“Açúcar Queimado”, de Avni Doshi (2020)

Este é o romance de estreia de Avni Doshi, nascida em New Jersey em 1982, mas a viver no Dubai. Doshi é filha de emigrantes provenientes da Índia e este seu livro foi inicialmente publicado nesse país com o título “…The Girl in White Cotton”. Posteriormente, já com o título actual, o romance foi publicado no Reino Unido e foi finalista do Booker de 2020.

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A primeira frase do livro é esclarecedora:

“…Mentiria se dissesse que a infelicidade da minha mãe nunca me deu prazer”

A narradora chama-se Antara e a sua mãe Tara, e o antagonismo destes dois nomes não é por acaso. Tara foi uma jovem leviana que pouco ligou í  sua filha. Agora, apesar de ainda não ter chegado aos 60 anos, Tara está demente e a filha tem que cuidar dela.

Em relação í  sua mãe, Antara tem sentimentos ambivalentes, com os quais tem dificuldade em lidar.

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Para primeira obra, o livro está bem inscrito, mas penso que é um pouco irregular.

Algumas passagens curiosas.

Antara está casada com Dilip, que foi criado nos Estados Unidos. Vivem na Índia, onde toda a acção do livro decorre.

Sobre Dilip, diz a narradora:

“…Era atraente e alto. E tudo nele mostrava que fora criado no estrangeiro. Bonés de basebol, boas maneiras e anos a consumir lacticínios americanos. estava a salvar-me, embora não o soubesse. A boca dele abriu-se num sorriso ante um comentário da minha mãe e eu vi-lhe os trinta e dois dentes, disciplinados por anos de aparelho na adolescência.”

Ainda sobre o marido, diz Antara:

“…Quando me come, o Dilip roça o nariz na minha vulva e inspira.

«Não cheira a nada», declara. Orgulha-se dessa característica, diz que é invulgar e poderá ser uma das razões pelas quais consegue imaginar-nos juntos. A vida dele, agora, está repleta de cheiros intensos, no escritório e até quando apanha um elevador, e é um alívio eu não ter cheiro depois de um treino ou em situações de grande tensão. Cresceu no Milwaukee, onde os seus ouvidos só conheciam cotonetes macias e sossego suburbano.”

Sobre a demência da mãe, Antara pesquisa bibliografia e confronta o médico:

“…- Também vi uns estudos que relacionam a saúde cognitiva com problemas nos intestinos.

Ele inclina-se para trás, como se sentisse um cheiro estranho. Talvez por eu dizer que na tripa se encontra a resposta para a nossa pergunta, uma profanação do dogma que lhe é tão caro. Os intelectuais franceses torceram o nariz quando Bataille sugeriu que se podia encontrar a iluminação na merda, ou Deus numa prostituta, e é provável que agora os neurologistas prefiram manter o biombo que separa o seu campo de intervenção do resto do corpo, a santidade da barreira sangue-cérebro, porque um cagalhão não pode ter nada a ver com os mistérios que eles investigam”.

Vale a pena ler.

“Devorar o Céu”, de Paolo Giordano (2018)

Deste jovem escritor italiano (Turim, 1982), tinha lido há mais de 10 anos, o excelente A Solidão dos Números Primos, obra de estreia.

Foi, portanto, com curiosidade que abordei este novo romance de Giordano e não posso dizer que me tenha desiludido, no entanto, pareceu-me longo de mais e com algumas peripécias desnecessárias.

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O livro é narrado por uma mulher, Teresa, o que não deixa de ser curioso. Penso que não é frequente escritores do sexo masculino escolherem para narradores, alguém do sexo feminino.

Teresa é uma jovem que costuma passar férias com o pai e a avó no sul de Itália. É nessa casa de férias que conhece três rapazes que vivem numa espécie de comunidade religiosa. Teresa vai desenvolver uma forte relação com esses rapazes, sobretudo com Bern, com quem chega a casar.

Os membros dessa comunidade vivem em comunidade com a natureza e, com o tempo, alguns deles radicalizam-se e começam a organizar acções de intervenção, a última das quais acaba mal.

