Pessoas boas
A Leonilde tinha uma teoria fascinante sobre
as pessoas. Ao longo de várias consultas, foi-me
iniciando nos meandros da sua teoria, que passo a expor
sucintamente.
Segundo a Leonilde, existiam as chamadas Pessoas Boas que,
pela sua força interior, por terem sido bafejadas
pela benemerência divina ou por qualquer outra razão
fantástica, tinham a capacidade de ser felizes e
de tornar os outros felizes bastando, para tal, falarem
um pouco ou, simplesmente, estarem por perto. A Leonilde,
claro, pertencia a essas Pessoas Boas - e eu também...
Mas existia um perigo. Há sempre um...
As Pessoas Boas não deveriam revelar que pertenciam
a essa elite. Várias vezes me avisou que eu não
desse a entender a ninguém que pertencia a essa categoria
de seres escolhidos - isto, porque as outras pessoas poderiam
retirar-nos todos os poderes, através da inveja.
A coisa era um pouco mais complicada, mas o essencial da
teoria aqui fica, para que se registe. E mais não
adianto, porque estou a fugir aos conselhos da Leonilde
e ainda acabo por perder os poderes das Pessoas Boas. Mas
eu aceito correr esse risco...
A força interior das Pessoas Boas, manifestava-se
de diversas maneiras. A Leonilde contou-me que, certa vez,
após a morte do pai, tinha uma dívida a pagar.
Estava no último dia do prazo e não tinha
dinheiro. Se não pagasse a dívida, o penhorista
tirava-lhe um pequeno talho de que era proprietária.
Ei-la então, chegada ao último dia do prazo
para pagar a dívida, sem um tostão e em risco
de perder o pouco que o pai lhe deixara em herança.
Lá bem no seu íntimo, sabia que tudo se resolveria,
porque ela era uma Pessoa Boa. Por isso, arranjou-se e saiu
de casa, com a carteira vazia. E então não
é que, mesmo à porta de casa, surgiu, qual
anjo na Terra, um antigo amigo do pai, pessoa de largas
posses e que, posto ao corrente da situação,
se prestou a pagar a dívida?
Mas os perigos das Pessoas Boas também eram muitos.
A Leonilde contou-me um deles. Certa vez, decidiu ir passar
uns dias de férias a casa de uma amiga, no Algarve.
Não devia ter ido, sabia que não devia ter
ido, mas, em vez de se deixar guiar pelo seu instinto, foi
e pronto - assim que lá chegou, foi picada na perna
por um insecto. Seguiu-se a reacção alérgica
habitual, que a Leonilde resolveu com gelo, embora de um
modo peculiar, como não podia deixar de ser: pegou
num lencinho de seda, pertença de uma avó
ainda mais antiga que ela, enfiou-o num saco plástico
e congelador com ele. Uma vez congelado, o lencinho servia
de compressa sobre a zona da picada. Remédio santo...Santa
Leonilde... Mas após a picada, vieram as complicações,
sob a forma de uma tosse seca e irritativa que não
deixava a Leonilde sossegar. Dias amargos aqueles, passados
no Algarve, em companhia da tal amiga. Certa noite, após
mais um daqueles ataques de tosse que até se urinava
toda, a Leonilde descobriu tudo: a amiga convidara-a, a
fim de poder pôr em acção o diabólico
plano de lhe transmitir um qualquer vírus causador
da tosse. Após o falhanço do insecto, a amiga
deveria ter juntado qualquer coisa na água, que o
sabor até era esquisito... Afinal, a falsa amiga
da Leonilde, sabia que ela era uma Pessoa Boa e queria destruí-la.
A sábia Leonilde veio-se embora na manhã seguinte
e, mal chegou a casa, a tosse desapareceu.
Aqui fica o aviso a todas as Pessoas Boas: nunca aceitem
convites para passarem férias no Algarve. As Pessoas
Más estão sempre à espera de nos apanhar
nas suas malhas, para acabarem de vez com as Pessoas Boas!...
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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