31. Uma vez por Semana (1986)
A única coisa interessante que teve o programa televisivo
“Arroz Doce”, do Júlio Isidro, foi voltar
a trabalhar com o Rui Lemus. Já não me recordo
como é que ele apareceu na equipa de autores, mas
o que é certo é que foi a presença
dele que me ajudou a aguentar a pressão da desilusão.
O Isidro sempre tinha feito programas festivos – Passeio
dos Alegres, Festa é Festa, A Festa Continua; o Arroz
Doce (que era para se chamar “Amigo Público”),
podia ser uma experiência interessante. O estúdio
estava transformado numa sala de estar, supostamente da
casa do Isidro; as visitas dessa casa eram, ao fim e ao
cabo, os convidados do programa, incluindo alguns personagens
com graça, nomeadamente a porteira do prédio,
interpretada pela Eunice Muñoz. Foi um desastre.
Sensaborão, sem chama. O programa ia para o ar todas
as semanas como quem pica o ponto. Salvavam-se os jantares
com o Rui Lemus, nos dias em que o programa era gravado
e em que ficávamos nos estúdios do Lumiar
até às tantas, como se isso influenciasse
alguma decisão do Isidro, sempre muito preocupado
em não chocar, em agradar a todos.
Além do reencontro com o Lemus, também já
tinha “reencontrado” o Álvaro Belo Marques,
embora apenas por carta. Assim, de repente, recebi, em 1984,
uma carta dele, vinda do Maputo, onde ele então residia.
Falava-me da família, dava-me notícia do ambiente
político escaldante de Moçambique e contava-me
coisas do dia a dia de um país em convulsão.
Da resposta que lhe enviei, transcrevo:
“Com que então tens um computador e um
vídeo e não tens papel higiénico!…
No mínimo, é curioso… É que um
gajo não pode limpar o cu a uma videocassete ou ao
ZX Spectrum, não é verdade?… Embora
também seja certo ser impossível jogar xadrez
com um rolo de papel higiénico…
Nesse sentido, e para tentar minorar as tuas faltas, envio-te,
junto com esta missiva, algumas folhas de papel higiénico,
que deves guardar cautelosamente em qualquer lugar seguro.
Prometo que, em cada carta, enviarei mais algumas folhas.
Depois, com a ajuda de um rolo de fita gomada, juntarás
todas as folhas e obterás um gracioso rolo, que deverás
utilizar judiciosamente.”
A troca de correspondência com o Belo Marques manteve-se
durante dois anos e, depois, acabou como começou,
de repente. Desde 1986 que nunca mais ouvi falar de tal
personagem.
Em Janeiro de 1985, escrevia-lhe isto:
“Por aqui, as novidades são muitas e nenhumas.
Tudo é relativo. Excepto o que é rigorosamente
absoluto… e a palavra absoluto é muito relativa.
Só deus sabe, e cada vez anda mais esquecido…
Por exemplo, poderia dizer que o país continua situado
perigosamente na ponta da Europa. O que vale é que
a Europa, sendo o velho continente, cada vez tem menos ponta
e, por enquanto, ainda não caímos ao mar.
A coisa anima-se de vez em quando, com uns atentados à
bomba, uns assaltos a bancos e a discussão do Orçamento
de Estado, na Assembleia da República. Quem quiser
andar sisudo, que ande! Isto só pode dar para rir!
O Dr. Soares não se dá bem com o general Eanes,
a engenheira Pintassilgo vai concorrer à presidência,
o ex-futuro ministro teima em falar de vez em quando, o
Manuel Alegre continua a publicar livros, o Raul Rego escreve
que nem um desalmado para tudo o que seja jornal, a Acção
Social Democrática Independente vai dissolver-se,
o que é estranho, porque ninguém tinha reparado
que existia, os preços subiram entre 20 e 30%, o
Otelo continua preso, o Dr. Sousa Tavares ainda é
ministro e, sempre que pode, manda umas bocas que põe
os restantes ministros todos a apanhar bolota, mas é
só para dar a impressão de que há pluralismo,
a selecção nacional perdeu com a Roménia
e o Porto vai ser campeão, o número de casamentos
diminuiu, as matrículas dos automóveis vão
passar a ser fabricadas na Casa da Moeda, o Tancredo Neves
anda por aí a receber galhardetes e a televisão
anda a transmitir uma nova telenovela portuguesa, a Mila
está linda, como todas as mulheres de 30 anos e os
nossos putos crescem à brava, carago!”
