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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


18. Santiago de Cassurrães (18??-1979)

Sou do tempo dos pirolitos. Ia comprá-los à loja do sr. Rebelo, no cimo da Rua Direita de Santiago de Cassurrães; a gente empurrava para baixo o berlinde, que servia de carica, e tinha acesso a uma espécie de limonada, tipo seven-up. Nessa altura, eu ainda não fumava e os pirolitos nem chegaram sequer a ser um vício, já que só os bebia quando ia à terra onde nasceram grande parte dos meus ancestrais.
Santiago de Cassurrães é uma aldeola a cerca de oito quilómetros de Mangualde, no distrito de Viseu. Lá nasceu a minha bisavó materna – a quem chamávamos vósinha Rita. Recordo-a como uma senhora pequenina, com a cara marcada por rugas profundas, muito boazinha e muito velhinha.


Aqui estou eu, talvez com 4 anos, em Santiago, com a minha mãe e com a vosinha Rita.

A vosinha Rita teve três filhos: a minha avó Rita, nascida em 1908 e que, como já disse, é eterna, o tio Afonso, o tal que emigrou para S. Tomé, lá fez fortuna e lá se suicidou por razões desconhecidas, e a tia Odaleia, de quem já falei um pouco no capítulo anterior e que acabou por falecer na sequência da tal trombose.
Com o tio Afonso em S. Tomé e a minha avó Rita em Lisboa, vivendo connosco, a casa de família de Santiago, ficou a cargo da Odaleia que, depois de ter vivido alguns anos em Moçambique, onde casou com um polícia, o Germano Gonçalves, regressou à terra natal e por lá ficou, tomando conta do casarão e das terras.
O casarão ocupa uma extensa área da Rua Direita, a principal e única rua digna desse nome em Santiago. Tem três pisos e forma um quadrado, com um pátio interior. No piso térreo, ficam a adega, a pocilga dos porcos, a arrecadação da lenha, o lagar para fazer o vinho e o tal pátio. No segundo piso, quatro quartos de dormir, um deles interior, destinado à criada (também conhecida como “protegida”), uma sala dita de visitas, com cadeirões de verga e quadros nas paredes, uma sala de refeições, uma cozinha com a inevitável lareira e um quarto dos fundos, onde se tomava banho de imersão numa celha, ou duche, com um regador pendurado do tecto. Da cozinha, tem-se acesso a outra zona do segundo piso, construída numa espécie de varandim sobre o pátio e o lagar e que tem duas retretes (um simples buraco no meio de um tampo de madeira, caindo os dejectos lá em baixo, mesmo ao lado da pocilga e que, depois de devidamente misturados com palha, formavam judicioso estrume humano), e mais meia dúzia de salas, em algumas das quais chegou a funcionar a escola primária da aldeia. A meio caminho entre o segundo e o terceiro piso, uma pequena sala de costura, onde as senhoras bordavam e passajavam as peúgas, a que chamavam chalezinho. No terceiro piso, elevado sobre o telhado, um quarto grande, destinado às visitas.
Sozinhos, neste casarão, a tia Odaleia e o tio Germano, tomaram conta dele, bem como das terras que pertenciam à família, sem nunca serem incomodados por ninguém. Os restantes membros da família nunca ligaram muito àqueles pertences. Lá em S. Tomé, o tio Afonso e o tio José Ricardo tinham mais em que pensar; a minha mãe e a minha avó, há muito radicadas em Lisboa, só se lembravam de Santiago numa ou noutra carta que trocavam com a Odaleia, ou quando lá íamos, no Verão, passar uns dias. Foi, portanto, com alguma surpresa, que tomámos conhecimento da venda da Roda – uma propriedade enorme, com furo de água, vinhas, árvores de fruto e mais não sei o quê – por uns míseros trinta contos, no princípio dos anos setenta. Mistério de família, que nunca indaguei em profundidade. A Odaleia e o Germano estavam a ficar velhos, já não conseguiam dar conta do recado, a terra era muito grande, a mão de obra muito cara e a propriedade lá foi vendida ao desbarato…
O casarão fica logo no princípio da tal Rua Direita, logo ao lado dos Correios, onde pontificavam duas irmãs solteironas e velhotas, a quem chamavam, obviamente, as meninas do Correio. Ao lado do Correio, ficava a Junta de Freguesia, que servia, simultaneamente, de pequena farmácia. Mais acima, depois da taberna do sr. Rebelo, onde eu bebia os pirolitos e o meu pai provava o vinho novo, ficava outro casarão que pertencia à família do meu pai, mais propriamente, à minha avó paterna, de nome Ada. Isto quer dizer que os meus pais já se conheciam desde miúdos, embora o romance entre os dois tivesse, de facto, começado no consultório do meu padrinho, Dr. Artur de Oliveira, como já relatei.
