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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


25. A Pantufa (1982)

Sempre tivemos uma boa relação com os gatos. Desde o Nuno, que foi o primeiro, em 1976, até à Michelle, que foi a última, por enquanto, e que ainda está viva e de boa saúde, em casa do Pedro e da Dalila. Mas a gata da nossa vida foi a Pantufa, também conhecida pelo apelido de Estefânia.
Esse apelido relacionava-se com o local onde a encontrámos, exactamente, um corredor do Hospital D. Estefânia.
Foi no meu primeiro dia de regresso à situação de civil; a Mila estava de Banco no hospital pediátrico, na noite da passagem do ano e eu fui-lhe fazer companhia. A páginas tantas – já passava da meia noite – fomos até a uma cozinha do hospital, mandibular a magra ceia que os Hospitais Civis disponibilizavam ao pessoal de serviço: uma sandes de queijo e fiambre mais ou menos rançosos, um ovo cozido, leite e uma maçã. O Estado sempre tratou os seus servidores com muita dignidade… Sabem o que é a ADSE?… É o sistema de saúde dos funcionários públicos. Sabem o que quer dizer a sigla ADSE?… Isso mesmo: Assistência na Doença aos Servidores do Estado. É isso que nós somos – servidores do Estado. Vamos a caminho dos trinta anos de Democracia, o Ministério do Interior já mudou o nome para Administração Interna, o Imposto Complementar chama-se, agora, Imposto sobre o rendimento de pessoas Singulares, a saúde deixou de ser uma simples Secretaria e já é um Ministério e o Presidente do Concelho de Ministros é, hoje em dia, um simples Primeiro Ministro. Mas nós, médicos, enfermeiros, administrativos, continuamos servidores do Estado. Reparem bem no adjectivo “servidores”; quem serve, serve alguma coisa – e nós servimos o Estado. Somos, portanto, servos, isto é, escravos. Não nos queixemos, portanto, se nos davam, como ceia, os produtos acima referidos e se nos dão, ainda hoje, um subsídio de almoço que faz rir qualquer sem abrigo. Estou a exagerar?…
Bom, estávamos nós a comer a tal ceia quando ouvimos um ténue miado. Fomos ver e era a Pantufa – uma gatinha, talvez com dois meses, se tanto, cinzenta malhada, mas com o peito todo branco, bem como as patinhas, como se tivesse umas pantufas calçadas. Daí, Pantufa. Pegámos nela e, no final do serviço, levámo-la para casa.


A Pantufa, aqui já com cerca de 8 anos, na sua posição preferida e deitando a língua de fora ao fotógrafo.