Era o estilo “Maldita Enxaqueca”, que tinha
iniciado na Correspondência da Beira e tinha aproveitado,
depois, para o “Bisnau” – a enumeração
de uma série de factos, aparentemente não
relacionados mas que, quando postos em sequência,
formavam o resumo de um argumento que era, afinal, a realidade.
Mas o ano de 1986 fica marcado, definitivamente, pelo programa
“Uma Vez por Semana” – o seu programa
sexual.
Era com este slogan que começava o melhor programa
em que colaborei. Transmitido da meia noite às duas
da madrugada, de sexta para sábado, na Rádio
Comercial, durou de Fevereiro a Maio e rendeu-me dez contos
por emissão – em cinco anos, duplicava o meu
cachet!
Ideia do Zé Duarte e do Carlos Cruz, desenvolvida
por mim, José Fanha, Mário Zambujal e Helder
Duarte. Os textos eram lidos pelos dois do costume e ainda
pela voz inconfundível da Maria Helena D’Eça
Leal e pela estreante Henriqueta Ricardo. O tema era o sexo.
Textos elegantes, com um sentido de humor muito fino. Falámos
de tudo, sem grosseria: as zonas erógenas, os sonhos
húmidos, a descrição dos órgãos
sexuais, os fetiches e, à uma da manhã, todas
as semanas, uma posição para o acto sexual.
A equipa do “Uma Vez por Semana”. Da esquerda
para a direita: José Duarte, a assistente de realização
Manuela Gomes (casada com o Adelino Gomes), eu, Maria Helena
D’Eça Leal, Henriqueta Ricardo e José
Fanha. À frente, o Carlos Cruz. Foto publicada no
semanário Se7e.
Apesar da elegância dos textos, muita gente se chocou
com o conteúdo do programa. Em 1986, falar de sexo
abertamente, na rádio, em Portugal, mesmo naquele
horário nocturno, não caía bem em certos
círculos. O João David Nunes, director da
Rádio Comercial, recebeu algumas cartas de protesto,
uma delas assinada pela mulher do Mário Soares, a
Maria Barroso. Talvez devido a essas pressões, o
programa durou apenas quatro meses, mas deu muito gozo.
Meia dúzia de anos depois, a TV Cabo começava
a transmitir filmes pornográficos no famoso canal
18, vejam bem!...
Inventámos uma instituição denominada
Instituto Português de Higiene Sexual, que dava conselhos
e divulgava avisos, como os que seguem:
“- Um verdadeiro manual de sexologia dedica-se,
apenas, à masturbação.
- O coito só deve ser interrompido por motivos de
força menor.
- Nunca use uma fita métrica. O sexo mede-se sempre
aos palmos.
- O sexo não é para se fazer – é
para se ir fazendo…
- Cuidado minha senhora – não excite demasiado
o seu companheiro. Olhe que ele pode ficar fora de si…
- O sexo subaquático é do escafandro!
- A abstinência favorece sempre outros candidatos.
- A posição de missionário pode ser
praticada por ateus convictos.
- 90% das saias com macho atrás têm uma fêmea
à frente. As restantes 10% confirmam a regra.”
Para além das frases – estilo que vinha do
Pão Comanteiga -, escrevi excelentes diálogos
para voz masculina e feminina e textos para serem lidos
pela Maria Helena, que aderiu muito bem à nossa ideia
e que os interpretava com aquela voz bem colocada e sensual.
Acho que vale a pena transcrever um desses textos, quase
ao acaso, porque qualquer um dá uma ideia do tipo
de coisas que se disseram durante esses quatro meses. Trata-se
da descrição da vulva:
“Que confusões que por aí vão
por causa da vulva!… Cada pessoa tem a sua opinião,
a sua concepção de vulva. E no entanto, na
maioria dos casos, estão enganados. Um breve inquérito,
realizado pelo telefone, revelou as respostas mais surpreendentes.