Pelo meio, Teresa e Bern enfrentam um problema de infertilidade, recorrendo a serviços de fertilização in vitro na Ucrânia, e esta é uma das peripécias que me pareceram deslocadas no meio de toda esta história.

De qualquer modo, o romance lê-se com interesse e poderia dar um bom filme.

“Trilogia”, de Jon Fosse (2014)

Jon Fosse é um escritor norueguês nascido em 1959 e mais conhecido pelas suas obras para teatro (mais de 30).

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Este Trilogia, como o nome indica, compõe-se de três histórias, que se completam. A primeira, Vigília, foi escrita em 2007, a segunda, Os Sonhos de Olav, em 2012, e a terceira, que “…explica” as outras duas, Fadiga, em 2014.

Os críticos portugueses renderam-se a este norueguês e, tanto os do Expresso, como os do Público, elevaram-no aos píncaros, considerando este livro como o melhor dos que foram editados em 2021.

Não concordo.

Dos 43 livros que li ao longo deste ano, Trilogia não faz parte dos meus preferidos. Gostei muito mais de O País dos Outros, de Leila Slimani, por exemplo, ou de A Anomalia, de Hervé Le Tellier.

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A escrita de Fosse é, talvez, diferente, mas repetitiva, por vezes, maçadora. Na primeira história, dois jovens amantes partem de uma cidade, em busca de um novo local para viver. Ela, Alida, está grávida em fim de tempo e ele, Asle, procura um abrigo para o parto. Claro que a história faz lembrar a lenda dos cristãos. Neste caso, o menino Jesus vai chamar-se Sigvald.

Na segunda história, Asle passa a chamar-se Olav por qualquer razão que me escapou, mas a culpa deve ser minha. O pobre do Olav é condenado í  forca, acusado de ter estrangulado algumas pessoas ““ acontecimentos que também me escaparam.

Na terceira e última história, Alida, já viúva, encontra um homem muito mais velho e acaba por se juntar a ele, levando também o seu filho.

Diz a contracapa do livro que Trilogia é “…uma parábola de inspiração bíblica sobre o amor, o crime, o castigo e redenção.”

Mas de parábolas está o Inferno cheio, diria eu…

Aqui está um pequeno exemplo da linguagem repetitiva de Fosse:

Não tenho vontade de deixar esta casa, diz ela
Mas temos mesmo de fazê-lo, diz Olav
Não podemos ficar mais tempo nesta casa, diz ele
Tens a certeza absoluta disso, diz Alida
Sim, diz ele
Mas porquê, diz ela
Porque sim, diz ele
Não é a nossa casa, diz ele
Mas não mora ali mais ninguém, diz Alida
A mulher que morava aqui vai provavelmente regressar, claro, diz Asle
Mas já passou tanto tempo, diz Alida
Mas há de vir alguém, diz ele
Não é certo, diz ela
Mas a casa é dela, diz ele
Sim, mas como ela não vai regressar, então, diz Alida

Etc…

As vírgulas pontuam, mas não os pontos de interrogação, nem os pontos finais…

E, a meio do texto, Olav passou a ser Asle, como convém…

Enfim, passo…

“A íšnica História”, de Julian Barnes (2018)

Um livro de Julian Barnes é garantia de uma obra sólida.

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Este The Only Story não foge í  regra, embora, na minha opinião, a história se perca um bocado a meio do livro.

O autor diz-nos que todos temos muitas histórias para contar ao longo da vida, mas que só uma será a verdadeira história que interessa.

No caso, é a história de um rapaz de 19 anos que se apaixona por uma mulher casada de mais de 40 anos. Paul tem 19 anos quando conhece Susan num clube de ténis. Ela é casada, tem duas filhas, mas o casamento já não corre bem há muitos anos, de tal modo que ela e o marido barrigudo dormem em quartos separados.

Paul e Susan apaixonam-se e começam a ter um caso, mesmo nas barbas do marido de Susan.

Esta é a trama da primeira parte do livro e Barnes entretém-nos a contar os episódios que se sucedem, a reacção dos membros do clube de ténis, dos pais de Paul, das filhas de Susan.

Depois, Paul e Susan vão viver juntos e o livro perde-se um pouco. Susan começa a beber, torna-se numa alcoólica, nunca se percebe muito bem porquê (culpa?), e o livro arrasta-se até ao final, na minha modesta opinião.

