25. A Pantufa (1982)
Sempre tivemos uma boa relação com os gatos.
Desde o Nuno, que foi o primeiro, em 1976, até à
Michelle, que foi a última, por enquanto, e que ainda
está viva e de boa saúde, em casa do Pedro
e da Dalila. Mas a gata da nossa vida foi a Pantufa, também
conhecida pelo apelido de Estefânia.
Esse apelido relacionava-se com o local onde a encontrámos,
exactamente, um corredor do Hospital D. Estefânia.
Foi no meu primeiro dia de regresso à situação
de civil; a Mila estava de Banco no hospital pediátrico,
na noite da passagem do ano e eu fui-lhe fazer companhia.
A páginas tantas – já passava da meia
noite – fomos até a uma cozinha do hospital,
mandibular a magra ceia que os Hospitais Civis disponibilizavam
ao pessoal de serviço: uma sandes de queijo e fiambre
mais ou menos rançosos, um ovo cozido, leite e uma
maçã. O Estado sempre tratou os seus servidores
com muita dignidade… Sabem o que é a ADSE?…
É o sistema de saúde dos funcionários
públicos. Sabem o que quer dizer a sigla ADSE?…
Isso mesmo: Assistência na Doença aos Servidores
do Estado. É isso que nós somos – servidores
do Estado. Vamos a caminho dos trinta anos de Democracia,
o Ministério do Interior já mudou o nome para
Administração Interna, o Imposto Complementar
chama-se, agora, Imposto sobre o rendimento de pessoas Singulares,
a saúde deixou de ser uma simples Secretaria e já
é um Ministério e o Presidente do Concelho
de Ministros é, hoje em dia, um simples Primeiro
Ministro. Mas nós, médicos, enfermeiros, administrativos,
continuamos servidores do Estado. Reparem bem no adjectivo
“servidores”; quem serve, serve alguma coisa
– e nós servimos o Estado. Somos, portanto,
servos, isto é, escravos. Não nos queixemos,
portanto, se nos davam, como ceia, os produtos acima referidos
e se nos dão, ainda hoje, um subsídio de almoço
que faz rir qualquer sem abrigo. Estou a exagerar?…
Bom, estávamos nós a comer a tal ceia quando
ouvimos um ténue miado. Fomos ver e era a Pantufa
– uma gatinha, talvez com dois meses, se tanto, cinzenta
malhada, mas com o peito todo branco, bem como as patinhas,
como se tivesse umas pantufas calçadas. Daí,
Pantufa. Pegámos nela e, no final do serviço,
levámo-la para casa.
A Pantufa, aqui já com cerca de 8 anos, na sua
posição preferida e deitando a língua
de fora ao fotógrafo.
A Pantufa sempre foi uma gata especial. Aos quatro anos,
teve que ser submetida a uma histerectomia radical devido
a uma infecção pélvica mas, mesmo antes
disso, nunca demos por nenhum dos seus cios; era uma gata
calma, que raramente miava e que emitia uns sons curiosos
quando dava um salto, o que acontecia apenas de quando em
vez; pelo contrário, mal um de nós lhe pegava
ao colo, punha logo o motor a trabalhar e ronronava alto
e bom som.
Quando chegou ao Algueirão, a Pantufa não
teve que fazer nada de especial para se tornar, desde logo,
a gata da casa; o Snoopy era um gato genuinamente vadio
que se pirava sempre que lhe apetecia, estando vários
dias em parte incerta; a Panqueca, embora não se
afastasse muito, era a tal que gostava de subir ao telhado
e, sempre que tinha um cio, ficava completamente louca.