A Pantufa sempre foi uma gata especial. Aos quatro anos, teve que ser submetida a uma histerectomia radical devido a uma infecção pélvica mas, mesmo antes disso, nunca demos por nenhum dos seus cios; era uma gata calma, que raramente miava e que emitia uns sons curiosos quando dava um salto, o que acontecia apenas de quando em vez; pelo contrário, mal um de nós lhe pegava ao colo, punha logo o motor a trabalhar e ronronava alto e bom som.
Quando chegou ao Algueirão, a Pantufa não teve que fazer nada de especial para se tornar, desde logo, a gata da casa; o Snoopy era um gato genuinamente vadio que se pirava sempre que lhe apetecia, estando vários dias em parte incerta; a Panqueca, embora não se afastasse muito, era a tal que gostava de subir ao telhado e, sempre que tinha um cio, ficava completamente louca. Num desses cios, engravidou e deu à luz dois gatinhos, o Mascarilha e o Gin Tónico. Na noite em que pariu, eu estava numa reunião qualquer com a equipa do Carlos Cruz. A Panqueca procurou a companhia da Mila e miou por ajuda; a Mila foi buscar a banheira de plástico onde demos banho ao Pedro e à Marta, quando eles eram pequenos e que ainda guardávamos ninguém sabe porquê; cobriu-a com toalhas de praia e a Panqueca percebeu que seria ali a sua Maternidade. No entanto, a bicha era mesmo vadia; mal os gatitos começaram a conseguir dar os seus primeiros passos, sem caírem para o lado, pisgava-se para os seus passeios pelo telhado e deixava-os ao cuidado da Pantufa que, apesar de não ter leite, deixava que os bichos chupassem nos seus mamilos, como se fossem seus filhos.
O gato Gin Tónico não teve muita sorte – saltou o muro da vivenda do Algueirão, tentou atravessar a estrada e levou uma pancada de um carro. Morreu, claro. Quando nos mudámos para Almada, no fim desse ano, levámos só a Pantufa connosco. Saíamos de uma vivenda para um andar e, embora tivéssemos um terraço, tudo à volta eram prédios e seria certo e sabido que, tanto o Snoopy como a Panqueca, acabariam por saltar o muro do terraço e desaparecer na vizinhança. Portanto, o Snoopy foi devolvido à vadiagem, quer dizer, deixámo-lo no Algueirão, entregue à sua sorte (desculpa, gato, espero que tenhas encontrado alguém que tenha cuidado de ti…); a Panqueca, essa maluca, foi para casa da tia da Mila, a Otília, que vive numa casinha com campos à volta e por lá viveu, à solta, até a sua sorte se esgotar; o Mascarilha, foi para casa do meu irmão Paulo, mas também não teve muita sorte.
Só a Pantufa ficou connosco.
Como já disse, teve uma infecção pélvica aos quatro anos. Foi operada pelo Dr. Sabino, o nosso Veterinário de Família. Quando a fomos buscar, após a operação, passei toda a noite de volta dela, porque a pobre da bicha tinha o nariz entupido e, tal como os bebés, os gatos não sabem respirar pela boca; então, eu metia-lhe um dedo entre os dentes, de modo a que ela deixasse entrar algum ar, além de lhe enfiar soro fisiológico nas narinas, tentando desentupir a coisa. Sobreviveu. E viveu sem grandes doenças até aos 16 anos. Morreu calmamente, como viveu, sem grande alarde. Eu e a Mila estávamos em Paris, festejando os nossos 25 anos de casados. Foram o Pedro, a Marta e respectivos namorados, a Dalila e o João, que foram sepultar a Pantufa nas matas da Costa da Caparica, de madrugada, sob a luz dos faróis do nosso carro, esgotando-lhe a bateria; depois, tiveram que pegar o carro de empurrão para poderem regressar a casa.
Não sei se o Pedro ficou “traumatizado” com o abandono do Snoopy, o que é certo é que, anos depois, se redimiu, apanhando, na rua uma gata escanzelada, repleta de pulgas, que trouxe para nossa casa. Chama-se Michelle e, seguindo as pisadas da Pantufa, também já teve que fazer uma histerectomia radical. Neste momento, o Pedro e Dalila vivem alegremente com três gatas: a Michelle, que foi com o Pedro, a Amarela, que foi com a Dalila e a Scully, outra vadia que eles apanharam na rua.
Entretanto, eu tinha cortado o meu bigode, definitivamente. Mas por que razão terei eu deixado crescer um bigode? Se calhar por que achava que me ficava bem, ou porque era moda, ou porque era uma maneira de dar mais respeitabilidade ao meu rosto que, ainda hoje, por enquanto, aparenta menos idade do que a que já tem…
