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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


40. Tenho um filho universitário (1991)

No dia 8 de Fevereiro de 1991, o Pedro foi fazer a Prova Geral de Acesso, a famosa PGA, tão contestada mas que, no caso do nosso filho, com uma bagagem de cultura geral e facilidade de escrita acima da média, só trouxe benefícios. Teve 82% na PGA e obteve média de 18 no 12º ano. A Prova Específica, de Geometria Descritiva, já não correu tão bem, mas a média final foi suficiente para o Pedro ingressar no ensino superior, na Faculdade de Belas Artes.
Tínhamos um filho universitário!
Entrar na Faculdade, para a gente da minha geração que tinha possibilidades para continuar os estudos, era uma consequência lógica da carreira académica. Fazia-se a instrução primária, seguia-se o liceu e, completado o 7º ano, fazia-se o exame de admissão à Faculdade e pronto – estávamos na Universidade.
Em 1971, quando entrei na Faculdade de Medicina, entraram comigo mais de mil candidatos a médicos e posso dizer que, tirando algumas excepções, todos acabaram o curso. Seis anos depois, Portugal tinha mais um milhar de médicos. Os cursos seguintes continuaram a ser muito numerosos até que chegou o numerus clausus e o filtro foi-se apertando cada vez mais. Hoje em dia, só se consegue entrar em Medicina com médias superiores a 18, o que é um erro gravíssimo. Um tipo com média de 19 quer é ser investigador, neurocirurgião, cirurgião plástico; não estou a ver marrões com médias destas a aturar os pés cheios de micoses, com unhas a desfazerem-se, o tarro acumulado nos umbigos, as estrias de sujidade nas pregas do cotovelo, quando vamos medir a tensão, o cheirinho a humanidade quando auscultamos. No meu tempo, sempre que íamos ao médico, a mãezinha dava-nos banho e vestia roupas novinhas em folha. Hoje em dia, ir ao médico é tão banal como ir à mercearia comprar um pacote de açúcar e os doentes vão como estão. Não é raro, nas consultas de Saúde Infantil, programadas, marcadas com antecedência, descalçar o menino para ver se tem o pé chato e deparar com uma razoável camada de porcaria a barrar a sola do pé. É conhecida a história do velhote que, na consulta de Diabetes, descalçou um dos sapatos, para que o médico lhe observasse o pé e lhe palpasse os pulsos; no entanto, quando o médico lhe pediu que descalçasse, também, o outro sapato, recusou-se porque não tinha lavado esse pé… No Inverno, a coisa é ainda mais grave; com o frio, as camadas de camisolas acumulam-se e nem pensar em tomar banho; mas é também no Inverno que aparecem as gripes e quando nos dispomos a auscultar o doente, enfrentamos, não só uma pausa de meia hora, durante a qual o doente tenta despir algumas das camisolas, como também o cheiro nauseabundo que se desprende daquele corpinho sem contacto com a água há meses. Isto para já não falar nos domicílios. Certa vez, a Mila teve que afastar cascas de laranja e restos de comida que jaziam sobre a mesa da cozinha, para poder passar a receita ao doentinho. No que me diz respeito, sou perito em captar pulgas nos domicílios; sempre que vou ver um casal de velhotes no Bairro do Pica-pau Amarelo, venho de lá com uma pulguinha. Não é raro, a meio da consulta, ter que correr à casa de banho do pessoal, despir-me completamente e sacudir a roupa até caçar a pulga que o doente faz o favor de levar até à Unidade de Saúde e depositar no meu consultório.
Ser médico de Clínica Geral é, também, estar preparado para mexer e conviver com a porcaria. Não estou a ver alunos com médias de 19 a quererem sujeitar-se a coisas destas. Portanto, o que vai acontecer é que, daqui a alguns anos, os médicos da minha geração começam a reformar-se e o Serviço Nacional de Saúde, tal como o conhecemos, acabará.
Portanto, o Pedro estava na Universidade. A Dalila também, mas em Évora; teve que aguardar um ano para conseguir entrar, também, na Faculdade de Belas Artes.
A relação entre os dois continuava a desenvolver-se e ficou muito reforçada depois da viagem de finalistas do liceu. Foram todos uma semana para Paris, de camioneta. Costumo dizer, por brincadeira, que o Pedro e a Dalila ficaram a conhecer muito bem o quarto do hotel, embora também tenham dado uma vista de olhos pela Torre Eiffel e pelo Louvre, pelo lado de fora, claro…
Antes da partida, dei uma boa quantidade de preservativos ao Pedro – não estava interessado, por enquanto, em ser avô, ainda por cima de uma criança de origem francesa. Quando regressou, entreguei-lhe um bilhete que dizia “precisas de mais preservativos: sim ou não (riscar o que não interessa)”. Ele respondeu afirmativamente e acrescentou: “isto de sermos pessoas crescidas é divertidíssimo. Obrigado.”
Divertidíssimo, de facto.
O sentido de humor do Pedro sempre foi especial.


