REFORMA A QUALQUER PREÇO
Há profissionais das disciplinas mais incríveis.
As profissionais da reforma por invalidez são das
mais engenhosas que conheço. Ano após ano,
metem os papeis para a reforma e os sucessivos carimbos
de “apta para o exercício da sua profissão”
não as fazem desistir.
Após mais um falhanço, deixam passar algum
tempo, durante o qual não me incomodam, indo muito
raramente à consulta, mas depois tornam-se avassaladoras.
Como que por magia, as suas queixas aumentam em progressão
geométrica, vêm à consulta semanalmente
e, quando está quase a fazer um ano que foram à
anterior Junta Médica, informam-me que pretendem
meter novamente os papeis para a reforma. Embora saiba que
estou a gastar o meu latim, lá lhes vou explicando
que não vale a pena, que as doenças de que
padecem não são suficientes para lhes ser
concedida a reforma por invalidez, mas acabo por lhes pedir
os exames da ordem, elaborar a informação
clínica e lá vão elas a nova Junta
Médica, de onde regressam, invariavelmente, “aptas
para o exercício da sua profissão”.
São habitualmente mulheres, que trabalham em limpezas,
umas horinhas em casa de uma senhora, mais umas horinhas
em casa de outra senhora. Algumas, apenas fazem uma horinhas
em casa delas próprias e arranjam uma amiga que lhes
assina os papeis, como se de patroas se tratassem. Quase
todas são extremamente corpulentas, gordas e anafadas,
coradas e bem encaradas e doi-lhes muito a coluna. Afirmam
que nem força têm para fazer as camas e que
não têm posição para estar. As
costas doem em pé, sentadas, deitadas, de cócoras
ou de gatas. Depois, vem a radiografia com uma espondilose
incipiente e mais nada.
Fulanas há que começam a meter os papeis para
a reforma aos quarenta e poucos anos e assim continuam,
anualmente. Tentam todos os truques. Vão a médicos
particulares, geralmente ortopedistas. Gastam-nos rios de
dinheiro em análises desnecessárias e na famosa
TAC (a que elas chamam Taco, provavelmente porque custa
muito taco). Vão ao psiquiatra, fazem-se passar por
pírulas, choram, arrastam-se com ciatalgias inimagináveis,
têm ataques, desmaiam e lá continuam gordas
e anafadas, coradas e bem encaradas, “aptas para o
exercício da sua profissão”.
Mas há sempre uma ou outra que consegue ser mais
imaginativa.
A Alerte, por exemplo.
Trabalhou como costureira durante uns anitos, quando ainda
era jovem. Depois, casou-se e tornou-se dona de casa. Depois,
divorciou-se e trabalhou mais uns anos como cozinheira.
Depois voltou a casar e tornou a ser dona de casa. Entretanto,
foi tendo filhas. Aos 48 anos, achou que tinha chegado o
momento de se reformar. Ao fim e ao cabo, sempre tinha descontado
cerca de seis anos para a Segurança Social. E se
havia tantas vizinhas reformadas, por que não ela?...
Ainda por cima, cansava-se tanto... devia ser do coração.
E a coluna devia estar toda torta, tais eram as dores!...
Fiz-lhe a vontade. Fez os exames. Tinha um coração
excelente, uma coluna óptima, tudo em condições.
Repetiu-se a cena no ano seguinte e no outro. Sempre “apta
para o exercício da sua profissão”.
Entretanto, descobriu que uma rapariguinha sua conterrânea,
era agora médica psiquiatra. Obteve um relatório
que a considerava detentora de uma depressão de prognóstico
reservado. Mais reservada foi a Junta Médica, que
lhe colocou mais um carimbo de “apta”.
Quando parecia ter desistido desta obsessão reformadora,
eis que uma das suas filhas se perde de amores por um médico
que - coincidências do destino - fazia parte das Juntas
Médicas de Invalidez noutro distrito.
A Arlete não podia perder esta oportunidade. Pediu
a transferência do seu processo clínico para
esse distrito, incentivou a ligação da sua
filha com o médico, meteu novamente os papeis para
a reforma e, aos 52 anos, aí estava ela, finalmente,
“incapaz para o exercício da sua profissão”.
Entretanto, a rapariga e o médico desentenderam-se
e cada um seguiu o seu caminho. Mas a Arlete, essa, já
está reformada. E não foi por causa do coração,
que continua óptimo, nem pela depressão, que
nunca teve, nem pela coluna, que permanece direitinha, mas
graças aos encantos da filha.
Depois, não me venham dizer que “filhos criados,
trabalhos dobrados!...”
in "Cinquenta Histórias Pouco Clínicas
mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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