Por uma razão ou por outra, deixei florescer um enorme bigodão. Ainda jovem adolescente, o meu buço sempre foi de respeito. Tenho aí umas fotografias com 14 ou 15 anos, a preto e branco, em que se nota perfeitamente a mancha escura do buço, a separar o nariz do lábio superior. Aí até aos 30 anos, tive sempre mais bigode que barba; talvez por isso, deixei que o bigode crescesse e aparentasse o do meu bisavô, que não conheci, mas do qual tenho uma fotografia – uma das relíquias que trouxe de Santiago. O bigode tinha umas guias retorcidas, que eu me entretinha a revirar, naqueles gestos que um tipo faz quando está distraído. Fumar é, também, algo que se faz distraidamente, quando se está entretido com qualquer outra coisa. Ainda jovem, gostava de ver aqueles actores de cinema, tipo Humphrey Bogart, que fumam com estilo: seguram o cigarro com o polegar, o indicador e o médio e, enquanto puxam o fumo, pelo canto da boca, franzem o olho direito. Quem me dera fumar como aquele tipo! – pensava. Mas depois, fumar é um acto tão banal para mim, tão misturado com a rotina do quotidiano, que fumo e nem dou por isso. Não sei se tenho estilo quando fumo, acho que seguro o cigarro como quase toda a gente, entre o indicador e o médio e que o faço distraidamente. Aliás, já desisti há muito tempo de dar mais “estilo” ao meu acto de fumar, desistindo das cigarreiras, tipo James Bond e dos isqueiros mais ou menos sofisticados. O verdadeiro fumador não liga a essas mariquices – é o maço de cigarros e o isqueiro tipo Bick e está a andar!…
Como já contei, o capitão Angelo, lá da recruta, mandou-me cortar o bigode, que não seria consentâneo com as normas militares, embora fosse muito semelhante ao usado por Bismarck, antecessor do Angelo em apenas duas ou três gerações. Mas enfim, os usos e costumes mudam com as épocas e com as pessoas – haverá bigode mais odiado que aquela coisa ridícula que o Hitler usava? E, no entanto, o mesmo estilo de bigode foi essencial para o Charlot construir o seu personagem e, hoje em dia, como se diz? Bigode à Hitler ou à Charlot?… Depende, não é?… Se a pessoa é detestável, diremos que é à Hitler; se a pessoa nos é simpática, será à Charlot…
Portanto, tive que cortar o bigode por causa da recruta mas, assim que a terminei, deixei que as guias crescessem novamente mas, muito sinceramente, já estava um bocado farto daquele bigode. Foi então que apareceu na cena portuguesa um senhor chamado Jorge Gonçalves e que foi presidente do Sporting. Os que ainda se recordam dele, lembrar-se-ão, certamente, do bigode farfalhudo que o tipo usava. Pois o meu era do mesmo género. Podem crer que não achava graça nenhuma quando alguém me dizia que eu tinha “um bigode à Jorge Gonçalves”! Olha que graça! Corta-se o bigode – já! Eu, comparado com o presidente do rival do Benfica, com um gajo que comprava e vendia jogadores como se fossem blocos de cimento? Não podia tolerar isso! E, como o bigode já me fartava, cortei-o, definitivamente. Depois disso, ainda deixei crescer o bigode algumas vezes, mas sempre tendo a barba como companhia e nunca mais deixando que as guias crescessem.
Como já devem ter percebido pelas histórias que fui contando neste capítulo e no anterior, a nossa vida no Algueirão terminou antes do ano de 1982 chegar ao fim. O nosso senhorio conseguiu provar que, além de ser emigrante – e não fugitivo ao 25 de Abril – não tinha mais nenhuma casa onde viver, coitadinho. Seria um escândalo, um engenheiro, empregado de uma dessas petrolíferas multinacionais, depois de ter emigrado para terras estrangeiras, para ganhar o pão que não conseguia na sua terra natal, regressasse ao seu país e tivesse que dormir ao relento, porque um casal de médicos lhe tinham ocupado legalmente a casa, pagando, todos os meses, seis contos de renda, conforme contrato assinado pelo seu pai, como representante juridicamente reconhecido – contrato que guardo religiosamente. Portanto, a justiça fez-se e, a troco de uma indemnização ridícula de duzentos e poucos contos, deixámos a casa do Algueirão e viemos para o lado certo do rio, como diz a propaganda autárquica do PCP – Almada.
Como sempre, as decisões foram rápidas e tomadas por ambos; quando um diz “mata”, o outro acrescenta logo “esfola”. Publicámos, a 20 de Novembro, um anúncio no eterno Diário de Notícias, que dizia:

