“O Contrário de Nada” (The Rabbit Hutch), de Tess Gunty (2022)

Começo por dizer que não compreendo a escolha do título em português. “O Contrário de Nada” é, com efeito, tudo e este livro de estreia de Tess Gunty (nascida em 1993 em South Bend, Indiana) tem tudo e mais alguma coisa – mas, na minha opinião “A Coelheira” seria o título adequado. Rabbit hutch é um edifício de apartamentos de renda acessível que fica em Vacca Vale, uma cidade em decadência – e é nesse edifício que habitam as personagens que povoam o livro.

Para romance de estreia, Tess Gunty (que diz que demorou cinco anos a escrevê-lo) revela já uma maturidade digna de uma escritora mais experimentada. Vejamos os seus próximos livros.

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Não se pode dizer que o livro tenha uma personagem principal, no entanto, Blandine é, sem dúvida, a figura central. Uma jovem que viveu em várias famílias de acolhimento e que tem uma obsessão pelas místicas católicas que foram trespassadas pelas espadas ardentes dos querubins. Mas há muitas outras personagens, como os três jovens que dividem o apartamento com Blandine, a vizinha de baixo, Joan, que acaba por ser a única pessoa que vai visitar Blandine ao hospital, no fim do livro, e muitas mais.

A escrita de Tess Gunty é torrencial.

Exemplo na página 20:

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“Tiroteio, assassínio, derrame de crude, terrorismo, incêndio, rapto, bombardeamento, cheias. Vídeo engraçado no qual uma mulher abre a porta do carro e se lhe depara um urso-pardo sentado ao colante a comer o que ela comprou no supermercado. Assassínio, assassínio, guerra. A Internet está enervada.”

O humor e um bom poder de observação, na página 88:

“Ampersand é o único estabelecimento comercial em Vacca Vale que não pertence a um franchising e que se assemelha a uma cafetaria. Aberto por um par de hipsters optimistas, atrai um número desproporcionado de pessoas de boina”.

Outro exemplo na página 135:

“Por falar em escândalos, ouviram que a Kayla fez um pterodáctilo a três gajos do lacrosse? O quê, meu, não sabes o que isso é? São três gajos e uma rapariga. Os tipos poem-se lado a lado, de pé. Ela faz um broche ao tipo do meio e, ao mesmo tempo, bate punhetas aos dos lados. Portanto, parece um pterodáctilo em voo”.

Listas, a autora gosta de listas, como esta, na página 192:

“A sua mãe era irlandesa; a actriz gostava de ouvir cantigas irlandesas, de ouvir irlandeses ler livros, rezar orações. Gostava de ter laranjeiras no quintal, de ver pessoas apanhar fruta. De madressilva, lilases, cloro, trovoadas, pinheiros, sabonete sólido, cabelo por lavar, fósforo, incenso na missa do galo, cigarros, fogueiras, gasolina, peles: gostava dos aromas dessas coisas.”

Ou esta outra lista das alterações provocadas pela gravidez (página 195):

“Um dia, deixou de ser soprano. A pele retesou-se. Sentia os ossos…soltos. O cérebro sofria de um efeito retardatário e balbuciava como se tivesse envelhecido décadas no espaço de semanas. Era como se tivesse apanhado um vírus na colónia de férias: não parava de espirrar, tinha comichões, afrontamentos, perda de memória, suores. Já não conseguia dançar. Desenvolveu uma halitose impossível de controlar. Todos os canos da sua canalização interna avariaram.  As veias no peito começaram a parecer as dos úberes das vacas. A gravidez deu-lhe cabo da pele, separou-lhe o osso pélvico, fez-lhe crescer cabelos no peito, duplicou-lhe o volume de sangue, inchou-lhe as articulações, provocou-lhe acne e melasma e dores de cabeça e náuseas e premonições. Escureceu-lhe o umbigo. A vagina ficou azul”.

Tirando o título, gosto da tradução de Eugénia Antunes (e não sei se a ideia foi dela).

E claro que aconselho fortemente este livro.

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