Para além dos habituais impropérios e de termos
sido convidados a visitar locais pouco recomendados, alguns
inquiridos disseram que vulva era vagina, púbis,
um órgão dos sentidos, nome de um conjunto
de rock português, a capital do Laos, título
de um romance de Harold Robbins e até uma marca de
caramelos.
Por isso, e para que se não estabeleça mais
confusões com a vulva, vamos descrevê-la anatomicamente,
com o rigor habitual.
Para começar é bom esclarecer que a vulva
é o nome dado ao conjunto dos órgãos
genitais externos da mulher. É, de facto, um conjunto,
mas não de rock português, como afirmava um
dos inquiridos.
Todas as descrições anatómicas se tornam
fastidiosas se não forem acompanhadas por uma observação
directa. Não há nada como juntar a teoria
à prática. E isto é dos livros.
Portanto, observe-a enquanto escuta a descrição.
A vulva é ocupada, na sua parte média, por
uma depressão (o vestíbulo), no fundo do qual
se abrem a uretra e a vagina – o que quer dizer que
esta não pertence à vagina, embora vá
lá dar. Ponto assente.
O vestíbulo é limitado, lateralmente, pelos
pequenos e grandes lábios. Enquanto os grandes se
juntam para formar o monte de Vénus, os pequenos
juntam-se ao clitóris, seguindo a regra de que muitos
poucos fazem muito. O clitóris (cuja pronúncia
continua em dúvida) é formado por dois órgãos
erécteis: os corpos cavernosos. Mas existem outros
dois órgãos erécteis: os bulbos vestibulares,
colocados um de cada lado do orifício vaginal.
Finalmente, a vulva possui ainda duas glândulas de
Bartholin – também uma de cada lado do orifício
vaginal, com a importante missão de lubrificar todo
o conjunto.
Esperamos que a descrição não tenha
sido demasiado rápida e que tenha conseguido acompanhá-la.
Mas, para o caso de se ter perdido a meio da vulva, vamos
resumir rapidamente: a vulva é o conjunto dos órgãos
genitais externos da mulher, a saber (e vá conferindo):
vestíbulo, grandes lábios, pequenos lábios,
monte de Vénus, clitóris, corpos cavernosos,
bulbos vestibulares e glândulas de Bartholin. Estão
todos?
Pronto – isso é a vulva… e o resto é
paisagem…
Desfrute-a…”
Estão a ver o género?…
Que gozo que me deu escrever dezenas de textos como este,
sempre baseados na consulta exaustiva do velho Rouviére
– nunca o calhamaço de Anatomia foi tão
manuseado como durante aqueles quatro meses!…
Tinha, portanto, voltado ao convívio da equipa do
Carlos Cruz e sentia-me cada vez melhor, até porque,
desde Janeiro, estava a tomar a tal propafenona, que me
eliminava, quase por completo, as tenebrosas extrassístoles.
E, mais uma vez, tudo se passou por acaso. Aproveitando
o facto de se realizarem umas Jornadas de Cardiologia no
Hotel do Mar, em Sesimbra, na mesma altura em que completávamos
13 anos de casados, fomos lá passar duas noites.
Numa das sessões das Jornadas, ouvi um colega cardiologista
falar da propafenona e da sua eficácia no controlo
das arritmias ventriculares. Já tinha experimentado
tantas drogas, praticamente sem supervisão, por que
não experimentar mais uma?
Comecei, portanto, a tomar a propafenona, também
conhecida como Rytmonorm e foi um milagre!
De repente, com três comprimidos de 150 miligramas
por dia, as extrassístoles desapareceram. Foi uma
das melhores coisas que me aconteceram. Pude, finalmente,
voltar a saborear as pequenas grandes coisas da vida, como
se fossem novidade: comer sem extrassístoles, fazer
amor sem extrassístoles, ir às reuniões
sem extrassístoles, brincar com os miúdos
sem extrassístoles! Senti-me como um homem novo e
até arranjei coragem para ir fazer um ecocardiograma
que, obviamente, era normal. Desapareceram, assim, do meu
espírito, todos aqueles receios de alterações
valvulares cardíacas ou outras. Tinha uma perturbação
do ritmo cardíaco mas, estruturalmente, o meu coração
era normal. Podia continuar a fumar! Não que eu estivesse
quase decidido a deixar de o fazer mas, ao fumar cada cigarro,
sentia a culpabilidade judaico-cristã a massacrar-me:
tens o coração doente e ainda o tornas mais
doente com os cigarros, devias deixar de fumar, estás
a fazer mal a ti próprio e não és capaz
de parar só porque isso te dá prazer, para
ti, afinal, o prazer é mais importante que a saúde!…
Ainda por cima, o Rytmonorm não me causava nenhum
efeito secundário, a não ser um certo amargor
na boca, relativamente fácil de suportar. Cheguei
a tomar 900 miligramas de propafenona por dia (a dose máxima
recomendada), mas consegui dominar as cabronas das extrassístoles!