Pedro e Dalila, no quarto do Pedro, em 1991. Alguns ícones familiares: em cima, à direita, a colecção de latas que, nessa altura, ainda estava no quarto do Pedro; à esquerda, as prateleiras com as minhas cassetes, que já haviam passado para o quarto do Pedro; à direita, na porta do quarto, um cartaz de cinema; por trás dos namorados, alguns símbolos da globalização.

No dia 19 de Março, dia do Pai, ofereceu-me o seguinte texto, que logo emoldurei:

“Eu gosto muito do meu pai!
Porque:
Ele é forte, grande e bonito. Ele inventou a pólvora, descobriu o carvão e construiu a ponte sobre o Tejo. É campeão de karaté, kung fu e nin jitsu… Já praticou patinagem artística e já foi instrutor de uma escola de condução. Foi à guerra e matou todos (só os que eram maus). É treinador de pólo aquático, ao mesmo tempo que joga xadrez e estuda yoga. É muito esperto e ganha a todos. Antes de ser cientista, foi músico e escritor – logo a seguir descobriu a penicilina. É amigo do Spielberg, da Tina Turner e tocou com os Beatles. É o melhor cabeleireiro que eu conheço. Inventou tudo, mesmo quando ainda não era nascido. É ele que diz ao presidente o que fazer e foi ele que acabou com a guerra do Golfo. Dá-nos o leite e a sombra. Quando não está muito ocupado, faz transplantes cardíacos. Só não faz o que não lhe apetece, porque senão fazia tudo o que é possível. É melhor que o McGyver e já venceu o He-Man. Já combateu com três Dragões, quatro ninjas e com o Akira Kurosawa e venceu todos! É por isso que…
EU GOSTO MUITO DO MEU PAI!”