Num desses cios, engravidou e deu à luz dois gatinhos,
o Mascarilha e o Gin Tónico. Na noite em que pariu,
eu estava numa reunião qualquer com a equipa do Carlos
Cruz. A Panqueca procurou a companhia da Mila e miou por
ajuda; a Mila foi buscar a banheira de plástico onde
demos banho ao Pedro e à Marta, quando eles eram
pequenos e que ainda guardávamos ninguém sabe
porquê; cobriu-a com toalhas de praia e a Panqueca
percebeu que seria ali a sua Maternidade. No entanto, a
bicha era mesmo vadia; mal os gatitos começaram a
conseguir dar os seus primeiros passos, sem caírem
para o lado, pisgava-se para os seus passeios pelo telhado
e deixava-os ao cuidado da Pantufa que, apesar de não
ter leite, deixava que os bichos chupassem nos seus mamilos,
como se fossem seus filhos.
O gato Gin Tónico não teve muita sorte –
saltou o muro da vivenda do Algueirão, tentou atravessar
a estrada e levou uma pancada de um carro. Morreu, claro.
Quando nos mudámos para Almada, no fim desse ano,
levámos só a Pantufa connosco. Saíamos
de uma vivenda para um andar e, embora tivéssemos
um terraço, tudo à volta eram prédios
e seria certo e sabido que, tanto o Snoopy como a Panqueca,
acabariam por saltar o muro do terraço e desaparecer
na vizinhança. Portanto, o Snoopy foi devolvido à
vadiagem, quer dizer, deixámo-lo no Algueirão,
entregue à sua sorte (desculpa, gato, espero que
tenhas encontrado alguém que tenha cuidado de ti…);
a Panqueca, essa maluca, foi para casa da tia da Mila, a
Otília, que vive numa casinha com campos à
volta e por lá viveu, à solta, até
a sua sorte se esgotar; o Mascarilha, foi para casa do meu
irmão Paulo, mas também não teve muita
sorte.
Só a Pantufa ficou connosco.
Como já disse, teve uma infecção pélvica
aos quatro anos. Foi operada pelo Dr. Sabino, o nosso Veterinário
de Família. Quando a fomos buscar, após a
operação, passei toda a noite de volta dela,
porque a pobre da bicha tinha o nariz entupido e, tal como
os bebés, os gatos não sabem respirar pela
boca; então, eu metia-lhe um dedo entre os dentes,
de modo a que ela deixasse entrar algum ar, além
de lhe enfiar soro fisiológico nas narinas, tentando
desentupir a coisa. Sobreviveu. E viveu sem grandes doenças
até aos 16 anos. Morreu calmamente, como viveu, sem
grande alarde. Eu e a Mila estávamos em Paris, festejando
os nossos 25 anos de casados. Foram o Pedro, a Marta e respectivos
namorados, a Dalila e o João, que foram sepultar
a Pantufa nas matas da Costa da Caparica, de madrugada,
sob a luz dos faróis do nosso carro, esgotando-lhe
a bateria; depois, tiveram que pegar o carro de empurrão
para poderem regressar a casa.
Não sei se o Pedro ficou “traumatizado”
com o abandono do Snoopy, o que é certo é
que, anos depois, se redimiu, apanhando, na rua uma gata
escanzelada, repleta de pulgas, que trouxe para nossa casa.
Chama-se Michelle e, seguindo as pisadas da Pantufa, também
já teve que fazer uma histerectomia radical. Neste
momento, o Pedro e Dalila vivem alegremente com três
gatas: a Michelle, que foi com o Pedro, a Amarela, que foi
com a Dalila e a Scully, outra vadia que eles apanharam
na rua.
Entretanto, eu tinha cortado o meu bigode, definitivamente.
Mas por que razão terei eu deixado crescer um bigode?