“Casal médicos precisa habitação, mínimo 4 assoalhadas, Lisboa, arredores. Até 30 contos. Resposta tel. 921 52 39 depois 19h.”

Nesse mesmo dia, recebemos um telefonema do sr. António Pereira, que tinha uma casa para alugar, com quatro assoalhadas, num primeiro andar da Rua Bernardo Francisco da Costa, em Almada, por vinte e oito contos mensais. Almada?… Mal conhecíamos Almada, caraças! Nunca tínhamos pensado na possibilidade de ir viver para Almada. Mas enfim, fomos ver a casa no dia seguinte e gostámos; tinha uma sala boa, dois quartos razoáveis, um outro mais pequenito e um terraço que nos agradou – para quem vinha de uma vivenda, o terraço prometia alguma liberdade para os miúdos, habituados a espaços largos para brincarem. E como não tivemos mais nenhuma proposta e, sinceramente, não nos agradava a perspectiva de ir para tribunal por causa da casa do Algueirão, chegámos a acordo com o sr. Pereira e, no dia 20 de Dezembro, já estávamos a viver em Almada!
A mudança já foi feita a bordo do nosso novo Fiat 127 – o primeiro carro em primeira mão que conseguimos comprar, embora com a ajuda dos Sousas, que o numerário ainda era escasso, e ainda com a ajuda do Carlos Cruz, a quem tive a coragem de pedir que me pagasse alguns programas adiantados. O HE-01-47 custou-me 435 contos, pagos em dinheiro, no dia 19 de Agosto, num stand da Avenida da Liberdade. E pagos em dinheiro porque nós não tínhamos esse dinheiro no Banco e eu não tive coragem de pagar com três cheques, um meu, outro do Sousa e outro do Carlos; então, saquei os três cheques e fui pagar em dinheiro. Foi assim que subi a Avenida da Liberdade, a pé, calmamente, com quase quatrocentos contos em dinheiro no bolso. Outros tempos!…
O 124 era mais potente, mas o 127 era novo e cheirava a novo e podem acreditar que nenhum dos outros meus carros novos, que mais tarde fui comprando, cheiraram tão a novo como o 127. Era um cheiro especial, a carro sem defeitos, sem ruídos esquisitos, com bancos em que nenhum outro cu tinha tido assento antes e um tablier em plástico onde nunca ninguém tinha passado a mão. Era o nosso primeiro carro em primeira mão, caramba! O 124 ficou lá naquele stand da Avenida da Liberdade (deram-me 50 contos por ele, mais do que tinham dado, em Armamar, pelo R4) e eu fui ter com a Mila, à Estefânia, muito contente, já ao volante do carro novo, muito atrapalhado com o trânsito lisboeta e admirado com a suavidade com que as mudanças entravam.
No entanto, no princípio desse ano, ainda pensávamos, de algum modo, que fosse possível continuar a viver no Algueirão durante mais algum tempo, razão pela qual decidimos dar uma mão ao meu irmão e à sua mulher Guida, que foram viver para a cave. Finalmente, e depois de toda aquela história do Pereira Velez, conseguimos dar alguma utilidade à cave da nossa casa. Como já contei, o Paulo e a Guida casaram-se mais ou menos apressadamente e foram viver para um quarto alugado, o que não tinha sido uma boa opção, mas talvez a única possível. Na nossa cave, embora suportando a humidade própria da região da serra de Sintra, o Paulo e a Guida sempre tinham uma maior privacidade e aqueles meses que connosco viveram deram para pouparem algum dinheiro e poderem, depois, quando nós fomos para Almada, avançarem para uma casa alugada com maior segurança económica.
O ano de 1982 foi ainda marcado por outro acontecimento importante: o nascimento da nossa primeira sobrinha, a Inês. Depois de muitas tentativas e de algumas decepções, a Luisa e o Jorge viram os seus esforços recompensados pelo nascimento, a 8 de Maio, de uma bebé muito gira, com olhos amendoados, que passou a ser a coqueluche da família e veio despertar, na Mila, o desejo de um terceiro filho, ao qual eu sempre me opus, terminantemente, Via os meus filhos crescerem saudavelmente, cada vez mais independentes, o Pedro na 4ª classe, a Marta na 1ª e todas as andanças a que obrigáramos os nossos filhos faziam-me temer que, com o nascimento de um terceiro filho, tudo recomeçasse. Já não sentia energia para um terceiro filho. A Mila não me acompanhou neste temor mas, anos depois, deu-me razão.


A Inês, com cerca de 3 meses. Os bebés da nossa família são mesmo muito bonitos.

