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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


33. A nossa casa (1987)

Cada vez estávamos mais almadenses.
Cerca de cinco anos depois de nos termos mudado para Almada, dois anos depois de termos começado a trabalhar no Monte, estávamos cada vez mais adaptados à nossa nova cidade – a chamada República Democrática de Almada, a cidade da margem sul, o lado certo. Isto parece propaganda do Partido Comunista, que domina a Câmara de Almada desde o 25 de Abril, mas o que é certo é que a autarquia local tem cuidado razoavelmente bem da cidade, esforçando-se por criar espaços verdes e colocar alguns entraves ao desordenamento do betão.
Bem instalados em Almada, só íamos a Lisboa quando era estritamente necessário: às reuniões dos programas e pouco mais. O cinema, por exemplo, passou a ser na Academia Almadense ou no Cinestúdio (que, entretanto, fechou) e em casa, no vídeo. Durante o ano de 1987, aluguei quase oitenta vídeos. Vimos, por exemplo, todos os filmes do 007 – não só os dos anos sessenta, altura em que ainda não tínhamos idade para assistir a esses filmes, classificados para maiores de 18 anos, mas também os dos anos setenta, em que era reaccionário gostar do 007. Grandes bestas! Os filmes do espião mais famoso do mundo são bem divertidos! Também vimos em vídeo (ou tornámos a ver, em alguns casos), todos os fantásticos filmes do Hitchcock.
Bem instalados em Almada, íamos recebendo a visita frequente da restante família. Os pais da Mila, claro, a Luisa, o Jorge e a Inês, cada vez mais gira, o meu irmão, que já se tinha separado da Guida e a minha irmã, que tinha arranjado uma companheira, uma cadela enorme, a que pôs o nome de Gal. Quem também nos visitava com alguma frequência, ficando alguns dias, era a Joana. Quando a Joana lá estava em casa, os três miúdos ficavam estranhamente silenciosos; a habitual correria e gritaria no terraço era substituído por um silêncio religioso; passavam horas entretidos em longas conversas murmuradas, quer no quarto da Marta, quer no quarto do Pedro e nós nem dávamos pela sua presença.


Marta e Joana, no Algueirão, a meio de 1977.

A Marta e a Joana sempre tiveram uma ligação muito forte, como acho que ficou bem patente em alguns dos capítulos anteriores, mas houve períodos em que essa ligação se fortaleceu ainda mais, por razões que me escaparam. No princípio de 1987, por exemplo, a Rádio Azul, sediada em Setúbal, estava em alta. Num programa de discos pedidos, a Marta telefonou a pedir um disco e dedicou-o à Joana. Era o tema “Take my breath away”, que fazia parte da banda sonora do filme “Top Gun”, com o Tom Cruise, ídolo das teen-agers de então. Esse facto fez-me lembrar os meus 13 ou 14 anos e o programa “Encontro para Dois”, na Rádio Renascença, com o António Sérgio (que depois havia de trabalhar no Contra-Ataque) e uma menina, cujo nome já não me recordo. A certa altura, punham um disco a rodar e os primeiros cinco ouvintes que telefonassem para o programa a identificar o tema musical, ganhavam um single. Ganhei vários, que depois ia levantar à Discoteca Melodia, na Rua do Carmo; lembro-me perfeitamente de um desses singles - Sonny and Cher, cantando “I got you, babe”, no tempo em que a Cher ainda não precisava de cirurgia plástica.


Marta e Joana, em Almada, 10 anos depois da foto anterior.