De qualquer modo, vale a pena a leitura.

Outros livros de Julian Barnes: O Homem do Casaco Vermelho; O Ruído do Tempo; O Sentido do Fim; Arthur & George; Amor & Etc

“O Circo Invisível”, de Jennifer Egan (1995)

Depois de ter lido Os Lança-Chamas, de Rachel Kushner, que falava da agitação política de Itália dos anos 70 e das Brigadas Vermelhas, este livro de Jennifer Egan, fala-nos do grupo Baader-Meinhoff, que foi protagonista de diversos atentados terroristas na Alemanha, também nos anos 70.

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De Egan, escritora norte-americana nascida em Chicago em 1962, já tinha lido A Visita do Brutamontes e A Praia de Manhattan (o meu preferido).

Este O Circo Invisível conta-nos a história de Phoebe, uma jovem de 18 anos, cuja irmã mais velha, Faith, viaja para a Europa e se suicida, numa pequena aldeia da costa italiana.

Faith é a irmã sempre alegre, provocadora, aventureira, a preferida do pai. O pai é um técnico da IBM, pintor nas horas vagas e pinta a filha mais velha de modo quase obsessivo. Morre de cancro e Faith sai de casa e vai para a Europa com o seu namorado da altura, a quem chama Lobo.

Phoebe, quando faz 18 anos, decide seguir as pisadas da irmã e tentar descobrir como ela morreu. Vai encontrar-se com Lobo e descobrir que, entre outras coisas, a irmã colaborou com o grupo Baader-Meinhoff.

Vale a pena ler.

“í€ Espera dos Bárbaros”, de J. M. Coetzee (1980)

Gostei muito deste romance de Coetzee, agora reeditado pela D. Quixote.

A acção passa-se algures no tempo e no espaço. De facto, nunca ficamos a saber em que local é aquele e em que época estamos.

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O narrador é o magistrado daquela cidade muralhada, situada perto de um lago e de um pântano, com o deserto no horizonte. Para lá desse horizonte, algures, estão os bárbaros, que talvez ataquem a cidade, ou talvez não.

O Império estende os seus braços até í  cidade, que fica na fronteira e para lá envia soldados para combater os bárbaros.

Entretanto, o magistrado está velho e procura conforto junto de uma prisioneira que foi torturada. Passado algum tempo, decide levá-la de volta ao seu povo e, com esse seu gesto, cai em desgraça e é, ele próprio, preso e torturado.

Mas a vida dá muitas voltas e o magistrado ainda há de voltar a ter lugar de destaque na cidade.

Coetzee escreve bem, como se sabe, e as suas descrições da cidade, do lago, dos pescadores, do deserto, da sucessão das estações, fazem com que visualizemos o que ele descreve.

Muito bom.

Outros livros de Coetzee: A Infância de Jesus; A Vida e o Tempo de Michael K.; Diário de Um Ano Mau; O Homem Lento; No Coração Desta Terra; Verão; Jesus Na Escola; A Morte de Jesus

“Canção Doce”, de Leila Slimani (2016)

Há quem diga que os escritores escrevem sempre o mesmo livro.

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De certo modo é o que se passa com esta excelente escritora franco-marroquina.

Em “…O País dos Outros“, a história gira em torno de Mathilde, uma jovem francesa que se casa com um marroquino e que vai viver para o país do marido, sofrendo, depois, todas as desventuras que daí advêm; em “…No Jardim do Ogre“, é Adéle, uma jornalista casada com um pediatra e obcecada por aventuras sexuais, que vai caindo numa espiral de desgraças; neste “…Canção Doce”, é Louise, uma ama obsessiva-compulsiva que domina a história.

Dos três livros, este foi o que mais me impressionou pelo tema. Logo no primeiro capítulo, ficamos a saber que a ama assassina as duas crianças e ficamos logo incomodados.

Depois, Slimani vai contando a história que leva Louise ao precipício e o método que usa é semelhante ao que usou em “…No Jardim do Ogre”, com a história de Adéle.