Se calhar por que achava que me ficava bem, ou porque era
moda, ou porque era uma maneira de dar mais respeitabilidade
ao meu rosto que, ainda hoje, por enquanto, aparenta menos
idade do que a que já tem…
Por uma razão ou por outra, deixei florescer um enorme
bigodão. Ainda jovem adolescente, o meu buço
sempre foi de respeito. Tenho aí umas fotografias
com 14 ou 15 anos, a preto e branco, em que se nota perfeitamente
a mancha escura do buço, a separar o nariz do lábio
superior. Aí até aos 30 anos, tive sempre
mais bigode que barba; talvez por isso, deixei que o bigode
crescesse e aparentasse o do meu bisavô, que não
conheci, mas do qual tenho uma fotografia – uma das
relíquias que trouxe de Santiago. O bigode tinha
umas guias retorcidas, que eu me entretinha a revirar, naqueles
gestos que um tipo faz quando está distraído.
Fumar é, também, algo que se faz distraidamente,
quando se está entretido com qualquer outra coisa.
Ainda jovem, gostava de ver aqueles actores de cinema, tipo
Humphrey Bogart, que fumam com estilo: seguram o cigarro
com o polegar, o indicador e o médio e, enquanto
puxam o fumo, pelo canto da boca, franzem o olho direito.
Quem me dera fumar como aquele tipo! – pensava. Mas
depois, fumar é um acto tão banal para mim,
tão misturado com a rotina do quotidiano, que fumo
e nem dou por isso. Não sei se tenho estilo quando
fumo, acho que seguro o cigarro como quase toda a gente,
entre o indicador e o médio e que o faço distraidamente.
Aliás, já desisti há muito tempo de
dar mais “estilo” ao meu acto de fumar, desistindo
das cigarreiras, tipo James Bond e dos isqueiros mais ou
menos sofisticados. O verdadeiro fumador não liga
a essas mariquices – é o maço de cigarros
e o isqueiro tipo Bick e está a andar!…
Como já contei, o capitão Angelo, lá
da recruta, mandou-me cortar o bigode, que não seria
consentâneo com as normas militares, embora fosse
muito semelhante ao usado por Bismarck, antecessor do Angelo
em apenas duas ou três gerações. Mas
enfim, os usos e costumes mudam com as épocas e com
as pessoas – haverá bigode mais odiado que
aquela coisa ridícula que o Hitler usava? E, no entanto,
o mesmo estilo de bigode foi essencial para o Charlot construir
o seu personagem e, hoje em dia, como se diz? Bigode à
Hitler ou à Charlot?… Depende, não é?…
Se a pessoa é detestável, diremos que é
à Hitler; se a pessoa nos é simpática,
será à Charlot…
Portanto, tive que cortar o bigode por causa da recruta
mas, assim que a terminei, deixei que as guias crescessem
novamente mas, muito sinceramente, já estava um bocado
farto daquele bigode. Foi então que apareceu na cena
portuguesa um senhor chamado Jorge Gonçalves e que
foi presidente do Sporting. Os que ainda se recordam dele,
lembrar-se-ão, certamente, do bigode farfalhudo que
o tipo usava. Pois o meu era do mesmo género. Podem
crer que não achava graça nenhuma quando alguém
me dizia que eu tinha “um bigode à Jorge Gonçalves”!
Olha que graça! Corta-se o bigode – já!
Eu, comparado com o presidente do rival do Benfica, com
um gajo que comprava e vendia jogadores como se fossem blocos
de cimento? Não podia tolerar isso! E, como o bigode
já me fartava, cortei-o, definitivamente. Depois
disso, ainda deixei crescer o bigode algumas vezes, mas
sempre tendo a barba como companhia e nunca mais deixando
que as guias crescessem.
Como já devem ter percebido pelas histórias
que fui contando neste capítulo e no anterior, a
nossa vida no Algueirão terminou antes do ano de
1982 chegar ao fim. O nosso senhorio conseguiu provar que,
além de ser emigrante – e não fugitivo
ao 25 de Abril – não tinha mais nenhuma casa
onde viver, coitadinho. Seria um escândalo, um engenheiro,
empregado de uma dessas petrolíferas multinacionais,
depois de ter emigrado para terras estrangeiras, para ganhar
o pão que não conseguia na sua terra natal,
regressasse ao seu país e tivesse que dormir ao relento,
porque um casal de médicos lhe tinham ocupado legalmente
a casa, pagando, todos os meses, seis contos de renda, conforme
contrato assinado pelo seu pai, como representante juridicamente
reconhecido – contrato que guardo religiosamente.
