COMO IRMÃOS
Tinha quase 80 anos, mas ninguém lhe dava mais de
60. E eram uns 60 muito bem conservados. Mulher pequena,
bem proporcionada, com os sítios certos bem preenchidos.
Extremo cuidado na apresentação - que o conteúdo,
por vezes, pode passar despercebido se a embalagem não
fôr apelativa. Maquilhagem q.b., camiseiros estampados
mas não espampanantes, saias atrevidamente acima
dos joelhos, com umas pernas ainda bonitas de se ver.
Poucas vezes ía à consulta. A todas as virtudes
acima descritas, adicionava uma saúde invejável
para a idade cronológica.
À quarta ou quinta visita, decidi preencher a ficha
clínica com algumas informações que
faltavam. Que era casada, já eu sabia, com um velhinho
seco, de 85 anos, também muito bem conservados, e
que seria um perfeito british gentleman se fosse mais alto.
Até usava lacinho. E quanto a filhos?...
A pergunta foi feita com um certo paternalismo, com uma
certa ternura - porque é ternura o que nos desperta
este tipo de casais. De certo modo, projectamo-nos neles
e imaginamos que, aos 80 anos, podíamos ser assim,
bem conservados, saudáveis, ainda com muitas meias
solas para romper. E que lindo que é um casal, na
casa dos 80, com muito para viver e gozar. Pieguices!...
O que é certo é que a pergunta sobre os filhos
desencadeou todo o veneno que a mulher guardava dentro de
si, apenas à espera que alguém abrisse a válvula.
Casara-se já perto dos 40 com aquele inútil,
que nunca gostou de trabalhar e que sempre viveu à
sombra dos proventos do pai. “E quando veio para as
minhas mãos, já vinha todo estragado!...”
Por outras palavras, potência, viste-a!...O homenzinho
gastou todo o seu potencial nas noites de estúrdia
dos anos 20 e 30. Até por lá fez duas ou três
filhas. Quando chegou o momento do casamento, não
lhe tinha sobrado nada.
“Eu era virgem e virgem fiquei, que ele nunca mais
foi homem!... Era capaz de estar ali, de volta de mim, quase
duas horas e nunca conseguia nada!... E o doutor percebe
como é... se uma pessoa não faz nada, ainda
é como o outro... Agora, se a provocam, fica com
algumas necessidades!...”
E ele, nada... impotente.
Então, ela disse-lhe: “Se queres continuar
a viver comigo, não insistas mais com essas coisas
e vamos viver como irmãozinhos!”
Só que o homem - recordando-se, provavelmente, das
suas anteriores façanhas sexuais e, tendo nos braços
uma mulher que, naqueles tempos, deveria parecer uma adolescente,
insistia, insistia... Mas quanto mais insistia, mais falhava.
E quanto mais falhava, mais ela desesperava.
Até que ela não aguentou mais e mandou-o à
vida.
“Tornou a casar-se?...” - pergunta lógica.
Que não. Neste jogo do insiste e desiste, passaram-se
mais de 20 anos e ela estava quase com 70. Não era
com essa idade que ía à procura de novo parceiro
que lhe apagasse os ardores da juventude, quase meio século
depois de ter deixado de ser teenager.
Foi então que as filhas dele vieram ter com ela e
lhe pediram, por favor, que ficasse com o pai, que continuava
a envelhecer inexoravelmente e estava só. Num lar
nem pensar, que ele nunca gostara de estar preso.
E ela, com a dedicação própria das
virgens, lá o recebeu novamente na sua casa.
Agora, na oitava década da vida, lá estão
os dois, a caminho das bodas de ouro de um casamento não
consumado, a “viver como dois irmãozinhos”...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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