Foi ainda com algumas extrassístoles que fui votar
no Mário Soares para a Presidência da República,
contra o Freitas do Amaral. Tem sido assim em quase todas
as eleições – votar contra alguém
ou alguma coisa. O chamado voto útil. Só nas
primeiras eleições após o 25 de Abril,
para a Assembleia Constituinte, em 1975, é que votei
conscientemente a favor – votei UDP, que até
conseguiu eleger um deputado, o agora PS, Acácio
Barreiros.
Depois, face às propostas políticas da extrema
esquerda, que continuaram delirantes, passei a votar contra.
Votei no Eanes (que enjoo!) contra o Soares Carneiro; votei
no PS, contra o Cavaco; votei no Soares contra o Freitas;
votei no Jorge Sampaio contra o Cavaco, outra vez.
O dinheiro que ganhei no “Uma Vez por Semana”
chegou para comprar, nesse ano, mais uma aparelhagem, por
altura do meu 33º aniversário. Dessa vez, foi
um conjunto hi-fi da Pioneer, com dois gravadores de cassetes.
E toca a regravar as cassetes todas! A este propósito,
escrevi o seguinte texto no 23º caderninho:
“Para quê gravar cassetes? Ou ainda pior:
para quê regravá-las? Para meu deleite ou apenas
para preencher o tempo? E escrever? E ver doentes? E comer?
E amar? Pode parecer, à primeira vista, que estou
á beira de uma grande fossa, mas é apenas
uma discussão filosófica acerca das razões
que nos levam a ter uma vida tão preenchida, tão
plena e, depois, surge uma pequena aberta e, em vez de aproveitarmos
para nosso puro deleite (ficar quieto, por exemplo, a ouvir
as cassetes que regravei), sentimos um grande vazio e uma
necessidade imensa de fazer logo qualquer coisa –
como escrever patetices neste caderno, por exemplo.”
Hoje em dia, já não sou assim. No entanto,
durante muitos anos, era frenético no que respeita
a preencher o dia todo com algo. A Mila, coitada, foi uma
vítima, na medida que eu a criticava se, nas férias,
lhe apetecia dormir uma sesta após o almoço,
por exemplo. Para mim, dormir era uma perda de tempo. Havia
que estar a fazer sempre alguma coisa. Agora, já
não. Já sou capaz de ficar sossegadinho, sentadinho,
sem fazer nada de especial – e não me sentir
culpabilizado por isso…
Enfim, graças às contas sempre muito bem feitinhas
pela Mila, que sabe poupar aqui para se poder gastar acolá,
até conseguimos arranjar dinheiro para pagar a uma
empregada diariamente, para nos fazer a limpeza. Finalmente,
já não era preciso esperar pelas folgas ou
pelos fins de semana livres, para a Mila andar de pano do
pó em punho e eu com o aspirador. A Irene, uma são-tomense
cheia de força e vigor, encarregava-se desse trabalho.
Estávamos a ficar uns senhores doutores, caramba!
Até deixei de comprar Bosford e comecei a dar-me
ao luxo de só beber Gordon’s. E quanto mais
gin bebia, menos leite consumia. Percebi que as grandes
crises de cólicas abdominais que tinha, de vez em
quando, estavam relacionadas com o consumo de leite, sobretudo
após uma noite de serviço no SAP, em que me
fartava de beber leite, para aplacar a fome. Rebolava-me
na cama, com dores excruciantes. Já tinha tido dores
semelhantes em Mourão, que atribuíra ao queijo
alentejano, com muitos cardos. Agora, era o leite. Acabou-se
o leite, pronto!
