32. A Quinta do Dois (1986-1987)
Depois da boa experiência do “Uma Vez por Semana”,
estava definitivamente de volta à equipa do Carlos
Cruz e do Zé Duarte. O passo seguinte, foi um programa
de televisão, da autoria do Carlos, mas que teve
uma forte participação, como co-autores, do
José Duarte, do António Rolo Duarte e de mim
próprio.
Chamou-se-lhe “A Quinta do Dois”, porque era
à quinta-feira, e era na RTP-2. Foi um programa inovador,
em termos de entretenimento, embora tenha passado um pouco
despercebido, talvez por ser transmitido no segundo canal
à hora em que, no primeiro, passava a telenovela..
O programa era repetido no primeiro canal, aos sábados
depois de almoço. O cachet aumentara significativamente:
ganhava 40 contos por programa, mais 8 contos pela retransmissão.
Como elemento de ligação entre os vários
segmentos do programa, criámos um estúdio
de rádio, onde dois locutores – a Maria Helena
D’Eça Leal e o Cândido Mota – simulavam
uma estação, imitando a rádio dos anos
40 e 50, um pouco à maneira “ding-dong”
do “Pão Comanteiga patrocinado pela manteiga
do prado, a que se come aqui e em qualquer lado”.
Essa pretensa estação de rádio tinha,
como “artista” especial o próprio Carlos
Cruz que, por sua vez, tinha convidados: cantores, actores,
políticos e outros. Um dos convidados do Carlos foi
um dos meus doentes: o palhaço Eirmilita, que eu
vira muitas vezes, quando era miúdo, actuar no Coliseu,
e que se tinha inscrito na minha lista de utentes, embora
não residisse no Monte de Caparica, mas sim em Cacilhas,
como mais tarde vim a descobrir. O Eirmilita já ultrapassara
os setenta anos mas ainda actuava, de vez em quando, sobretudo
em pequenas festas particulares. Pedi ao Carlos Cruz que
o convidasse para o programa – era um personagem interessante,
cheio de histórias para contar, e o dinheiro do cachet
faria muito jeito ao velhote. A entrevista com o Eirmilita
foi para o ar no programa de 1 de Janeiro de 1987 e o homem
ficou-me eternamente grato. Continuei a consultá-lo
regularmente até que, certo dia, soube que morrera,
a bordo de uma camioneta, a caminho de uma festa qualquer
na província onde, pela milionésima vez, iria
apresentar o seu show de “clowns musicais”,
de parceria com o Armand, o palhaço rico, que tinha
mais dez anos que ele.
O Eirmilita era uma figura, uma personagem, um cromo, como
se diria hoje em dia. Ele e a mulher, cujos nomes, quer
artístico, quer real, já não recordo,
inscreveram-se na minha lista porque conheciam uma das minhas
doentes que, nos meus primeiros anos de clínico geral,
funcionou como verdadeira angariadora de doentes. Eu tinha
a minha lista aberta a quem quisesse inscrever-se mas ela
fazia constar que era difícil conseguir a inscrição.
Então, a Helena Camilo (assim se chama a esperta),
tratava das inscrições e suspeito (tenho quase
a certeza) que recebia algo em troca. Foi assim que o palhaço
Eirmilita e a sua esposa, que fora ilusionista, foram parar
à minha lista de utentes. Mas, como residiam em Cacilhas,
na Rua Comandante António Feio, consultava-os sempre
quando estava de serviço no SAP, em Almada. Todo
o pessoal que lá trabalhava já sabia que,
quando eu estivesse de serviço, haveria de aparecer
o Eirmilita, com as suas anedotas cheias de barbas, e a
mulher, com os truques de ilusionismo que qualquer miúdo
saberia fazer.
Mas voltemos ao programa.
A tal pretensa estação de rádio tinha,
por exemplo, notícias, que eram apresentadas pelo
Carlos Cunha e escritas praticamente todas por mim. Todas
as semanas, trazia para casa uma videocassete com imagens
que a RTP recebia via Eurovisão e, a partir do visionamento
dessas imagens, inventava “As Nossas Notícias”.
Posteriormente, o Rolo Duarte inventou a personagem do Zé
da Viúva, dono do restaurante “A Conquilha
de Lisboa”, lisboeta de gema, xico esperto, percebendo
de tudo e tendo opiniões formadas sobre todos os
assuntos, amigo íntimo de todos os políticos,
que iam comer lá na Conquilha. Esse Zé da
Viúva, interpretado pelo Carlos Cunha (o Cândido
Mota passara para as Nossas Notícias), mantinha um
diálogo semanal com o Carlos Cruz, abordando temas
da actualidade e terminando com um fadinho com versos brejeiros.
Às tantas, acabei por ser eu, também, a escrever
os diálogos todas as semanas, bem como os versos
do fado, embora tudo fosse melhorado na reunião semanal
de autores, geralmente em casa do Carlos, onde se consumiam
muitos cigarros e onde comecei a gostar a sério de
whisky, nomeadamente Cutty Sark. Passado algum tempo, os
meus colegas de programa já me apelidavam de Cuty
Santos – o que não quer dizer que me encharcasse
no precioso líquido todas as semanas mas, enfim,
gostava…
Inventámos ainda a personagem do repórter
do exterior, Talvez Sousa de seu nome, interpretada pelo
Virgílio Castelo e que gozava com muitos dos nossos
repórteres televisivos. Também era eu que
escrevia os textos deste repórter que tinha aquela
característica tão enervante que consiste
em anunciar a pergunta que vai fazer ao entrevistado, fazê-la
e, depois de obter a resposta, enunciar a mesma.
O primeiro programa de “A Quinta do Dois”, foi
para o ar a 16 de Outubro de 1986, mas desde Junho desse
ano que tínhamos reuniões de preparação.
