O mistério da mala
Que era muito nervosa, começou logo
por avisar, fazendo um gesto muito expressivo com ambas
as mãos. E antes que eu pudesse perguntar fosse o
que fosse, foi-me dizendo que tudo tinha começado
há um mês atrás.
Que tinha uma vida muito agitada, sempre a saltar de Santo
André para Setúbal e de Setúbal para
Almada, e novamente para Santo André. Talvez passando
por Setúbal, mas já não me lembro muito
bem...
Que tinha dito ao marido para não pegar na mala,
porque ele também sofre muito das costas. Ela, se
calhar, também sofria muito das costas, mas também
já não me lembro muito bem.
Que o marido tinha insistido para pegar na mala e que ela
tinha insistido para que ele não pegasse. Suponho
que ele não pegou, mas já não me lembro
muito bem.
Que, assim que chegaram a Setúbal, depois de atravessarem
o Sado no ferry, abriu o porta-bagagens do carro e lá
estava a mala.
Que, se ela não tinha pegado na mala e se o marido
também não, como raio teria aparecido a mala
na bagageira do carro?... Que tinham assaltado o carro -
concluiu ela.
Que ficou tão nervosa, que os maxilares começaram
a bater um no outro. Fez uma demonstração
elucidativa.
Que desde essa altura, ficou com umas grandes dores nos
maxilares, que nem a deixavam comer. Acho que beber também
não, mas já não me lembro muito bem.
Que, se calhar, eram os nervos que se tinham apoderado dela.
Fui ver. Era uma piorreia das antigas. A boca parecia a
zona ocidental de Beirute, cheia de crateras de obuses,
no lugar dos dentes. E o pus espreitava a cada escombro
dentário.
Que não era dos nervos, expliquei.
Que era da piorreia.
Que, se calhar, tinha deixado a escova de dentes dentro
da mala, bem como a carteira com o dinheiro para comprar
uma escova nova.
Que eu até nem disse nada disto. Mas pensei.
Ou, se calhar, disse, mas também já não
me lembro muito bem...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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