No mês de Junho, a casa enchia-se de pessoal para o aniversário do Pedro e para a festa de ballet da Marta. Em 1987, a actividade balética da Marta foi intensa: para além da festa anual da Academia Almadense, a Marta foi ainda dançar ao Clube de Campismo de Almada e no jardim da Praça S. João Baptista, num espectáculo integrado nas festas da cidade; por enquanto, mantinha-se na dança andaluza, interpretando a tal Jota.
Não foi por causa do ballet, no entanto, que a Marta tremeu, nos estudos. A passagem da instrução primária para o liceu foi complicada. Em Janeiro, a Marta recebeu alguns testes, nomeadamente a Matemática, com a nota de “não satisfaz”. A Mila decidiu ajudá-la a recuperar essas notas e ambas conseguiram, em dois meses, subir a nota dos testes para “satisfaz mais”. Mas que guerras que havia entre as duas! A Mila a explicar, a Marta a resistir, a Mila a passar-se dos carretos, a Marta a resistir, as duas a chatearem-se uma com a outra, mas enfim, parece que resultou e a Marta passou para o 6º ano, sem grandes problemas. O Pedro também passou, mas para o 9º ano e, com alguma surpresa nossa, decidiu inscrever-se na área de Arte e Design. Surpresa na medida em que o Pedro sempre tinha tido excelentes notas a todas as disciplinas, excepto, exactamente, a Desenho, onde chegou a tirar uma negativa. Mas foi a decisão dele e o futuro confirmou que essa decisão foi acertada, embora me pareça que o Pedro poderia ter escolhido uma área qualquer, e em qualquer uma seria bem sucedido. No entanto, hoje em dia, não sou capaz de ver o Pedro senão numa área relacionada com o Design, enquanto sou capaz de imaginar a Marta em qualquer outra área, que não a Psicologia, que foi o que ela escolheu. Não me perguntem porquê…
Um dos nosso passatempos preferidos, sempre foi o de mudar a disposição dos móveis. De súbito, olhávamos à nossa volta e um de nós dizia: e se puséssemos este móvel ali e a televisão acolá; o outro dizia logo a seguir: só se puxarmos a escrivaninha para aqui, mudando o sofá para além. E pronto – o desafio estava lançado! A Mila desenhava os móveis a uma escala mais pequena e fazia uma espécie de maqueta da sala. Depois, ensaiávamos várias disposições e, quando encontrávamos a que nos satisfazia, púnhamos mãos à obra. Em Fevereiro, por exemplo, comprámos um candeeiro para a sala. Fui instalá-lo. Só depois, descobrimos que as lâmpadas se reflectiam no écran da televisão, confundindo a imagem. Nesse mesmo dia, mudámos a sala toda por causa da porcaria do candeeiro e, um mês depois, estávamos a dar a entrada para a compra da nossa primeira casa (e única, até agora).
Ainda pensámos em comprar a casa onde vivíamos, mas o senhorio pedia um preço demasiado exorbitante; contávamos que fizesse um preço mais acessível, tendo em conta que nós éramos seus inquilinos, mas ele não condescendeu. Além disso, preferíamos uma casa com cinco assoalhadas, para que a Marta pudesse ter um quarto só para ela, não sendo obrigada a partilhá-lo com a avó Rita. Contactámos uma agência imobiliária e fomos visitar uma casa na Avenida 25 de Abril, em Cacilhas, perto da Lisnave. Tinha cinco assoalhadas, três boas varandas e uma excelente vista para o Tejo; além disso, o preço (seis mil contos) não era mau – claro que só tínhamos mil contos no Banco, mas enfim, a Caixa Geral de Depósitos existe para isso mesmo, ou não é? A casa cheirava mal, estava atafulhada de móveis grandes e escuros mas nós conseguimos prever o que podíamos fazer daquilo. No dia 7 de Março, dávamos 100 contos para sinalizar a casa e começámos a tratar do empréstimo; seis meses depois, davam-nos as chaves da casa e só então a pudemos ver vazia, sem qualquer móvel a atrapalhar e só então descobrimos que algumas coisas tinham que ser modificadas imediatamente – azulejos da cozinha a cair, bancada da cozinha positivamente podre, paredes a necessitar de pintura urgente. E nós sem cheta, como já vinha sendo habitual. Lá arranjámos (já não me lembro como) um empreiteiro, de nome Capinha, que nos fez um orçamento