É difícil resistir a um texto destes, não acham?
A criatividade dos nossos filhos continuava a manifestar-se, também, através do vídeo. A handycam da Sony foi um excelente veículo para os trabalhos de grupo que eles faziam para a escola. Em vez de estarem a escrever grandes e complexos textos, optavam pela imagem. Nesse ano, o Pedro e a Dalila fizeram um trabalho muito engraçado sobre cinema, enquanto a Marta e as colegas faziam um outro para a disciplina de Francês. De vez em quando, a nossa casa era invadida por adolescentes e transformada num pequeno estúdio de cinema e era sempre um fartar de rir.
Em 1991, o Pedro estava com 18 anos e, no dia 14 de Setembro tivemos a excelente notícia de que se tinha livrado da tropa. Por excesso de contingente, todos os nascidos em 1973 passaram à reserva. O meu filho já não teria que se sujeitar às mesmas palhaçadas que o pai vivera e nunca viria a conhecer as lições de dança que, na tropa, são inimitáveis.
No mesmo dia em que soube que as Forças Armadas não o queriam para nada, o Pedro começou com hematúria e febre. Foi o primeiro grande susto que nos pregou., em termos de saúde, se exceptuarmos o episódio de rigidez da nuca, que já relatei.
Nessa noite, não dormimos. No dia seguinte, conseguimos localizar o Pedro Ponce, um nefrologista casado com uma colega da Estefânia. Fez-se a ecografia da próstata, que estava normal, bem como a eco renal. A urocultura revelou uma Eschirichia Colli. Tinha sido, apenas, uma banal infecção urinária, felizmente. Mas do susto não nos livrámos.
Ainda nesse ano, apanhámos outro susto, em termos de saúde: em Dezembro, a Arminda apareceu cheia de petéquias e com hemorragias gengivais. Quando deu entrada no Hospital dos Capuchos tinha menos de dez mil plaquetas. Após a punção esternal da ordem, chegou-se ao diagnóstico de Púrpura Trombocitopénica Idiopática (PTI para os amigos), uma situação benigna que, no entanto, também deu para assustar a sério. Nunca tinha visto o Sousa tão aflito.
E quanto à minha saúde?
Bom, não ia mal: as extrassístoles estavam controladas, graças ao Rytmonorm, a ansiedade estava bastante melhor e a tensão arterial mantinha-se estável, graças a um comprimido de Lisinopril por dia. Começava a perceber que as minhas melhoras também tinham a ver com o facto de me estar a dedicar apenas à Medicina, não estando a escrever nada para a rádio ou televisão, o que me fazia diminuir o stress de um modo considerável.
Embora me desse muito gozo escrever, sobretudo para o Pão Comanteiga e para o Uma Vez por Semana, nunca me senti muito à vontade naqueles ambientes. As reuniões eram sempre stressantes, nunca estava bem, preferia sempre estar noutro lado qualquer. Com o tempo, pode dizer-se que me fui habituando e não me sentia intimidado por estar em presença do Carlos Cruz, o sr. Televisão, como lhe chamavam. No entanto, não era o meu ambiente. Por exemplo, ficava lixado por ficarmos, por vezes, horas a conversar sobre coisas sem interesse ou a dizer larachas, a fumar cigarros e a beberricar whisky e só muito depois da meia-noite, quando faltavam já poucas horas para eu entrar de serviço no Monte de Caparica, é que começávamos a discutir o conteúdo do programa. Mas enfim, não me posso queixar muito: a minha vida, de facto, não era aquilo e a deles era.
Mas este problema das reuniões penso que é um problema nacional. Também nas reuniões de médicos se passa a mesma coisa. Durante quatro horas fala-se de tudo e mais alguma coisa e, na meia hora final, quando toda a gente já está cansada, é que se tomam as decisões importantes. Por isso mesmo, agora que sou eu que lidero as reuniões na Unidade de Saúde, sinto que sou um pouco ditador: primeiro, discutem-se as coisas importantes e tomam-se as decisões – depois, no final, podemos ficar na conversa e até sabe bem…
Foi por não aturar reuniões da treta e ainda não estar em condições de liderar coisa nenhuma que me demiti de coordenador do tal Programa de Informação e Orientação dos Utentes – projecto que, como já referi, também achava mais ou menos injustificado. O que eu gosto é de ver doentes embora, neste momento, até pense que já tenho a bagagem suficiente para ocupar um cargo mais organizativo; no entanto, acho difícil fazer as duas coisas ao mesmo tempo – ver doentes e ocupar um cargo de chefia em termos de organização de serviços. Com uma lista com mais de 1 800 utentes, todo o tempo é pouco para a actividade assistencial.
Dizia o Pedro, naquele texto, que eu tinha ganho a guerra do Golfo. Foi, de facto, em 1991 que todos assistimos, estupefactos, à guerra em directo. A propósito, apetece-me falar um pouco da minha posição política. Para quem, em 1973, andava, como eu, em busca da Verdade e, depois do 25 de Abril, devorava tudo o que lhe aparecia sobre marxismo-leninismo, onde parava a minha posição política? Penso que me aconteceu o mesmo que a muito boa gente: desconfiança em relação aos políticos, desilusão, algum desânimo mas, sobretudo, uma posição de ironia permanente. De esquerda, sempre, mas uma esquerda, digamos, social, a esquerda da solidariedade, a esquerda da abertura de espírito em relação a novas ideias, a novas concepções do mundo e da vida, a esquerda da dúvida permanente, de não ter ideias fixas, de tentar evitar os preconceitos, a esquerda da tolerância. Mas partidos políticos, não obrigado. Não poderia pertencer a um partido político que me aceitasse como militante, parafraseando o Grouxo Marx.
Sempre atento à actualidade política, reajo mais pela negativa. Como dizia o José Régio: não sei por onde vou, só sei que não vou por aí. Tenho muitos ódios de estimação e não admiro ninguém em especial. Um dos meus ódio preferidos é o Professor Cavaco Silva e tive que o aturar durante dez anos. O Gin Tónico também não gostava nada do homem. Como já contei, bastava apontar com o dedo e gritar “Gin, olha o Cavaco!”, que logo o cão entrava numa onde de fúria e agitação.
É assim que vou, politicamente – desconfiando, gozando, ironizando…
Enquanto o Pedro entrava na Faculdade, a Marta avançava para o 10º ano, na escola de Cacilhas e escolhia a área da Saúde, perfilando-se a Psicologia já como uma opção muito provável para o seu futuro universitário.
Nesse ano, na sacramental festa de ballet, a Marta dançou um bolero (mais uma espanholada da Maria Franco) e, em dança jazz, uma rockalhada, a que chamaram “Pink baby blue”. Giríssima, com lacinhos nos totós e soquetes brancos, como as adolescentes americanas dos anos 60. Uma grande fã das festas de ballet foi sempre a minha irmã. A Bela estava com 30 anos e a Marta com 15 anos mas estabeleceram uma relação que era mais de amigas quase da mesma idade do que de tia e sobrinha. A Marta começou a ter companhia para ir assistir aos espectáculos de ballet da Gulbenkian. Entretanto, a Bela passou a integrar a rotação das aparelhagens que se fazia cá por casa. Assim, como demos à Marta um novo leitor de CD, o que lhe pertencia foi para casa da Bela. E outros géneros em breve entrariam nesta rotação.
Já agora, vale a pena registar outra “mania” que eu e a Mila sempre tivemos: quando o Pedro faz anos, a Marta também recebe, pelo menos, um presente e, obviamente, quando é o aniversário da Marta, o Pedro também não fica com as mãos a abanar. E por que fazemos isto? Talvez, no princípio, fosse uma espécie de compensação. Mas depois, acabou por se tornar uma tradição, que se mantém.