Portanto, a justiça fez-se e, a troco de uma indemnização
ridícula de duzentos e poucos contos, deixámos
a casa do Algueirão e viemos para o lado certo do
rio, como diz a propaganda autárquica do PCP –
Almada.
Como sempre, as decisões foram rápidas e tomadas
por ambos; quando um diz “mata”, o outro acrescenta
logo “esfola”. Publicámos, a 20 de Novembro,
um anúncio no eterno Diário de Notícias,
que dizia:
“Casal médicos precisa habitação,
mínimo 4 assoalhadas, Lisboa, arredores. Até
30 contos. Resposta tel. 921 52 39 depois 19h.”
Nesse mesmo dia, recebemos um telefonema do sr. António
Pereira, que tinha uma casa para alugar, com quatro assoalhadas,
num primeiro andar da Rua Bernardo Francisco da Costa, em
Almada, por vinte e oito contos mensais. Almada?…
Mal conhecíamos Almada, caraças! Nunca tínhamos
pensado na possibilidade de ir viver para Almada. Mas enfim,
fomos ver a casa no dia seguinte e gostámos; tinha
uma sala boa, dois quartos razoáveis, um outro mais
pequenito e um terraço que nos agradou – para
quem vinha de uma vivenda, o terraço prometia alguma
liberdade para os miúdos, habituados a espaços
largos para brincarem. E como não tivemos mais nenhuma
proposta e, sinceramente, não nos agradava a perspectiva
de ir para tribunal por causa da casa do Algueirão,
chegámos a acordo com o sr. Pereira e, no dia 20
de Dezembro, já estávamos a viver em Almada!
A mudança já foi feita a bordo do nosso novo
Fiat 127 – o primeiro carro em primeira mão
que conseguimos comprar, embora com a ajuda dos Sousas,
que o numerário ainda era escasso, e ainda com a
ajuda do Carlos Cruz, a quem tive a coragem de pedir que
me pagasse alguns programas adiantados. O HE-01-47 custou-me
435 contos, pagos em dinheiro, no dia 19 de Agosto, num
stand da Avenida da Liberdade. E pagos em dinheiro porque
nós não tínhamos esse dinheiro no Banco
e eu não tive coragem de pagar com três cheques,
um meu, outro do Sousa e outro do Carlos; então,
saquei os três cheques e fui pagar em dinheiro. Foi
assim que subi a Avenida da Liberdade, a pé, calmamente,
com quase quatrocentos contos em dinheiro no bolso. Outros
tempos!…
O 124 era mais potente, mas o 127 era novo e cheirava a
novo e podem acreditar que nenhum dos outros meus carros
novos, que mais tarde fui comprando, cheiraram tão
a novo como o 127. Era um cheiro especial, a carro sem defeitos,
sem ruídos esquisitos, com bancos em que nenhum outro
cu tinha tido assento antes e um tablier em plástico
onde nunca ninguém tinha passado a mão. Era
o nosso primeiro carro em primeira mão, caramba!
O 124 ficou lá naquele stand da Avenida da Liberdade
(deram-me 50 contos por ele, mais do que tinham dado, em
Armamar, pelo R4) e eu fui ter com a Mila, à Estefânia,
muito contente, já ao volante do carro novo, muito
atrapalhado com o trânsito lisboeta e admirado com
a suavidade com que as mudanças entravam.
No entanto, no princípio desse ano, ainda pensávamos,
de algum modo, que fosse possível continuar a viver
no Algueirão durante mais algum tempo, razão
pela qual decidimos dar uma mão ao meu irmão
e à sua mulher Guida, que foram viver para a cave.