Subindo mais um pouco a Rua Direita, deparávamos com a casa da tia Emilia; não faço ideia porque raio é que a tal Emilia era minha tia, mas era assim que ela era chamada e, durante muito tempo, pensei que tia Emilia era o seu verdadeiro nome próprio e que “tia” nada tinha a ver com parentescos. A tal tia Emilia emigrara em tempos para a América, lá se casara com um português chamado Américo (coincidências…) e, depois de reformados, voltaram à terra natal. O tio Américo, da América, falava um português cheio de sotaque norte-americano e todos lhe chamavam “Cassolina”, que era como ele pronunciava gasolina. O meu pai gostava muito do Cassolina; embora nunca tenha aprendido línguas, ficando-se pelo antigo segundo ano da chamada escola comercial, o contacto permanente do meu pai com tipos de outros países, como conferente marítimo, permitia-lhe safar-se muito bem junto de qualquer estrangeiro, a quem atirava com expressões como “chambote kaná”, que nunca ninguém soube o que queria dizer, nem ele…
Uma das diversões dos dias que passava em Santiago era ir à fonte buscar água, já que a casa (e a aldeia), obviamente, não tinha água canalizada. Lá se arranjava um cântaro pequenino para eu transportar, enquanto a criada, perdão, a “protegida”, carregava com um cântaro enorme à cabeça e mais um em cada mão. Trabalho infantil, é o que era mas, naqueles tempos, o tabaco não fazia mal à saúde, o assédio sexual e o trabalho infantil ainda não tinham sido inventados. Os meus tios tiveram várias protegidas, habitualmente miúdas com sete ou oito irmãos, cujas mães não tinham dinheiro para vestir e alimentar e que, a troco disso mesmo (cama, mesa e roupa), eram verdadeiras escravas. Ficavam lá por casa até começarem a ter as mamas suficientemente desenvolvidas para arranjarem um homem que as levasse dali para fora. Mas, assim que uma protegida se ia embora, logo outra ocupava o seu lugar. De facto, não podiam queixar-se de falta de comida mas, de resto, faltava-lhes tudo: dormiam no único quarto interior do casarão, sem luz eléctrica, levantavam-se de madrugada e só iam para a cama depois dos meus tios já estarem deitados e, durante o dia, andavam numa roda viva, fazendo recados, indo buscar água à fonte, dar de comer às galinhas e aos porcos, levar o mata bicho aos tipos que trabalhavam nas terras, varrer a casa, servir à mesa, e assim por diante. Quando nós lá íamos passar uns dias, o trabalho destas miúdas duplicava, o que enfurecia o meu pai e entristecia a minha mãe. Por isso, e por outras razões, nunca lá ficávamos muito tempo.
Lembro-me, no entanto, para além do episódio da primeira comunhão, que já relatei, da frescura impressionante da água da fonte, que até fazia doer os dentes, do olhar aflito do porco, sempre fechado na pocilga, com uma pequena janela por onde entrava uma réstia de luz do dia, dos homens a pisar as uvas, com as calças arregaçadas, a misturarem o pé de atleta com o vinho, do adro da igreja, onde costumava jogar à bola com o meu pai, dos carros de bois subindo lentamente a Rua Direita e deixando grandes bostas pelo caminho. Muito pequeno ainda, tinha sempre um certo receio de me servir, sozinho, da retrete. Aquele buraco que dava para o vazio fazia-me impressão e não achava nada seguro meter lá o rabo. Por isso, fazia o serviço no penico que, depois, era convenientemente despejado para o pátio, onde as galinhas misturavam tudo com as patas, numa imundície a céu aberto. Aí está outra coisa que também ainda não tinha sido inventada, pelo menos em Santiagado, a Saúde Pública.
A última vez que fui a Santiago com os meus pais, tinha 18 anos e começara a namorar com a Mila há pouco tempo. Só lá voltei em 1979, para efectuar o saque a que me referi no capítulo anterior. Nunca senti nada de especial por aquela terra. De uma maneira ou de outra, nunca a senti como minha – ao fim e ao cabo, nasci numa casa na Avenida Miguel Bombarda, em Queluz, onde os meus pais viveram temporariamente, embora tenha sido registado na freguesia da Encarnação, como se tivesse nascido no Bairro Alto. Sou, portanto, um lisboeta e, como todos os verdadeiros lisboetas, não tenho terra…
Repararam, certamente, em mais esta coincidência: nasci em Queluz e, mais tarde, conheci a companheira da minha vida, que morava, exactamente em Queluz.
Outra coincidência: a família materna do Zé Tó era oriunda de Cativelos, uma terriola perto de Santiago e a mãe do Zé esteve vai não vai para casar com o meu tio Afonso, o tal suicida!
Depois da doença da Odaleia, a minha avó Rita foi viver para Santiago, onde permaneceu cerca de dois anos. A minha tia acabou por falecer e a minha avó veio viver connosco durante alguns anos, regressando, mais tarde, a Moimenta.
O casarão para lá ficou, cada vez mais degradado, ameaçando cair sobre si próprio. O Paulo e a Bela parecem interessados em recuperá-lo e transformá-lo para turismo de habitação. Será que vão conseguir?
Para mim – já frisei – apenas quero dois fins de semana à borla por ano, no novo empreendimento, até ao fim dos meus dias.
E suspeito que ainda hei-de ir à China antes de voltar a Santiago…

 

 





 

 

 



Próximo capítulo: 19. Mourão (1980)

 

Actualizado em: 11 Maio 2003
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