E acabaram-se os pássaros, também. O chiqueiral
era demais. A Irene levou-os; limpar por limpar, limpava
a porcaria na casa dela.
No terraço, a actividade era frenética. Quando
o Pedro fez 13 anos, oferecemos-lhe um cesto de basquet
e, durante as férias, as tardes eram passadas com
despiques intensos entre o Pedro e os seus amigos de então:
o Pedro Nuno e o Miguel, vizinho do terceiro andar. Ao mesmo
tempo, a Marta brincava aos jantarinhos com a Ana, irmã
do Miguel. Construímos uma bancada de aparite, pintada
de vermelho, com pregos onde a Marta pendurava as panelinhas
e os tachinhos. E depois, era a bagunça total, com
a bola de basquet a cair em cima das panelas e a espalhar
a água pela chão do terraço e o Gin,
correndo que nem um doido, de um lado para o outro, derrapando
na água. Se aparecia um gato vadio, passeando-se
pelo muro que rodeava o terraço, o Gin desvairava.
Para ele, a Pantufa não era um gato (aliás,
para nós também não… talvez a
encarnação do Beethoven ou de outro génio
qualquer que quisesse, na sua nova vida, encarnado em felino,
ter uma existência calma e pacífica). Por vezes,
bastava que um de nós apontasse para o muro e gritasse:
“Gin! Olha o gato!” e lá ia o nosso cão
correr de um lado para o outro, ladrando furiosamente. Em
breve, substituímos o grito de “olha o gato!”
por “olha o Cavaco!” – a reacção
do Gin era igualmente feroz. O que contava era a entoação
– ou será que o nosso cão era um anti-cavaquista
militante?…
Nós os quatro, em 1986, na varanda da nossa primeira
casa em Almada. Três notas: as plantas, uma constante
das nossas varandas, a prateleira de pinho, feita por nós,
com frasquinhos e tinteiros e os meus óculos, que
ocupam mais de metade da minha cara.
Outro grande motivo de diversão nesse ano foi uma
câmara de vídeo, sistema beta, que o Zé
Duarte me emprestou durante algum tempo. Era um bacamarte
que pesava uma dúzia de quilos e eu pedi-lha emprestada
para gravar mais uma festa de ballet da Academia Almadense.
Nessa altura, já a Marta tinha aulas com a professora
Maria Franco, que se especializara em danças populares
castelhanas. Por esse motivo, a Marta foi dançar,
nessa festa, uma Jota, vestida com trajes típicos
da Andaluzia. E que bem que ela dançou, destacando-se
das demais pela graciosidade e a perfeição
dos gestos!
Mas, para além da gravação da festa
da Marta, a câmara serviu, também, para grandes
brincadeiras. Já que as rábulas que eu escrevia
para os programas do Isidro tinham pouca graça –
ou, se tinham alguma, eram logo destruídas pelas
interpretações especialíssimas da Maria
Vieira e da Ana Bola, que as modificavam a seu belo prazer,
colocando-as ao nível da piada do cocó e do
chi-chi – como não conseguia estar satisfeito
com a minha produção televisiva, inventava
rábulas malucas, que interpretava com a ajuda, sobretudo,
do Pedro. Passámos tardes bem divertidas. Lembro-me
de uma dessas rábulas, em que eu demonstrava, com
a ajuda da bicicleta do Pedro, as vantagens de um novo modelo
de automóvel sem portas e com apenas duas rodas.
Era tudo de improviso, obviamente. E o Pedro, coitado, com
a câmara ao ombro, ria-se a bandeiras despegadas e
tremia a imagem. Mas também ele fazia rábulas
do caraças, todas de improviso. Uma noite, no quarto
dele, pus a câmara a gravar e o miúdo começou
um monólogo perfeitamente louco, em que se apresentava
como o exterminador de lombrigas; com a ajuda de uma peça
trazida de Santiago, e que servia para tirar rolhas das
pipas, explicava como sacava os parasitas das pessoas. Um
fartar de rir!
Talvez graças ao cesto de basquet ou ao facto de
ter completado 13 anos, o Pedro mostrou-se, nessa altura,
um pouco mais interessado nas actividades físicas.