Finalmente, e depois de toda aquela história do Pereira
Velez, conseguimos dar alguma utilidade à cave da
nossa casa. Como já contei, o Paulo e a Guida casaram-se
mais ou menos apressadamente e foram viver para um quarto
alugado, o que não tinha sido uma boa opção,
mas talvez a única possível. Na nossa cave,
embora suportando a humidade própria da região
da serra de Sintra, o Paulo e a Guida sempre tinham uma
maior privacidade e aqueles meses que connosco viveram deram
para pouparem algum dinheiro e poderem, depois, quando nós
fomos para Almada, avançarem para uma casa alugada
com maior segurança económica.
O ano de 1982 foi ainda marcado por outro acontecimento
importante: o nascimento da nossa primeira sobrinha, a Inês.
Depois de muitas tentativas e de algumas decepções,
a Luisa e o Jorge viram os seus esforços recompensados
pelo nascimento, a 8 de Maio, de uma bebé muito gira,
com olhos amendoados, que passou a ser a coqueluche da família
e veio despertar, na Mila, o desejo de um terceiro filho,
ao qual eu sempre me opus, terminantemente, Via os meus
filhos crescerem saudavelmente, cada vez mais independentes,
o Pedro na 4ª classe, a Marta na 1ª e todas as
andanças a que obrigáramos os nossos filhos
faziam-me temer que, com o nascimento de um terceiro filho,
tudo recomeçasse. Já não sentia energia
para um terceiro filho. A Mila não me acompanhou
neste temor mas, anos depois, deu-me razão.
A Inês, com cerca de 3 meses. Os bebés da nossa
família são mesmo muito bonitos.
Como já devem ter percebido, a nossa mudança
para Almada, em Dezembro, obrigou o Pedro a, mais uma vez,
mudar de escola (pela sexta vez em quatro anos de escolaridade)
e a Marta, que tinha começado a sua primeira classe
apenas com cinco anos, no Colégio de Mem Martins,
num ambiente protegido, que ela conhecia bem, mudou para
a escola de Almada e encontrou um ambiente hostil. A professora,
uma senhora com cerca de 60 anos e óculos como fundos
de garrafa, não parece ter gostado muito da Marta.
Logo nos avisou que ela estava muito atrasada – como
se uma miúda de cinco anos que tinha começado
a escolaridade três meses antes se podia considerar
atrasada! Mas nós fomos na conversa, não queríamos
que a nossa filha se sentisse diminuída perante as
restantes colegas, só porque os pais andavam sempre
a mudar de casa. Quisemos protegê-la e acabámos
por colocá-la nas mãos da megera, que começou
a dar-lhe explicações particulares, em casa
dela, depois das aulas. A Marta ia, sempre muito triste
e acabrunhada, mas ia. Certo dia, acabou por ter coragem
para dizer à Mila que não queira ir mais,
que não gostava da casa da professora, que não
se sentia lá bem. Concordámos, claro. Aí,
a senhora professora ficou com a chamada dor de cotovelo
e nunca mais deixou a Marta em paz. Só anos mais
tarde, quando a Marta era já adolescente, é
que nós soubemos toda a verdade, que a miúda
sempre nos escondeu, temendo represálias da professora.
