“\u2026J\u00e1 lhe acontece, quando tenta lembrar-se das colegas do liceu na montanha, onde deu aulas durante dois anos, ver algumas silhuetas, rostos, por vezes at\u00e9 com extrema precis\u00e3o, mas \u00e9-lhe imposs\u00edvel \u00c2\u00abdar nome\u00c2\u00bb. Desespera para tentar encontrar o nome que falta, para fazer coincidir uma pessoa com um nome, como se conciliam duas metades separadas.”\u009d<\/em><\/p>\n\n\n\n

Como eu a compreendo! Passa-se o mesmo quando vejo na rua um ex-doente meu, que reconhe\u00e7o imediatamente, mas cujo nome se perdeu algures no espa\u00e7o e no tempo, ou quando tento lembrar-me do nome de um medicamento ou at\u00e9 de um s\u00edndroma.<\/p>\n\n\n\n

Este livro de Annie Ernaux \u00e9 uma esp\u00e9cie de di\u00e1rio; s\u00e3o pequenos fragmentos que contam pequenos epis\u00f3dios a partir de uma foto, ou de uma not\u00edcia de jornal, ou de um filme, de uma can\u00e7\u00e3o, de um jingle comercial. Come\u00e7a nos anos 40, pouco depois da Segunda Guerra e vai caminhando ao longo dos anos (da\u00ed o titulo do livro), at\u00e9 2006.<\/p>\n\n\n\n

Logo na p\u00e1gina 31, escreve:<\/p>\n\n\n\n

“\u2026N\u00e3o se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.”\u009d<\/em><\/p>\n\n\n\n

Mais \u00ed\u00a0 frente, p\u00e1gina 40:<\/p>\n\n\n\n

“\u2026O sexo era a grande suspei\u00e7\u00e3o no seio da sociedade, que via sinais dele por todo o lado: os decotes, as saias travadas, o verniz vermelho das unhas, a roupa interior preta, o biqu\u00edni, a mistura de sexos, a obscuridade das salas de cinema, as casas de banho p\u00fablicas, os m\u00fasculos do Tarzan, as mulheres que fumam e tra\u00e7am a perna, o gesto de passar a m\u00e3o pelos cabelos na sala de aula, etc.”\u009d<\/em><\/p>\n\n\n\n

E muito mais \u00ed\u00a0 frente, como \u00faltimo exemplo do modo como Ernaux escreve este “\u2026di\u00e1rio”\u009d (p\u00e1gina 140):<\/p>\n\n\n\n

“\u2026Os filhos, sobretudo os rapazes, dificilmente largavam o ninho familiar, o frigor\u00edfico cheio, a roupa lavada, o ru\u00eddo de fundo das coisas da inf\u00e2ncia. Faziam amor, com todo o \u00ed\u00a0-vontade, no quarto ao lado do nosso. Instalavam-se numa juventude longa e duradoura, o mundo parecia n\u00e3o estar \u00ed\u00a0 sua espera. E n\u00f3s, alimentando-os, continuando a cuidar deles, t\u00ednhamos a sensa\u00e7\u00e3o de estarmos a viver, sem rutura, no mesmo tempo de sempre.”\u009d<\/em><\/p>\n\n\n\n

Sem nunca se referir a ela pr\u00f3pria especificamente, mas sim a um conjunto de pessoas que poder\u00e3o ser a sua gera\u00e7\u00e3o, Ernaux vai referindo os acontecimentos da pol\u00edtica, a elei\u00e7\u00e3o de Mitterand, depois de Chirac, depois de Sarkozy, a evolu\u00e7\u00e3o da tecnologia at\u00e9 ao telem\u00f3veis e os computadores, as modas, os programas de televis\u00e3o, as can\u00e7\u00f5es, n\u00e3o esquecendo praticamente nada de importante, a n\u00e3o ser, talvez, o 25 de Abril “\u201c j\u00e1 que fala na queda da ditadura grega, por exemplo.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 um livro muito interessante, que foi finalista do Man Booker Internacional de 2009, e que poderia ainda ser mais interessante se n\u00e3o fosse “\u2026t\u00e3o franc\u00eas”\u009d, uma vez que a autora refere nomes de apresentadores de televis\u00e3o e respectivos programas e outros acontecimentos (guerras da Indochina e da Arg\u00e9lia) que dizem respeito apenas aos franceses. Vale a pena ler.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Annie Ernaux ter\u00e1 conclu\u00eddo este livro quando tinha 66 anos, ap\u00f3s a sua aposenta\u00e7\u00e3o. J\u00e1 nas p\u00e1ginas finais deste livro, escreve: “\u2026De um dia para o outro, as aulas redigidas, as notas de leitura para as preparar, deixavam de ter qualquer utilidade. Por falta de uso, os conceitos antes adquiridos para explicar os textos apagavam-se […]<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"jetpack_post_was_ever_published":false,"_jetpack_newsletter_access":"","_jetpack_dont_email_post_to_subs":false,"_jetpack_newsletter_tier_id":0,"_jetpack_memberships_contains_paywalled_content":false,"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false,"footnotes":""},"categories":[6],"tags":[1310,61,557],"class_list":["post-8944","post","type-post","status-publish","format-standard","hentry","category-lido","tag-annie-ernaux","tag-livros","tag-romances"],"jetpack_featured_media_url":"","jetpack_shortlink":"https:\/\/wp.me\/p2Cpjx-2kg","jetpack_sharing_enabled":true,"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/8944","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=8944"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/8944\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=8944"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=8944"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.coiso.net\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=8944"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}