BANHOFOBIA
Há muito boa gente que segue escrupulosamente a
máxima que diz que “já muita gente morreu
por tomar banho, mas nunca ninguém terá morrido
por nunca o tomar”.
No dia a dia das consultas, encontro muitos seguidores desta
doutrina, uns mais descarados que outros.
Há os que vêm à consulta para se queixarem
do seu pé de atleta de estimação e
se dão ao luxo de manter as meias que calçaram
há duas semanas e que nem durante a noite descalçam,
para depois as descalçarem mesmo ali à minha
frente, exibindo um pé de cor indefinida, graças
à porcaria, ao suor acumulado, às peles e
ao sangue das gretas provocadas pela coceira.
Há os que transportam uma tosse monumental e que
não tomam banho há vários dias, porque
acreditam plenamente que o banho faz mal às constipações,
e que se deixam auscultar pacificamente, erguendo as camisolas
(sempre muitas), deixando escapar dos sovacos, o cheiro
do suor retardado.
Há os que têm cotão no umbigo de camisolas
que deixaram de usar há meses e não se importam
nada que eu lhes palpe as barrigas gordurosas.
Há os que abrem a boca alegremente para que eu lhes
veja as gargantas, mostrando restos de comida da semana
passada alapardada aos dentes.
Os mais recatados, ficam muito aflitos quando lhes digo
que os quero auscultar e quase fazem birra para levantar
as camisolas, porque sabem que cheiram mal e têm algum
pudor, mas nenhum sabão. Ou os que trazem tantas
camisolas, que acabo por ter que enfiar o estetoscópio
à laia de sonda, pela gola abaixo, acabando por auscultar
por cima do corpete.
E os bebés?... Que lindos que são quando chegam
à sala da enfermeira, vestidinhos com jeans de 30
centímetros e blusões de napa que agora há
roupa tão gira para os pequeninos... mas depois,
quando as mamãs os despem para serem pesados e medidos,
o cheiro que se desprende das suas partes baixas é
de fazer vomitar as tripas - mesmo depois da gloriosa invenção
das fraldas descartáveis!
E não estou a falar de casos de miséria social.
Estou a falar de senhoras e senhores que compram a TV Guia
semanalmente, que vão ao cabeleireiro com alguma
frequência, que são honoráveis sócios
do videoclube do bairro e alugam um filmezinho de kung-fu
todos os sábados - enfim, têm dinheiro suficiente
para comprar uma barra de sabão azul e branco de
vez em quando.
Mas tomar banho para quê?... Até pode fazer
mal...
Por exemplo: as mulheres, quando estão menstruadas,
não podem tomar banho porque o sangue lhes pode subir
à cabeça e ficam doidinhas; em caso de gripe
ou constipação, está dito - o banho
está fora de questão; nas otites, é
perigosíssimo, porque a água pode entrar para
os ouvidos e nunca mais de lá sair; e mesmo lavar
os pés deve ser perigoso - pois se toda a gente sabe
que basta que um homem ande descalço sobre os mosaicos
da casa de banho para apanhar, logo ali, uma valente blenorragia!...
E depois, ainda há as que se queixam da própria
porcaria, atirando com as culpas para cima de terceiros.
Certo dia, apareceu-me uma senhora, que se apresenta sempre
bem, com os lábios desenhados por baton vermelho
e os olhos reforçados com o traço negro e
grosso, queixando-se da brutidade da menina que lhe tirara
o sangue para as análises que eu lhe havia pedido.
“Veja lá, dr. doutor, o estado em que me deixou
o braço!... Todo negro!...”
E arregaçou a manga da camisola, exibindo-me os restos
pretos da cola do adesivo que a analista lhe havia colocado
oito dias antes, depois de lhe tirar o sangue.
“Realmente!...” - exclamei quase indignado.
Tirei o lenço do bolso das calças, molhei-o
na torneira do lavatório e esfreguei-lhe o braço
com um pouco - melhor - com muito mais força do que
seria necessário. E eis que o “hematoma”
de porcaria desapareceu, como que por encanto.
A senhora arregalou os olhos e eu deitei o lenço
fora.
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
|