas do espírito e, principalmente, a efeminação interior. A mulher, mutável e sempre instável, não é capaz de incutir no filho a consciência de que o mundo é o nosso desafio, que as suas leis são duras e a sua ordem exige de nós uma atitude sólida, com os pés bem assentes na terra, em vez de sucumbir a ilusões.”

Sobre a democracia e ideologias (pág. 120):

“…- Bom senso e racionalismo. Tudo o que é mau advém de invenções e ideologias. Não há necessidade de acrescentar o que quer que seja ao mundo; o mundo é como vemos. É como é. Há leis que podem ser descritas. O seu número é finito. Algumas delas, ainda não as conhecemos. Deus existe e criou o mundo. Os seres humanos são, por natureza, canalhas; logo, precisam de ser controlados e de aprender constantemente. Os ricos são ricos porque são talentosos e têm bons contactos. Foi sempre assim e assim será sempre. A liberdade e a democracia podem existir, mas sem exageros. Os dez mandamentos são a matriz de todo o europeu, seja ele alemão, italiano ou romeno. Tem de haver algum tipo de ordem.”

Olga Tokarczuck escreve isto livro num tom irónico ““ aliás, o subtítulo demonstra essa ironia: “…romance de terror naturopático”.

Ao que parece, todos os anos, aparece, na montanha que rodeia a aldeia onde fica o sanatório, o corpo de um homem jovem, todo esfrangalhado. Existem uns seres sobrenaturais ““ Tuntschi. Serão mulheres que emergem da Natureza?

O final é duplamente surpreendente: descobrimos quem está a narrar toda esta história e o protagonista sofre algo de inesperado.

Mas antes, não resisto a transcrever este excelente pedaço de prosa (pág. 243):

“…Para já, sentimos os odores dos seus corpos que, saindo das camisolas, se elevam e ligam uns com os outros; são todos diferentes. Fommer cheira a pó, levemente almiscarado, um cheiro a papel seco, como se farfalhasse ““ o cheiro de uma pele velha, ressequida, de um porta-moedas desgastado. Lukas tem um cheiro forte ““ é um odor a medo e prontidão para a luta, a auréola invisível de um guerreiro insatisfeito que, tendo perdido a força física, participa numa guerra í  distância, gritando ordens e comentando as jogadas dos estrategas. O cheio de August era completamente diferente ““ espalha vapores orgânicos de matéria podre, em breve consumidos por processo de putrefação e de decomposição das partículas do corpo; está rodeado de um cheiro a leite azedo, de despensa onde ficaram esquecidas reservas de comida, um cheiro já incontrolável mas ainda susceptível de se camuflar com água-de-colónia e um requintado sabonete para barbear. Por seu lado, Opitz está envolto numa nuvem de carboneto ““ um cheiro que faz ranger os dentes e salivar. Não há odor que possa ultrapassá-lo. Em contrapartida, Wojnicz espalha amplamente o seu cheiro, sem o saber. Enxota todos os outros cheiros, relegando-os para segundo plano, e domina-os; apesar de exalar esse odor, sente-se perdido e inseguro. É como se as suas feromonas estivessem carregadas de electricidade, avassaladoras, semelhantes ao cheio do pêlo de uma raposa ou de um cabrito que foge do caçador.”

Mais um grande livro de Olga Tokarczuck, traduzido do polaco, como sempre, por Teresa Fernandes Swiatkiewicz.

“HIstórias Bizarras”, de Olga Tokarczuk (2008)

A Cavalo de Ferro continua a publicação desta escritora polaca, vencedora do Prémio Nobel em 2019.

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Como o nome indica, este livro, editado já há 14 anos, contém um conjunto de histórias estranhas.

Como diz a contracapa: “…um médico escocês do século XVII, ao serviço do rei da Polónia, descobre uma estranha raça de crianças verdes. Uma família de quatro mulheres idênticas, que se podem ligar e desligar, vê a sua rotina ser perturbada pelo aparecimento de dois vizinhos. Um mundo onde impera o uso do metal mantém a sua ordem graças ao sacrifício de um misterioso semideus com mais de trezentos anos. Uma mãe deixa uma estranha herança de vários frascos de conserva ao aseu filho preguiçoso”.