Nessas reuniões visionámos muitos programas
de humor oriundos da britânica BBC, nomeadamente um
chamado “Not the Nine O’Clock News”, em
que entrava o famoso Rowan Athinkson. Foi a partir desse
programa que criámos a personagem de “A Nossa
Agenda”. No final de um desses programas britânicos,
os cinco actores apareciam sentados num sofá, lendo
um trecho da bíblia, todos com ar solene, exceptuando
o actual Mr. Bean, que apenas fazia um trejeito sonoro,
incompreensível. Convidámos então o
actor Vítor de Sousa a surgir, no final de cada emissão
de “A Quinta do Dois”, sentado num sofá
grande demais para ele, com uma agenda na mão, dizendo
textos deste género:
“No próximo domingo, da parte da tarde, pegue
nos seus filhos e leve-os até ao adro da igreja do
seu bairro, cidade, vila ou aldeia. Uma vez aí chegados,
deverão exclamar, em voz bem alta: “Que linda
que é a nossa igreja matriz!”
Só assim, no próximo domingo, da parte da
tarde, ecoará por todo o nosso Portugal, o grito
uníssono: “Que linda que é a nossa igreja
matriz!”
Amanhã deverá telefonar ao seu melhor amigo,
convidando-o para um serão agradável.
Quando ele chegar, dê-lhe algumas chapadas na cara
e diga-lhe que fomos nós que mandámos.
Aconselhamos um passeio interessante para esta semana. Siga
pela Nacional 324, passe por Freixo de Numão e Touça
e em Longroiva, meta pela Nacional 331 e vá à
Meda. Vale a pena.
Boa noite.”
Para além disto tudo, ainda inventei uns “gags”
curtos, que serviam de pré-genérico ao programa.
Para quem já não se lembra da Quinta do Dois
– ou para quem nunca viu tal coisa – posso garantir
que, nesse programa, esteve a génese de muitas das
rubricas que, mais tarde, apareceram em inúmeros
programas televisivos ditos humorísticos –
as falsas notícias, as reportagens, as entrevistas
absurdas, os “gags” de curta duração,
etc.
Não há dúvida que, para a época,
o meu cachet já não era nada mau – mas
trabalhava à brava, sobretudo porque se tratava de
um trabalho em tempo parcial; é preciso não
esquecer que continuava, diariamente, a consultar doentes
no Monte de Caparica.
Para além da escrita torrencial, eram as reuniões
que mais me cansavam. Os restantes autores não tinham
que se levantar, no dia seguinte, às sete da manhã,
para aturar doentes às oito horas; então,
as reuniões prolongavam-se até às tantas
da madrugada, os cigarros iam-se sucedendo e, quando finalmente
chegava a casa, tinha, pela frente, três horas de
sono, sempre agitado. Foi, aliás, após uma
dessas prolongadas reuniões que o Rolo Duarte se
sentiu mal, falecendo nessa mesma madrugada, vítima
de enfarte.
Posteriormente, o Mário Zambujal reforçou
a equipa e, a partir de Abril, “A Quinta do Dois”
passou a ser transmitida apenas aos sábados à
noite e iniciámos a primeira experiência de
“sitcom” na televisão portuguesa –
“A Conquilha de Lisboa”. Eram episódios
de cerca de 25 minutos, sempre passados no cenário
do restaurante do Zé da Viúva e que eram transmitidos
como um dos segmentos da Quinta. Não posso dizer
que a coisa tenha corrido muito bem. Nenhum de nós
tinha experiência neste campo; estávamos habituados
aos textos curtos do Pão Comanteiga ou, no máximo,
aos diálogos entre o Carlos Cruz e o Carlos Cunha.
Escrever as falas de cinco ou seis personagens, construindo
um enredo, à maneira das “sitcom” americanas,
exige uma técnica que não dominávamos.
Mas foi um princípio e desenvolvemos algumas ideias
interessantes: o Vítor de Sousa, por exemplo, interpretava
a personagem de um militar, que frequentava a Conquilha
e que falava com pontuação (“Uma estalada
ponto e vírgula. Deixem-me dar-lhe uma estalada ponto
de exclamação!”). Mas enfim, para quem
idolatrava a já referida série inglesa “Fawlty
Towers” – passada num hotel, mas também
com cenas de restaurante – “A Conquilha de Lisboa”
era uma miséria!…
Em Junho de 1987, terminou “A Quinta do Dois”,
mas a experiência de “A Conquilha de Lisboa”
abriu caminho a outro convite: o Raul Solnado preparava
uma “sitcom” e quis que eu fizesse parelha com
o Mário Zambujal na criação dos textos.
Chamava-se “Lá em casa tudo bem” e ainda
há pouco tempo a RTP-2 fazia a retransmissão
dos episódios dessa série, que se estreou
em Novembro de 1987.
Foi uma experiência dolorosa e, apesar de cada episódio
me render 20 contos, desisti, depois de ter escrito doze.
Não tinha mesmo jeito para escrever argumentos. Quer
dizer: eu tinha uma boa ideia para o argumento mas depois,
começava a escrever e, quando acabava, descobria
que tinha texto para cinco ou dez minutos, quando o episódio
precisava de ter vinte e cinco minutos. Deparava-me com
o mesmo problema que tinha tido sempre que pretendia escrever
um livro: se podia desenvolver uma ideia em três páginas,
para quê escrever trinta?
Cheguei agora à conclusão que só as
minhas memórias dão para um livro razoavelmente
extenso. Espanto-me quando vejo que já vou em mais
de duzentas páginas e ainda só tenho 34 anos…
Próximo capítulo: ainda não disponível
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