Para a velha, a Marta sempre foi a burra, a atrasada e várias
vezes foi avisada que, em casa, nunca se conta o que se
passa na escola. A Marta comeu e calou e esforçou-se
por não ser a burra, nem a atrasada. Terminou o seu
curso aos 22 anos, sem nunca ter chumbado um único
ano! A velha professora ainda anda por aí, que eu
vejo-a de vez em quando, curvada sob o peso dos óculos
de fundo de garrafa, ignorando, talvez, o mal que fez a
muitos miúdos. Mas, enfim, a senhora também
deve ter ensinado muitos putos a ler e a escrever e, como
todos nós sabemos, as coisas nunca têm só
o seu lado negativo. Quem sabe se as ameaças da velha
não terão ajudado a Marta a desabrochar e
a ser a mulher combativa que é hoje? No entanto,
será necessário sofrer tanto?…
Mas estava a falar da Inês. Quando ela nasceu, o Pedro
tinha quase 9 anos e a Marta ia a caminho dos 6. Os restantes
membros da família não pareciam com muita
vontade de produzir crianças que perpetuassem o nosso
código genético. O Paulo, então com
22 anos e a Bela, com 21, ainda eram novos para pensarem
nessas coisas, embora eu tivesse sido pai aos 20 anos…
E, em termos de reprodução, a família
terminava aí. A única esperança era
a Luisa e ela não nos desiludiu. Sempre senti uma
enorme ternura pela Luisa, muito idêntica à
que sinto pela minha irmã; aliás, nunca penso
na Luisa como cunhada, mas como irmã mais nova e
fiquei muito feliz por vê-la feliz com o nascimento
da Inês. O Paulo não teve filhos, a Bela também
não e, portanto, até ao nascimento da Rita,
a Inês ocupou o lugar da mais nova da família.
Alguns dados curiosos desse ano do nascimento da Inês:
no dia em que o Pedro completou 9 anos, comprámos
a nossa primeira televisão a cores: um Sanyo, pequenino,
por 34 contos; serviu para, durante o mês de Julho,
assistirmos ao Campeonato Mundial de Futebol, na casa que
alugámos na Costa da Caparica, juntamente com a Luisa
e o Jorge. Ganhou a Itália e lembro-me muito bem
dos grandes golos marcados pelo Paolo Rossi. Os bonecos
da moda eram os Schtroumpfes e os carecas; a pouco e pouco
fomos comprando esses bonequinhos azuis até enchermos
um saco que, diariamente, durante as férias desse
ano, transportávamos para a praia, juntamente com
outro saco com os baldes, as pás, os ancinhos, as
formas, os carrinhos, para além de uma casinha de
pano, que se montava quando chegávamos à praia
e se desmontava antes de virmos embora. Para irmos à
praia com as crianças era quase necessário
um camião para carregar toda a sorte de bugigangas
que o Pedro e a Marta exigiam que se levasse, a fim da sua
estadia no areal se tornar mais agradável e divertida.
Já não sei muito bem onde param as dezenas
de Schtroumpfes que fomos comprando, mas mantenho connosco
meia dúzia deles – são os Schtroumpfes
de Natal, carregando sacos de prendas e outros embrulhos
e que, desde essa altura, fazem parte do nosso presépio
blasfemo. Quanto aos carecas, foram dos primeiros bonecos
com cara e corpo de recém nascidos, que se foram
aperfeiçoando ao longo dos anos e que, hoje em dia,
imitam de tal modo a realidade, que não percebo por
que raio há cientistas preocupados com a clonagem.
A Marta adorava os carecas mas, sobretudo, as Barbies. Teve-as
de vários feitios e com diversas indumentárias,
bem como os acessórios que então havia, a
cozinha, o salão de cabeleireiro, o quarto, o ginásio…
Caixotes cheios de Barbies e respectivos apêndices,
encheram as prateleiras da nossa casa desde que a Marta
se começou a interessar por outros bonecos mas sempre
se recusou a desfazer-se das suas recordações
de infância. Foram ontem, 25 de Agosto de 2001, dia
em que a avó Rita completou 93 anos, transladados
para o apartamento da minha filha, que se casa já
no próximo mês…
A propósito dos Schtroumpfes – cujos álbuns
de banda desenhada também comprámos –
recordo aqui outros dois heróis da banda desenha
franco-belga, Norbert e Kari, da autoria de Godard. Dois
desses álbuns, “O senhor dos abismos”
e “A ilha dos monstros”, editados em 1975, tinham
tradução do Mário-Henrique. E para
quem tivesse dúvidas a esse respeito, basta ler a
legenda do segundo quadradinho da página 6; Kari
está sentado num rochedo e fala para um golfinho:
“Atenção! Repete comigo no mesmo compasso:
Andava no gamanço o esgraçadinho, roubando
pró filhinho trabeculoso…” Certamente
que o tal Godard não deve ter escrito nada de semelhante…
E quanto a escrita?
