A maternidade como remédio
A rapariga pediu-me os exames de rotina para
se inscrever na faculdade.
Uma semana depois, a mãe - que já me proporcionara
interessantes sessões de histeria de conversão
- foi-me mostrar os exames. Que a rapariga não podia
faltar ao trabalho e que tinha ficado preocupada com o relatório
do electrocardiograma e se eu não me importava de
ver os exames e dar uma opinião e ai que estou toda
a tremer só de pensar que a Paula Cristina tem alguma
doença no coração!
Antes que lhe desse o fanico, dei uma vista de olhos pelos
exames, que estavam todos normais. Quanto ao electrocardiograma,
tinha um daqueles relatórios chapa-sete: "padrão
de bloqueio incompleto de ramo direito do feixe de His".
Expliquei à senhora que aquilo era normal para a
idade da rapariga, que ficasse descansadinha e, em tom de
brincadeira, caí na esparrela de dizer:
"Qualquer dia a rapariga casa-se, tem um filho e isto
desaparece tudo!..."
A mãe foi-se embora muito satisfeita, com o seu habitual
sorriso de dentes podres. E poucos.
Cerca de três horas depois, já no fim da consulta,
aparece-me o namorado da rapariga. Embaraçado, lá
me foi dizendo, incrédulo, que já toda a gente
sabia na vila que a rapariga tinha uma veia entupida no
coração que só passava se tivesse um
filho. Já sabiam no centro comercial, já comentavam
na rua e a futura sogra já lhe havia telefonado:
"Ou casas e fazes um filho à Paula Cristina,
ou ela nunca mais se cura daquela veia entupida!... Foi
o doutor que me disse!..."
Desfiz o equívoco, como convinha e expliquei a situação
ao rapaz, que se foi embora, muito aliviado por não
ter que desentupir a veia da Paula Cristina. E eu fiquei
a pensar que continua a não valer a pena explicar
a um boi como se constrói um palácio...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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