aceitável – por 250 contos, mudou-nos os azulejos e o chão da cozinha e casa de banho, bem como os sanitários. Mas foi tudo feito a conta gotas. Um dia íamos lá a casa e estavam três ou quatro homens a trabalhar denodadamente, sobretudo quando se tratava de partir azulejos e arrancar chão e fazer lixo e barulho; no dia seguinte, quando lá chegávamos, a casa estava vazia – tinham-se pirado todos para outra obra qualquer. Enfim, lá conseguiram fazer tudo em cerca de um mês, embora na última semana estivéssemos apenas dependentes de um estucador que não havia meio de aparecer. Finalmente, lá veio ele, com o cigarrito ao canto da boca e com uma cadela monumental, mal se equilibrando no escadote; a muito custo, conseguiu fazer o trabalho mas, como seria de esperar, ficou tudo às ondas, que era como ele devia ver o mundo, com tão pouco sangue no álcool circulante.
Como o dinheiro era pouco, arregimentámos alguns dos nossos doentes para nos darem uma ajuda, porque sabíamos que nos fariam um preço especial. O Abel, que ainda é doente da Mila, veio tratar da parte eléctrica; de vez em quando, suspendia o trabalho para ir fumar um charro para a varanda, mas fez tudo com competência. O Fralda, que continua a ser meu doente, veio montar o esquentador. Finalmente, o Alaiz, que também é meu doente, veio tratar da pintura, utilizando o curioso método de diluir de tal modo a tinta que cada sala precisava de seis ou sete demãos para ficar mais ou menos bem. O Alaiz também gostava da pinga. Ia lá para casa a meio da manhã, preparado para um longo dia de trabalho: num saco, levava o almoço e uma garrafa de vinho, que começava a consumir logo após meia demão. A água, que nunca bebia por ser contra a sua religião, deitava-a na lata da tinta. Começámos a exasperar. Nós já tínhamos pintado toda a casa do Algueirão e da Bernardo Francisco da Costa, já tínhamos caiado o terraço, sabíamos a velocidade (e posso dizer, a qualidade) do nosso trabalho e tínhamos a certeza que faríamos aquilo muito mais depressa, mas não queríamos ofender o especialista. Só que não podíamos esperar mais – o Capinha tinha o trabalho quase feito e o Alaiz continuava, rolo para cima e para baixo, lentamente, aplicando demão após demão. Começámos por ir dar-lhe uma ajuda, só para ele ver que também sabíamos pintar. Depois, aproveitámos um fim de semana em que ele não foi e pintámos uma sala. Acabámos por lhe conseguir dizer que já não precisávamos dos seus serviços e terminámos nós o trabalho; assim que acabávamos as consultas, vestíamos roupas velhas e toca a pintar até às tantas.
No dia 23 de Outubro, já estávamos instalados no 6º andar do nº 11 da Avenida 25 de Abril, com a casa toda pintadinha, a cozinha e as casas de banho novas e as varandas fechadas, graças à preciosa ajuda financeira dos Sousas que, mais uma vez, e como sempre, nos deram o seu apoio.
Aos 34 anos, tínhamos, finalmente, uma casa. Hipotecada, obviamente, mas nossa.
Entretanto, a Mila passara por uma experiência algo humilhante: desistira em pleno exame de condução. Numa subida, os pés começaram a tremer-lhe de tal maneira que ela percebeu que não ia conseguir terminar o exame sem deixar o carro ir abaixo várias vezes. Desistiu em Março mas, em Julho, já tinha a carta de condução. Conduzir, nunca foi coisa que lhe interessasse muito, mas a carta dava jeito, sobretudo quando estava de serviço nocturno no SAP ou quando, de vez em quando, ia a uma Clínica, no Feijó, fazer algumas (poucas) consultas particulares, sobretudo de Pediatria.