De Fevereiro a Julho, participei em mais um projecto do
Carlos Cruz e Zé Duarte, na Rádio Comercial,
aos sábados à tarde, chamado “Contra-Ataque”.
Da equipa, faziam também parte o BBC e o António
Sérgio, encarregados da música e o Zé
Tó, que voltou a trabalhar comigo, desta vez para
elaborarmos pequenos blocos inseridos no programa, e que
eram o Pão Comanteiga no Contra-Ataque.
Mais uma vez, recordo algumas frases que escrevi então:
“- Na União Soviética não
há sol que derreta Brejnev.
- A frase mais célebre do ayatollah Khomeiny é:
“Para onde eu for, eles Irão!”
- Quando Guilherme Tell atirou a seta, acertou na maçã
ou falhou o filho?
- Na vida há coisas essenciais e outras que também
fazem muita falta.
- O sol, quando nasce, é para todos, mas os chineses
levam uma boa parte..
- Se o homem é a medida de todas as coisas, qual
é a distância do Porto a Lisboa, em homens?
- A introdução de um livro pode ser o mais
difícil. Experimente, por exemplo, introduzir “Os
Lusíadas” no ouvido direito.
- Jayme Watt was the famous british scientist who invented
what?
- Os entendidos sabem que Ampére nada tem a ver com
“um pére”, embora les fils d’Ampére
ont appelé pére a Ampére. Ça
prouve que Ampére a eté pére, mais
ni tous les péres ont étés Ampére.
- Não se pode dizer, a priori, que as ervas d’aninhas
sejam piores que as ervas das ritinhas; só vendo,
só vendo…
- Todos sabem que os cães têm bom faro. Se
tivessem bom santarém, eram escalabitanos.
- As fardas militares lavam-se nos tanques de guerra.”
A equipa do Pão Comanteiga, em 1982: Bernardo
Brito e Cunha, a assistente, Isabel Pinhão, José
António Pinheiro, José Duarte e eu; à
frente, lendo e interpretando os nossos textos, Carlos Cruz.
Estas apenas algumas das dezenas e dezenas que escrevi.
Esta fase do Pão Comanteiga, integrado no Contra-Ataque,
também se caracterizou pelos inúmeros diálogos
sobre a actualidade política, lidos pelos Carlos
e pelo José Duarte e que terminavam com diversos
bordões, entre eles, “só tenho coisas
que me ralem”, numa homenagem ao Mário-Henrique,
e “só falo na presença do meu advogado”.
Fizemos ainda uma brincadeira que nos deu muito gozo: o
Carlos apresentava o Pão Comanteiga como se fosse
um daqueles programas de rádio dos anos 40 e 50,
com separadores de “pling plong”, e que tinha
o patrocínio da inventada “Manteiga do Prado”,
cujo slogan mudava de parágrafo para parágrafo.
Assim, a “manteiga do prado” era a preferida
do reformado, a do general e do soldado, a que se barra
em qualquer lado e assim por diante. Desse pequeno segmento,
constavam coisas tão absurdas como a leitura do abecedário,
da tabuada dos nove, do trajecto de algumas carreiras de
autocarro do Porto, das distâncias quilométricas
entre Lisboa e localidades começadas por uma determinada
letra, etc.
Este gozo, já me valia cinco contos por programa.
O valor monetário do humor estava a crescer…
Em Outubro, regressava, em força, o Pão Comanteiga.
Da equipa, saíra o Joaquim Furtado e entrara o José
António Pinheiro, os restantes mantinham-se; e lá
estava, novamente, o Zé Tó entre fumadores.
De mais esses 32 programas, falarei no próximo capítulo.
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