Marta com 15 anos e Pedro com 18.

Nessa linha – e como tínhamos pago a viagem de finalistas ao Pedro – pegámos na Marta e fomos uma semana até Paris; a Luisa e a Inês acompanharam-nos. E iniciámos, assim, oficialmente, a nossa “Viagem Anual ao Estrangeiro”.
Ficámos num hotel muito ranhoso, que o dinheiro não dava para mais, mas foi muito divertido. Planeámos os passeios ao pormenor, o que ver, em que dia e por que ordem e conseguimos ficar com uma ideia geral de Paris. Claro que levei a câmara de vídeo e a máquina fotográfica. O vídeo que filmei, nunca mais o tornei a ver; as fotografias estão no dossier de Paris e, de vez em quando, ainda as revejo. A mania de levar a câmara de vídeo para as viagens ainda se manteve durante uns tempos. Só mais tarde me libertei dessa ânsia de querer registar tudo.


Marta e Inês, em Paris, 1991, junto ao Centre Pompidou.

Agora, reparem bem nisto: eu e a Mila gostamos muito de viajar. Exceptuando as curtas incursões a Espanha, fomos a Londres, em 1976, e a Paris, em 1991, quinze anos depois! Os médicos do Serviço Nacional de Saúde, são uns pindéricos!...
No que respeita a livros, 1991 ficou marcado pela compra da obra completa do Alexandre O’Neill que, na minha opinião, é o maior poeta português.
Quanto a discos, continuei a preencher as lacunas do passado, comprando discos dos Doors, Bob Dylan, Easybeats (o que eu gostava do “Friday on my mind”, com 15 anos!), Fleetwood Mac, John Lennon (“Working Class Hero” é uma obra prima em três minutos e meio), Lovin’ Spoonfull (“Summer in the city” era o máximo!), Melanie, Moody Blues, Procol Harum (cheguei a ir ver um concerto deles no pavilhão de Cascais, nos anos 70 – uma desilusão, o som…), Queen, Janis Joplin, Rolling Stones, Santana (a guitarra dava-me arrepios) – e também coisas mais recentes: Waterboys, Sting, Chris Isaak, Aztec Camera, Matt Bianco e Talking Heads.
Finalmente, quanto a filmes, aluguei mais 160 vídeos – uma brutalidade – e só fomos dez vezes ao cinema. De registar, apenas “O Padrinho III”, do Coppola, “Alice”, do Woody Allen, “Eduardo Mãos de Tesoura”, do Tim Burton e o estranho “Coração Selvagem”, do David Lynch, numa altura em que muita gente andava obcecada com quem matara Laura Palmer, na série televisiva “Twin Peaks”.
Filmes, discos, livros...
Os anos vão passando e esta paixão não esmorece.
Afinal, algumas paixões acabam por se transformar em sentimentos duradouros, não é verdade, Mila?...


 



 



Próximo capítulo: não disponível

 

Actualizado em: 8 Julho 2004
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