São, de facto, histórias bizarras, umas mais bem conseguidas do que outras.

Apesar de serem histórias em que impera o lirismo próprio de Tokarczuck, prefiro os seus romances.

Outros livros de OPlga Tokarczuk: “Casa do Dia, Casa de Noite“; Outrora e Outros Tempos; Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos; Viagens;

O Coiso e a tradutora dos livros de Olga Tokarczuk

Deparei-me com este simpático comentário no Coiso:

“…Sou a tradutora de Olga Tokarczuk e queria felicitá-lo pelas publicações que tem feito sobre os livros da escritora polaca. Espero que nunca deixe de o fazer. Saiu no Expresso um artigo meu onde menciono o seu blogue ““ uma forma de reconhecimento pelo seu trabalho. Parabéns!”

A Revista do Expresso estava ainda í  espera de ser lida, mas fui logo buscá-la e encontrei um texto escrito pela tradutora Teresa Fernandes Swiatkiewicz, onde ela refere:

“…A boa recepção de Olga Tokarczuk em Portugal pode ser analisada í  luz do conceito de fidelidade, porque entre os agentes do processo. editor, tradutor e leitor ““ se desenvolveu um relacionamento profícuo, manifesto no facto de os livros da escritora nobelizada serem simultaneamente best-sellers e long-sellers, bem como no facto de terem surgido no ciberespaço blogues literários (por exemplo, “…Palavras Sublinhadas” e “…O Coiso ““ aqui desde 1999″) que dissertam sobre os seus sucessivos livros, elogiando o carácter inovador da sua estrutura narrativa, a escrita fluida repleta de passagens memoráveis e pensamentos aforísticos, as personagens inesquecíveis e os enredos imaginativos, bem como a imprevisibilidade do desenrolar dos acontecimentos.”

Teresa Fernandes traduz os livros de Tokarczuk do polaco para português e percebe-se, pelo que diz neste texto, que o faz com prazer porque, também ela, deve ser (é certamente) uma fã da escritora polaca.

Quanto ao facto de O Coiso ser um blogue literário, não diria tanto… limito-me a escrever meia dúzia de opiniões sobre os livros que vou lendo.

“Casa de Dia, Casa de Noite”, de Olga Tokarczuk (1999)

Diz-se que há escritores que escrevem sempre o mesmo livro.

Tokarczuck insere-se nessa categoria. Desde que ganhou o Nobel, em 2019, os seus títulos anteriores têm sido publicados em Portugal e verifico que, no fundo, a escritora polaca escreveu sempre o mesmo livro, embora sempre diferente.

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Entrei em contacto com esta ex-psicóloga clínica através do excelente Viagens, de 2007. Li, depois, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de 2009, e depois, Outrora e Outros Tempos, de 1992.

Todos estes livros, a que dificilmente poderemos chamar romances, têm estrutura idêntica: são pequenos textos que nos vão contando pequenas histórias, são descrições curtas de lugares e de acontecimentos, como se fossem peças de um puzzle que nós vamos juntando na nossa cabeça. No final, quando terminamos o livro, ficamos com a impressão de que ficámos a conhecer aquele sítio e aquelas pessoas.

Este Casa de Dia, Casa de Noite, não foge í  regra. A acção passa-se algures depois do final da segunda Grande Guerra, numa aldeola polaca que foi ocupada pelos alemães. A narradora vai-nos contando pequenas histórias, da sua vizinha Marta, dela própria, de um monge que queria ser rapariga, de um casal que enfrenta a rotina da vida, e de muitos outros.

Veremos se Olga Tokarczuck consegue manter este estilo nos seus próximos escritos.

“Outrora e Outros Tempos”, de Olga Tokarczuk (1992)

Foi o primeiro grande sucesso desta escritora polaca que, no ano passado, foi galardoada com o Nobel.

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Depois de ter lido Viagens (2007) e Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos (2009), estava com curiosidade em ler este livro, escrito mais de dez anos antes – e verifiquei que Tokarczuk encontrou mesmo uma nova maneira de escrever romances.