Como já devem ter percebido, a nossa mudança para Almada, em Dezembro, obrigou o Pedro a, mais uma vez, mudar de escola (pela sexta vez em quatro anos de escolaridade) e a Marta, que tinha começado a sua primeira classe apenas com cinco anos, no Colégio de Mem Martins, num ambiente protegido, que ela conhecia bem, mudou para a escola de Almada e encontrou um ambiente hostil. A professora, uma senhora com cerca de 60 anos e óculos como fundos de garrafa, não parece ter gostado muito da Marta. Logo nos avisou que ela estava muito atrasada – como se uma miúda de cinco anos que tinha começado a escolaridade três meses antes se podia considerar atrasada! Mas nós fomos na conversa, não queríamos que a nossa filha se sentisse diminuída perante as restantes colegas, só porque os pais andavam sempre a mudar de casa. Quisemos protegê-la e acabámos por colocá-la nas mãos da megera, que começou a dar-lhe explicações particulares, em casa dela, depois das aulas. A Marta ia, sempre muito triste e acabrunhada, mas ia. Certo dia, acabou por ter coragem para dizer à Mila que não queira ir mais, que não gostava da casa da professora, que não se sentia lá bem. Concordámos, claro. Aí, a senhora professora ficou com a chamada dor de cotovelo e nunca mais deixou a Marta em paz. Só anos mais tarde, quando a Marta era já adolescente, é que nós soubemos toda a verdade, que a miúda sempre nos escondeu, temendo represálias da professora. Para a velha, a Marta sempre foi a burra, a atrasada e várias vezes foi avisada que, em casa, nunca se conta o que se passa na escola. A Marta comeu e calou e esforçou-se por não ser a burra, nem a atrasada. Terminou o seu curso aos 22 anos, sem nunca ter chumbado um único ano! A velha professora ainda anda por aí, que eu vejo-a de vez em quando, curvada sob o peso dos óculos de fundo de garrafa, ignorando, talvez, o mal que fez a muitos miúdos. Mas, enfim, a senhora também deve ter ensinado muitos putos a ler e a escrever e, como todos nós sabemos, as coisas nunca têm só o seu lado negativo. Quem sabe se as ameaças da velha não terão ajudado a Marta a desabrochar e a ser a mulher combativa que é hoje? No entanto, será necessário sofrer tanto?…
Mas estava a falar da Inês. Quando ela nasceu, o Pedro tinha quase 9 anos e a Marta ia a caminho dos 6. Os restantes membros da família não pareciam com muita vontade de produzir crianças que perpetuassem o nosso código genético. O Paulo, então com 22 anos e a Bela, com 21, ainda eram novos para pensarem nessas coisas, embora eu tivesse sido pai aos 20 anos… E, em termos de reprodução, a família terminava aí. A única esperança era a Luisa e ela não nos desiludiu. Sempre senti uma enorme ternura pela Luisa, muito idêntica à que sinto pela minha irmã; aliás, nunca penso na Luisa como cunhada, mas como irmã mais nova e fiquei muito feliz por vê-la feliz com o nascimento da Inês. O Paulo não teve filhos, a Bela também não e, portanto, até ao nascimento da Rita, a Inês ocupou o lugar da mais nova da família.
Alguns dados curiosos desse ano do nascimento da Inês: no dia em que o Pedro completou 9 anos, comprámos a nossa primeira televisão a cores: um Sanyo, pequenino, por 34 contos; serviu para, durante o mês de Julho, assistirmos ao Campeonato Mundial de Futebol, na casa que alugámos na Costa da Caparica, juntamente com a Luisa e o Jorge. Ganhou a Itália e lembro-me muito bem dos grandes golos marcados pelo Paolo Rossi. Os bonecos da moda eram os Schtroumpfes e os carecas; a pouco e pouco fomos comprando esses bonequinhos azuis até enchermos um saco que, diariamente, durante as férias desse ano, transportávamos para a praia, juntamente com outro saco com os baldes, as pás, os ancinhos, as formas, os carrinhos, para além de uma casinha de pano, que se montava quando chegávamos à praia e se desmontava antes de virmos embora. Para irmos à praia com as crianças era quase necessário um camião para carregar toda a sorte de bugigangas que o Pedro e a Marta exigiam que se levasse, a fim da sua estadia no areal se tornar mais agradável e divertida. Já não sei muito bem onde param as dezenas de Schtroumpfes que fomos comprando, mas mantenho connosco meia dúzia deles – são os Schtroumpfes de Natal, carregando sacos de prendas e outros embrulhos e que, desde essa altura, fazem parte do nosso presépio blasfemo. Quanto aos carecas, foram dos primeiros bonecos com cara e corpo de recém nascidos, que se foram aperfeiçoando ao longo dos anos e que, hoje em dia, imitam de tal modo a realidade, que não percebo por que raio há cientistas preocupados com a clonagem. A Marta adorava os carecas mas, sobretudo, as Barbies. Teve-as de vários feitios e com diversas indumentárias, bem como os acessórios que então havia, a cozinha, o salão de cabeleireiro, o quarto, o ginásio… Caixotes cheios de Barbies e respectivos apêndices, encheram as prateleiras da nossa casa desde que a Marta se começou a interessar por outros bonecos mas sempre se recusou a desfazer-se das suas recordações de infância. Foram ontem, 25 de Agosto de 2001, dia em que a avó Rita completou 93 anos, transladados para o apartamento da minha filha, que se casa já no próximo mês…
A propósito dos Schtroumpfes – cujos álbuns de banda desenhada também comprámos – recordo aqui outros dois heróis da banda desenha franco-belga, Norbert e Kari, da autoria de Godard. Dois desses álbuns, “O senhor dos abismos” e “A ilha dos monstros”, editados em 1975, tinham tradução do Mário-Henrique. E para quem tivesse dúvidas a esse respeito, basta ler a legenda do segundo quadradinho da página 6; Kari está sentado num rochedo e fala para um golfinho: “Atenção! Repete comigo no mesmo compasso: Andava no gamanço o esgraçadinho, roubando pró filhinho trabeculoso…” Certamente que o tal Godard não deve ter escrito nada de semelhante…
E quanto a escrita?
De Fevereiro a Julho, participei em mais um projecto do Carlos Cruz e Zé Duarte, na Rádio Comercial, aos sábados à tarde, chamado “Contra-Ataque”. Da equipa, faziam também parte o BBC e o António Sérgio, encarregados da música e o Zé Tó, que voltou a trabalhar comigo, desta vez para elaborarmos pequenos blocos inseridos no programa, e que eram o Pão Comanteiga no Contra-Ataque.
Mais uma vez, recordo algumas frases que escrevi então:

“- Na União Soviética não há sol que derreta Brejnev.
- A frase mais célebre do ayatollah Khomeiny é: “Para onde eu for, eles Irão!”
- Quando Guilherme Tell atirou a seta, acertou na maçã ou falhou o filho?
- Na vida há coisas essenciais e outras que também fazem muita falta.
- O sol, quando nasce, é para todos, mas os chineses levam uma boa parte..
- Se o homem é a medida de todas as coisas, qual é a distância do Porto a Lisboa, em homens?
- A introdução de um livro pode ser o mais difícil. Experimente, por exemplo, introduzir “Os Lusíadas” no ouvido direito.
- Jayme Watt was the famous british scientist who invented what?
- Os entendidos sabem que Ampére nada tem a ver com “um pére”, embora les fils d’Ampére ont appelé pére a Ampére. Ça prouve que Ampére a eté pére, mais ni tous les péres ont étés Ampére.
- Não se pode dizer, a priori, que as ervas d’aninhas sejam piores que as ervas das ritinhas; só vendo, só vendo…
- Todos sabem que os cães têm bom faro. Se tivessem bom santarém, eram escalabitanos.
- As fardas militares lavam-se nos tanques de guerra.”


A equipa do Pão Comanteiga, em 1982: Bernardo Brito e Cunha, a assistente, Isabel Pinhão, José António Pinheiro, José Duarte e eu; à frente, lendo e interpretando os nossos textos, Carlos Cruz.

Estas apenas algumas das dezenas e dezenas que escrevi. Esta fase do Pão Comanteiga, integrado no Contra-Ataque, também se caracterizou pelos inúmeros diálogos sobre a actualidade política, lidos pelos Carlos e pelo José Duarte e que terminavam com diversos bordões, entre eles, “só tenho coisas que me ralem”, numa homenagem ao Mário-Henrique, e “só falo na presença do meu advogado”. Fizemos ainda uma brincadeira que nos deu muito gozo: o Carlos apresentava o Pão Comanteiga como se fosse um daqueles programas de rádio dos anos 40 e 50, com separadores de “pling plong”, e que tinha o patrocínio da inventada “Manteiga do Prado”, cujo slogan mudava de parágrafo para parágrafo. Assim, a “manteiga do prado” era a preferida do reformado, a do general e do soldado, a que se barra em qualquer lado e assim por diante. Desse pequeno segmento, constavam coisas tão absurdas como a leitura do abecedário, da tabuada dos nove, do trajecto de algumas carreiras de autocarro do Porto, das distâncias quilométricas entre Lisboa e localidades começadas por uma determinada letra, etc.
Este gozo, já me valia cinco contos por programa. O valor monetário do humor estava a crescer…
Em Outubro, regressava, em força, o Pão Comanteiga. Da equipa, saíra o Joaquim Furtado e entrara o José António Pinheiro, os restantes mantinham-se; e lá estava, novamente, o Zé Tó entre fumadores.
De mais esses 32 programas, falarei no próximo capítulo.

 

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: 26. Tenho 30 anos (1983)l

 

Actualizado em: 14 Setembro 2003
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