HÁ MALES QUE VÊM POR BEM QUE
VÊM POR MAL
Tinha quase 65 anos e mal podia andar. As pernas mantinham-se
unidas da bacia até aos joelhos e só daí
para baixo permitiam alguns passos tímidos, apoiados
pelas inevitáveis canadianas.
Dizia que já estava assim há muito tempo...
que era aleijado... que já consultara muitos médicos
e todos lhe tinham dito que não havia nada a fazer...
Ainda tentei perceber melhor o que é que ele entendia
por ser “aleijado”, se tinha dado alguma queda,
se não seria melhor fazer um Rx das coxo-femurais,
mas nada. O sr. António era alérgico a radiografias
e já se habituara àquele “aleijão”..
Algum tempo depois, o sr. António ía a sair
de casa, pronto para descer as escadinhas íngremes
que o separavam da rua, quando uma das canadianas lhe pregou
a partida, falhando o degrau. E lá foi ele, por ali
abaixo, estatelando-se com estrondo. Acorreram familiares
e amigos que, acedendo aos seus protestos, não o
levaram para o hospital, mas sim para casa. Ao colo, claro.
Depois, chamaram-me para um domicílio.
Lá estava o sr. António, deitado no sofá
da sala. Doiam-lhe as costelas e tinha a mão direita
toda inchada. Expliquei-lhe que, daquela vez, não
escapava. Tinha mesmo que fazer um Rx à grelha costal
e ao braço direito. E já agora, por que não
fazer também um Rx às coxo-femurais?
Apanhei o sr. António indefeso, cheio de dores, e
pronto a aceitar tudo o que lhe dissesse. Foi fazer as radiografias.
Fracturara duas costelas e o cúbito e, quanto às
coxo-femurais, apresentavam uma excelente coxartrose bilateral.
“Sr. António, vai mesmo ter que ir ao ortopedista...
Esse braço precisa de gesso... E vou aproveitar para
saber a opinião do meu colega sobre as suas pernas...”
E o sr. António, ainda cheio de dores, disse que
sim e foi.
O ortopedista ficou espantado como é que aquele homem
se mantinha assim, quase sem poder andar, há tanto
anos e nunca ninguém se lembrara de o mandar operar.
E operou-o. Foi um êxito e o sr. António guardou
as canadianas na despensa e começou a andar normalmente.
Nunca mais o vi.
O trambolhão fora um mal que viera por bem.
Passados dois meses, a mulher do sr. António veio
à consulta e, naturalmente, perguntei-lhe pelo marido.
Que era um milagre!... Que toda a gente perguntava ao homem
quem é que tinha sida a nossa senhora de fátima
que o tinha posto a andar daquela maneira, tão ligeiro
que nem parecia que tinha sido aleijadinho. E o sr. António
creditava-me os louros. Que tinha sido eu que convencera
a ser operado, quando tantos médicos já o
haviam desenganado.
“Ainda bem que o sr. António está satisfeito...”
- disse eu.
“Está ele, mas não estou eu, sr. dr...”
- respondeu-me a mulher, com voz triste - “Se quando
ele era aleijadinho, e mal podia andar, arranjava amantes
constantemente, agora, que se mexe à vontade, desaparece
de casa e estou dias seguidos sem lhe pôr a vista
em cima... Antes aleijadinho!...”
Afinal, há bens que vêm por mal...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
|