Definitivamente, a clínica privada nunca nos atraiu. As únicas experiências que tivemos nesse campo foram as substituições que fizemos aos nossos colegas do Algueirão, a minha curta estadia na clínica da Amareleja e, já em Almada, umas quantas consultas de Pediatria que a Mila fez e também algumas, de Clínica Geral, que eu fiz. Mas sempre nos fez confusão pedir dinheiro às pessoas. Quer dizer: eu consulto, todos os dias, na Unidade de Saúde do Monte, dezenas de doentes que, ou não pagam nada ou pagam uns míseros trezentos escudos e depois, pelo mesmo trabalho, feito da mesma maneira, mas numa clínica particular, cobrar sete ou oito contos, é coisa que nunca me entrou na cabeça. Sempre fui a favor da separação clara entre público e privado e penso que um dos problemas da Saúde, em Portugal, é exactamente a mistura destas duas áreas – médicos que trabalham no hospital, com listas de espera enormes e, depois, pegam em doentes da sua clínica privada e levam-nos para o hospital, ultrapassando os que esperam há meses. Todos os utentes do SNS sabem que, se estão à espera, por exemplo, de serem operados às varizes no hospital público, há vários meses, a melhor maneira de acelerarem o processo é irem a uma consulta privada de um dos cirurgiões que também trabalhem no hospital; é certo e sabido que a realização da operação será acelerada. Mas em 1987, ganhávamos cerca de 90 contos cada um e, se não fossem os textos que eu escrevia, seria difícil aguentar o barco e, como os programas eram incertos, havendo meses em que não ganhava nada desse lado, as poucas consultas particulares que a Mila fazia, davam uma ajuda (embora quase insignificante). E este é o argumento principal que os médicos usam para defender a coexistência dos dois sectores: o público paga tão mal, que um tipo tem que ir ao privado buscar dinheiro extra. O Estado, entretanto, também nunca se preocupou com isso porque, mesmo quando criou a chamada exclusividade, não soube aproveitar o momento para fazer uma limpeza na casa e separar, finalmente, as águas – médicos particulares nas clínicas privadas, médicos em exclusividade no SNS.
Em 1987 recuei no tempo quando fui ver um espectáculo integrado no Festival de Teatro de Almada. Chamava-se “Mário Gin Tónico”. Sozinho no palco, com papelinhos espalhados por todo o lado e com a inevitável garrafa de Gin, o Mário Viegas lia e interpretava algumas histórias do Mário-Henrique Leiria que, com a sua voz, a sua entoação e os seus gestos, adquiriam uma nova vida. Fomos os quatro ver o espectáculo e tenho muita pena que não exista uma gravação em vídeo, pelo menos que eu saiba; infelizmente, o Mário Viegas nunca mais o poderá repetir…
A festa dos 11 anos da Marta foi um acontecimento novo para nós e a confirmação de que tínhamos uma adolescente em casa. Claro que o Pedro, já com 14 anos, também era adolescente, mas com as raparigas é completamente diferente. A festa dos 11 anos da Marta foi no quarto dela, com as luzes apagadas, o gira discos a tocar slows e os putos a dançar, todos agarradinhos. A Marta, que nesse mesmo ano tinha tido a sua menarca, passava, quase de repente, das Barbies para a adolescência. E se, para nós, tudo aquilo era uma surpresa, para a avó Rita era um escândalo, daí que os conflitos entre a Marta e a velhota começassem a eclodir, cada vez com mais frequência. A avó já ia nos 79 anos e a nossa mudança para um sexto andar não ajudou muito à sua mobilidade; ter que se meter no elevador para ir à rua, começou a limitar-lhe os movimentos e a confiná-la a casa. Inevitavelmente, eu e a Mila começámos a falar em dar outro destino à avó Rita, problema de difícil e dolorosa decisão, que ainda demoraria alguns anos até ficar solucionado.
O ano não terminou sem que eu tivesse sido convidado para mais um programa televisivo. Chamava-se “Clubíssimo” e ainda fui a uma reunião preparatória, na RTP. Naquela altura, estava só a escrever para o “Lá em casa tudo bem”, mas aguardava novos projectos do Carlos Cruz. Recordando-me da má experiência com o Isidro, declinei o convite.
O Natal foi, obviamente, passado na nossa nova casa e eu recebi o meu primeiro leitor de CD e os meus primeiros discos compactos: “Sargeant Pepper’s”, dos Beatles e “Carmina Burana”, do Carl Orff.
Desilusão total – o sacana do leitor de CD estava avariado e dele não saiu qualquer som na noite de Natal, o que só vem provar, mais uma vez, de que o Pai Natal não existe!

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 





 

 

 



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