HÁ SEMPRE UM SENHOR
Era daquelas mulheres capazes de usar os brincos
de plástico que saem nos pacotes de batata frita.
Blusas espampanantes com flores que apetece regar a ver
se crescem ainda mais e folhos à James Brown, compradas
na praça dos ciganos, à nota de mil, muitos
anéis do Tide e do Ajax nos dedos gretados pela lixívia
e pelo Sonasol verde.
E uma voz sempre duas oitavas acima. E uma expressividade
de ópera bufa. Falava sempre alto, sempre depressa
e sempre muito alegre, mesmo quando se queixava das suas
dores excruciantes nas cruzes, do seu invisível bócio
que lhe punha aquele nó na garganta, do filho “tossopendente”
que tudo o que fazia era arranjar esquemas para sacar dinheiro
para o pó, do marido inútil, reformado por
motivos psiquiátricos e que nunca teve iniciativa
para arranjar um gancho para ajudar a economia doméstica,
do outro filho, com uma neurose obsessiva que o obrigava
a permanecer na cama, a fumar, há mais de cinco anos,
ou da netinha, de nove anos, que ora passava uns tempos
lá em casa, a desestabilizar ainda mais a coisa,
ora vinha a vaca da mãe e a levava sabia-se lá
para onde e durante quanto tempo e ninguém se opunha,
ninguém queria saber - nem o palerma do marido, nem
o drogado do filho, nem o neurótico do pai da criança.
Estão a ver o panorama...
Certo dia, farta desta tragédia de folhetim, ela
disse ao marido que tinha a mãe muito doente lá
na terra e que ía visitá-la. Meteu-se num
táxi, a caminho de Santa Apolónia, mas parou
dois quilómetros mais adiante, na casa de um senhor
viúvo, para quem trabalhava a dias, há algum
tempo.
“Sr. doutor, eu estava tão farta daquela vida
que chegou uma altura que me passou pela cabeça ir
à rua e entregar-me ao primeiro homem que aparecesse!...”
“Disparate!” - terá dito o viúvo
- “Para quê atirar-se ao primeiro homem que
apareça na rua, se eu estou mesmo aqui à mão?”
E foi assim que ela, com 60 anos, e após ter aturado
quase 40 anos a tragédia anteriormente descrita,
se entregou ao senhor viúvo.
Mas o marido não se resignava. Veio ter comigo, triste,
deprimido, emagrecido e contou-me a mesma história,
embora com uma versão mais favorável para
o seu lado. Tentei apoiá-lo, confortá-lo,
um antidepressivo e deixe lá homem!...
Mas ele não deixou e começou a rondar a casa
do viúvo e da sua nova companheira. Telefonava, ameaçava...
“E aquela fraca figura chamava-me tudo, de curta e
comprida!... E eu disse-lhe - agora já me podes chamar
isso porque eu, para casa, não volto!”
E ele, então, tentou a via da violência e esperou
o nóvel casal numa azinhaga, munido de um cacete.
Saltou-lhes ao caminho e avançou, ameaçador.
E foi ela - há testemunhas - que, com um encontrão,
lhe tirou o cacete das mãos e lhe deu uma grande
cacetada na cabeça.
“Teve de levar sete pontos!” - exclamou ela,
com o mesmo tom de voz que se queixava das dores nas cruzes,
do nó na garganta, do marido inútil, do filho
drogado ou do outro neurótico.
O que é certo é que foi remédio santo.
O marido nunca mais a chateou. Nem a ela, nem a mim...
E agora, o tal senhor viúvo, que a trata muito bem,
não quer que ela ande a dias.
Deve preferir as noites que, mesmo com 60 anos, um viúvo
tem as suas necessidades...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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