E porque o tema central do livro me incomodou, quando acabei o livro, senti um certo alívio…

“No Jardim do Ogre”, de Leila Slimani (2014)

Depois de ter lido o excelente No País dos Outros, fiquei com curiosidade em ler os restantes romances desta autora franco-marroquina (Rabat, 1981).

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Este No Jardim do Ogre não fica atrás. Lê-se de um fí´lego e é difícil parar de ler.

Slimani conta-nos a história de Adéle, uma jovem atraente, que trabalha como jornalista e que é casada com um médico. Apesar de ter uma vida boa, Adéle sente-se insatisfeita e procura a felicidade nas suas aventuras sexuais, arranjando sempre mentiras cada vez mais inverosímeis para enganar o marido que, pelos vistos, não se interessa muito por sexo.

Adélia provém de uma família modesta e tem uma relação conflituosa com a mãe, e indiferente com o pai. Tem vergonha da família.

Richard, o marido, vem de uma família abastada, mas Adéle considera os sogros e os cunhados aborrecidos, enfadonhos. É um suplício passar o Natal em casa deles, mas pior é passar o Ano Novo em casa dos pais.

Vinga-se bebendo muito e fodendo ainda mais, com colegas do jornal, colegas do marido, desconhecidos.

Adéle é possuída pelas suas pulsões sexuais e troca tudo por uma nova aventura, incluindo deixar o seu filho de dois anos, dias seguidos, í  guarda de amas.

As situações vão-se complicando ao longo do livro e o desfecho não pode ser bom.

Gostei muito.

“A Anomalia”, de Hervé Le Tellier (2020)

Le Tellier (1957) formou-se em Matemática, depois em Jornalismo, é linguista e autor de diversos romances, contos, etc.

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Com este “…A Anomalia”, ganhou o Goncourt do ano passado. A Presença editou-o agora, com tradução de Tânia Gadanho e capa de Catarina Sequeira Gaeiras.

Li-o em duas penadas e é difícil parar de o ler. Le Tellier conseguiu, como disse Le Figaro, escrever o romance impossível porque para além de ser bem escrito é, simultaneamente, um thriller e um romance fantástico.

A ideia central de A Anomalia, é uma grande ideia: um avião da Air France aterra em Nova Iorque em março e, três meses depois, esse mesmo avião, com os mesmos passageiros e a mesma tripulação, aterra novamente.

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Como disse o autor, numa entrevista ao Expresso, todos nós gostaríamos de nos confrontarmos connosco próprios, em carne e osso, de podermos ver e falar com um nosso duplo, mas que não fosse uma imagem num espelho ou um clone: fí´ssemos exactamente nós mesmos.

Os conflitos que este “…simples” acontecimento desencadeia são a substância deste livro, que foi um dos melhores que li nos últimos tempos.

“Casa de Dia, Casa de Noite”, de Olga Tokarczuk (1999)

Diz-se que há escritores que escrevem sempre o mesmo livro.

Tokarczuck insere-se nessa categoria. Desde que ganhou o Nobel, em 2019, os seus títulos anteriores têm sido publicados em Portugal e verifico que, no fundo, a escritora polaca escreveu sempre o mesmo livro, embora sempre diferente.

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Entrei em contacto com esta ex-psicóloga clínica através do excelente Viagens, de 2007. Li, depois, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, de 2009, e depois, Outrora e Outros Tempos, de 1992.

Todos estes livros, a que dificilmente poderemos chamar romances, têm estrutura idêntica: são pequenos textos que nos vão contando pequenas histórias, são descrições curtas de lugares e de acontecimentos, como se fossem peças de um puzzle que nós vamos juntando na nossa cabeça. No final, quando terminamos o livro, ficamos com a impressão de que ficámos a conhecer aquele sítio e aquelas pessoas.

Este Casa de Dia, Casa de Noite, não foge í  regra. A acção passa-se algures depois do final da segunda Grande Guerra, numa aldeola polaca que foi ocupada pelos alemães. A narradora vai-nos contando pequenas histórias, da sua vizinha Marta, dela própria, de um monge que queria ser rapariga, de um casal que enfrenta a rotina da vida, e de muitos outros.

Veremos se Olga Tokarczuck consegue manter este estilo nos seus próximos escritos.