Este Outrora e Outros Tempos podia ser um calhamaço de 600 páginas, já que a acção decorre numa aldeia polaca, e percorre a Grande Guerra, a crise que se lhe seguiu, a Segunda Grande Guerra, a ocupação nazi, a ocupação soviética, o regime comunista, a passagem para a democracia liberal.

No entanto, Tokarczuk resolve este “problema” com textos curtos, cada um deles dedicado a um dos habitantes da aldeia. É o exemplo de Mísia; assistimos ao seu nascimento, í  sua infância, ao seu casamento, ao nascimento dos seus filhos, í  sua velhice e í  sua morte.

E o mesmo se passa com as restantes personagens, nas quais, a escritora inclui objectos, casas, móveis, árvores, porque todas elas fazem parte da aldeia.

Gostei.

“Conduz o teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk (2009)

Depois de ler o excelente Viagens, desta escritora polaca, fiquei com muita vontade de ler este Conduz o teu Arado…

Claro que, entretanto, o livro tinha desaparecido dos escaparates. Felizmente, a escritora ganhou o Nobel da Literatura e o livro foi reeditado.

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Acabei de o ler ontem e não há dúvida que esta senhora merece toda a nossa atenção.

Nascida em 1962, Olga T. tem uma escrita aparentemente simples, mas cheia de camadas.

Este romance é narrado por Janina Duszejko, uma professora reformada que vive num ermo, onde, durante o inverno, toma conta de algumas casas de campo.

Janina é astróloga amadora, vegetariana e grande defensora dos animais; uma vez por semana, ainda dá aulas de inglês, numa vila próxima. Também uma vez por semana, ajuda um jovem da vila a traduzir os poemas de William Blake; é desse escritor a frase que dá o nome ao livro.

A certa altura, um dos poucos vizinhos de Janina aparece morto, aparentemente por se ter engasgado com um osso de uma corça que ele caçara. Mais tarde, morre o presidente do clube de caça da vila, o chefe dos bombeiros, até o padre.

E uma história bucólica começa a transformar-se num romance policial macabro.

Duas frases que destaco:

Página 120: “…numa antiga tradição, para lutar contra os pesadelos é preciso contá-los em voz alta para a sanita e, depois, puxar o autoclismo!”

Página 179: “…a saúde é um estado incerto e não augura nada de bom. Mais vale viver tranquilo com uma doença, porque assim pelo menos já sabemos do que vamos morrer”.

Aconselho vivamente!

(Edição Cavalo de Ferro; tradução do polaco de Teresa Fernandes Swiatkiewicz)

“Viagens”, de Olga Tokarczuk (2007)

Olga Tokarczuk é uma escritora polaca nascida em 1962 e que, no ano passado, venceu o Man Booker Internacional com este curioso livro.

Psicóloga de formação e activista de esquerda, Tokarczuk tem sido acusado pelos líderes polacos de direita de denegrir a imagem da Polónia. Só se for por ganhar tantos prémios literários, digo eu, porque, além do importante Man Booker, a escritora tem também sido distinguida com outros prémios, nomeadamente na Alemanha.

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Este Viagens é um livro muito curioso porque é formado por pequenas “entradas”, digamos, assim, pequenos textos, a propósito de viagens. Tem, no entanto, um tema a que a escritora volta obsessivamente: as exposições e os museus que mostram plastinação de corpos e partes do corpo humano, ou as colecções de bizarrias encerradas em frascos com formaldeído, como fetos com duas cabeças ou colunas deformadas, etc.

Parece um pouco tétrico, mas não é nada disso. Ao fim e ao cabo, Olga T. fala sobre o corpo humano, sobre a vida e sobre a morte, sobre a viagem que pode ser a da vida, até í  morte.

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Três histórias sobressaem: a do coração de Chopin, que é secretamente levado de volta para Varsóvia pela sua irmã; a de uma mulher que regressa í  sua terra natal para envenenar o seu antigo namorado, moribundo, a pedido deste; e a do homem que está í  beira da loucura, depois da mulher e do filho terem desaparecido durante uma viagem í  Croácia, para aparecerem dias depois, sem qualquer explicação.

Aconselho.