PEÇA QUE EU PASSO
Há dias em que um tipo já não tem
pachorra para aturar os chamados utentes consumistas, que
semanalmente acorrem ao Centro de Saúde pelas coisas
mais diversas - e raramente são doenças.
Um tipo sobe os quatro lanços de escada que separam
a rua do consultório e, quando vai a meio dos segundo
lanço, já consegue descortinar os rostos do
costume e pensa: é preciso muita imaginação
para arranjar, todas as semanas, uma justificação
para vir à consulta. E dá-lhe uma vontade
súbita de acabar com a saúde gratuita, com
os cuidados de saúde primários, com os programas
de educação para a saúde, com a vigilância
dos hipertensos e diabéticos, com a saúde
infantil, o planeamento familiar, a saúde materna,
com os centros de saúde - sei lá! sente-se
um desejo íntimo perverso de ser um ditador sul-americano,
ou que o terramoto de Los Angeles tivesse o epicentro ali
mesmo, ou que o incêndio de Sidney tivesse atravessado
o oceano e transformasse o centro de saúde em escombros
carbonizados, de preferência com aquele tipo de utentes
lá dentro.
Enfim... são só pré-delírios
do consciente...
É que, depois de ter observado vinte e tal utentes,
dos quais, dois ou três estavam, de facto, doentes,
e os restantes apenas foram passear até ao consultório,
uma pessoa já está por tudo.
O utente quer uma análises de rotina, apesar de ter
feito umas há apenas dois meses e estar tudo bem
- eu passo.
O utente quer uma radiografia à cabeça porque
há dez anos deu uma mocada na parede e desde a semana
passada que lhe doem as meninges - eu passo.
O utente quer aqueles comprimidos que fizeram tão
bem ao reumático da vizinha, enquanto que os que
eu lhe prescrevi não fizeram nada - eu passo.
O utente quer um atestado para lhe instalarem o telefone
mais depressa - eu passo.
O utente quer um atestado para poder fazer ginástica
aeróbica ou natação em piscina aquecida
- eu passo.
O utente quer uma declaração de doença
crónica para sacar o rendimento mínimo - eu
passo.
Há dias em que é só eles pediram que
eu passo.
Mas há coisas que só vistas, porque contadas...
Mas eu conto.
Aqui há uns tempos, já depois de ter visto
os poucos doentes, os muitos utentes e de ter passado as
mais diversas declarações, os mais fantásticos
atestados, de ter renovado o receituário dos inúmeros
doentes crónicos, de ter passado receitas à
Maria, à vizinha da Maria e à prima da Maria,
que ainda por cima está em Cabo Verde e, como lá
não há medicamentos, é quatro caixas
de cada, se faz favor, ainda me apareceu uma senhora que,
espreitando pela porta entreaberta, me acenou com um envelopezinho:
“O sr. dr. desculpe... mas não se importava
só de dar um olhinho a estas análises que
me pediu a semana passada?... Só gostava de saber
se estava tudo bem, para ficar mais descansada...”
Recolhi o envelope, fechei a porta, respirei fundo, atirei-me
para a cadeira e abri o envelope: era um extracto bancário!
Levantei-me, abri a porta e ali estava ela, aguardando ansiosamente.
Disse-lhe, com o ar mais sério que arranjei naquele
momento:
“Está tudo bem, dona Laura... mas, se fosse
a si, punha o dinheiro a prazo, que o juro sempre é
maior!...”
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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