O MEU ÚTERO POR UM LINGUADO
Tinha mais de cem quilos e duas pernas de elefante. Edema
até aos joelhos, tromboflebites frequentes, úlceras
da perna, o costume.
Depois, começou com hemorragias uterinas. Abundantes.
Pelas pernas abaixo. Hemoglobinas de 5 gramas. Anemias agudas,
transfusões e o sangue sempre a correr. O útero
era um viveiro de pequenos miomas.
Escrevi para o colega de Ginecologia. Impunha-se a operação.
Mas... e aquelas pernas?...
Ginecologia pede a opinião de Cirurgia Vascular.
Escrevo carta para o colega de Cirurgia Vascular, que controla
a situação com anticoagulantes e a recambia
para mim. Estava pronta para a histerectomia.
Escrevi carta para Ginecologia mas eis que outra hemorragia
cataclísmica a obriga a nova transfusão.
Volta para casa meio zonza, dá um trambolhão
e abre outra úlcera na perna.
Nova carta para Cirurgia Vascular.
Situação controlada - volta à Ginecologia,
com outra carta. E fica em lista de espera para a intervenção
cirúrgica. E eu, a servir de sinaleiro, a escrever
cartas para uns e para outros.
Três meses depois de muitos meses e depois de muitas
cartas, aparece com um telegrama que a informava que se
deveria apresentar no hospital dali a dois dias. Ia ser
internada para a histerectomia.
“Finalmente!...” - exclamei.
“E foi porque eu pedi, sr. doutor...” - replicou
ela.
Explicou-me que fazia umas horas em casa de uma doutora
que trabalhava no hospital e que, na semana anterior, a
doutora tinha dado um jantar assim a “umas pessoas
distintas”. E pedira-lhe que preparasse o seu preto
preferido: linguado no forno.
“Olhe, sr. doutor... eram dez pessoas e catorze linguados
deste tamanho... mamaram-nos todos...” - explicou-me
ela.
No final, os convidados, alguns deles médicos, vieram
à cozinha dar-lhe os parabéns e vinte notas
de mil como prémio. E um deles perguntou: “Então
ainda não foi operada?...”, e ela que não,
que continuava à espera, e ele a dizer que ia ver
o que podia fazer.
E na semana seguinte, lá estava o telegrama.
Fica provado que um bom linguado no forno é muito
mais eficaz que muitas cartas do médico de família...
in "Cinquenta Histórias Pouco
Clínicas mas Muito Cínicas", 1998
ilustração de Pedro Couto e Santos (www.macacos.com)
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