ONDE ESTÁ O COSME?
Gostava dos copos, pronto! mas só do branco, que
o tinto fazia-lhe azia - e nas bebidas brancas nem lhes
tocava. Mas uma ou duas taças de branco, logo pela
manhã, não escapavam ao Cosme. E ao longo
do dia, muitas outras taças seguiam o caminho das
primeiras e assim por diante, até à hora da
deita, que nunca era muito tarde, que o Cosme trabalhava
como servente nas obras e se havia coisa que ele detestasse,
além de água, era faltar ao trabalho.
Bêbado sim - calão, nunca!
E era assim que o Cosme andava sempre naquele limbo, não
sabendo muito bem onde e como punha os pés, mas cumprindo
razoavelmente com as suas obrigações diárias.
Certa vez, o empreiteiro para quem trabalhava aceitou um
gancho no lar de idosos: umas pinturazitas aqui e acolá,
que a tinta já era mais velha que qualquer dos comensais,
novas fechaduras para as portas, não fosse algum
velhote ter ideias e - mais importante! - a colocação
de uma rede de protecção em redor do poço
que recolhia as águas da chuva, que depois serviam
para regar as alfaces, que mais tarde se transformariam
nas excelentes saladas que acompanhavam a posta de peixe
rameloso com batatas servido no refeitório do lar.
Ementa habitual.
O Cosme foi encarregado de colocar a rede.
E lá foi ele, já com algumas taças
de branco no bucho, desdobrando a rede em redor do poço,
cravando-a no chão de terra batida com aqueles grampos
de metal - “que deviam estar metidos em betom”,
como ele depois me explicou.
Mas não estavam.
E o Cosme era pesado mas o branco era muito leve e a rede
era muito frágil e a terra estava mal batida e os
grampos soltaram-se e lá vai ele - Cosme ao fundo!
Caiu no fundo do poço, oito ou nove metros abaixo.
Ficou em mau estado, como se deve calcular...
Passado algum tempo, o empreiteiro andava por ali, fulo,
gritando: “Onde está o bêbado do Cosme?
Onde está esse gajo que ainda não pôs
a merda da rede?!”
E o restante operariado, estupefacto, deu por falta do Cosme.
Foi o Adérito que, acercando-se do poço, ouviu
o gemido ténue do pobre do Cosme, que jazia lá
em baixo.
“Está no fundo do poço!” - bradou
- “Eu vou lá buscá-lo!”
É assim a solidariedade operária.
E o Adérito iniciou a perigosa descida, apoiando-se
numa espécie de degraus de ferro que os poços
como aquele costumam ter, e que são muito convenientes
para ocasiões como estas.
Mas, ou porque o Adérito também gostasse do
branco, ou porque o nervoso era muito, escorregou e lá
foi ele, poço abaixo, estatelando-se mesmo em cima
do Cosme.
Resultado: três vértebras, uma tíbia,
um perónio e diversas costelas do Cosme não
aguentaram os dois embates e fracturaram-se; o Adérito
apenas ficou combalido.
Chegaram os bombeiros e lá conseguiram içar
os dois operários, na vertical, primeiro o Adérito,
meio zonzo, depois o Cosme, muito direitinho, mas sempre
com o sorriso que as taças de branco proporcionam,
qualquer que seja a adversidade.
Foi assim que, para evitar a queda de algum pensionista,
dois candidatos a uma futura estadia no lar de idosos, caíram
no poço que recolhe a água das chuvas que
serve para regar as alfaces, que se usam na confecção
das excelentes saladas que acompanham a posta de peixe rameloso
com batatas, servido no refeitório do lar.
Ementa habitual.
Acidente natural...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
|