Tanto ele como a Marta foram aprender a nadar numa colectividade
com o incrível nome de Sociedade Filarmónica
União Artística Piedense – e o Pedro
até participou numa iniciativa engraçada dessa
SFUAP: as 24 horas a nadar, fazendo as piscinas que lhe
couberam no sorteio. Sol de pouca dura, no entanto. Depressa
se fartou, continuando a preferir os jogos do Spectrum.
Foi por essa altura que consegui realizar outro dos meus
sonhos mais ou menos megalómanos: comprar a Enciclopédia
Britânica. E digo megalómano porque a Enciclopédia
custou-nos 235 contos, enquanto o nosso ordenado era pouco
mais de 80 contos e acabáramos de abrir uma conta-poupança-habitação
com uns míseros 50 contos. Se não tivesse
comprado o vídeo beta, nem a Britânica, nem
a aparelhagem Pioneer, a tal conta poderia ter começado
com mais de 500 contos. Opções de que não
me arrependo. Sempre gostei muito de enciclopédias.
Neste momento, além da Caxton e da Britânica,
tenho a Lexicoteca e a Larrousse. Deve ser por causa do
meu gosto em catalogar, indexar, arquivar, organizar –
e as enciclopédias, com todas aquelas entradas por
ordem alfabética, fascinam-me.
No nosso segundo ano como Clínicos Gerais no Monte
de Caparica, o trabalho aumentou significativamente e começámos
a entrar num ritmo que nunca mais abrandou, antes pelo contrário.
A Unidade de Saúde do Monte serve uma população
muito carenciada, social e economicamente. São cerca
de 22 mil habitantes distribuídos por uma região
relativamente extensa e congrega, além da população
autóctone, muitos regressados das ex-colónias
e realojados de bairros de barracas. Assim, distribuídos
pelo Porto Brandão, Castelo Picão, Pêra,
Lazarim, Alcaniça, Banática, Granja, Fonte
Santa, Filipa de Água, Raposo, temos pescadores,
velhotes que ainda tratam de pequenas courelas, operários
que vieram do Alentejo para trabalhar na Lisnave, regressados
das ex-colónias, primeiras e segundas (e até
terceiras gerações) de cabo-verdianos, guineenses,
angolanos, indianos de Moçambique, são-tomenses,
indivíduos de etnia cigana. Muitos destes últimos,
estão todos no chamado Bairro do Pica Pau Amarelo,
com os costumeiros problemas de droga, delinquência,
desemprego, gravidez na adolescência. O habitual…
E, de há uns tempos para cá, começaram
a chegar os brasileiros, ucranianos, moldavos, eslovenos,
bósnios...
Os Centros de Saúde não são suficientes
para responder às solicitações dos
utentes e as razões são muitas. Por um lado,
muitos médicos estão pouco disponíveis,
dispersam-se por várias actividades, são pouco
assíduos; por outro, as populações
procuram, na ida ao médico, a resposta para muitos
dos seus problemas, as mais das vezes, de carácter
social; ao mesmo tempo, alguma propaganda partidária
incutiu nas pessoas a ideia de resposta imediata, por parte
dos serviços de saúde, com a criação
dos SAP (Serviço de Atendimento Permanente) e serviços
afins. Talvez que a criação desses serviços
tivesse, como objectivo inicial, afastar das urgências
hospitalares, as situações que não
necessitavam de cuidados diferenciados, as amidgalites,
as unhas encravadas, as dores de dentes, as dores nas costas.
Mas o que aconteceu foi que muitos doentes continuaram a
preferir as urgências hospitalares, pensando que aí,
fazendo uma radiografia ou uma análise, o seu mal
seria melhor diagnosticado e tratado. Por seu lado, os médicos
hospitalares, temendo o julgamento popular, começaram
a praticar uma medicina defensiva, isto é, pedir
exames em quase todas as situações, mesmo
sem grande justificação, não querendo
ser acusados de negligência. Entretanto, nos Centro
de Saúde, as pessoas tinham que ir às 4 da
manhã para obter uma consulta. O resultado de tudo
isto: Centros de Saúde cheios, SAP’s cheios,
urgências hospitalares cheias, hospitais cheios –
e, acrescente-se, clínicas particulares cheias, anjos
da noite e a fins a prosperarem. Será que os portugueses
são assim tão doentes?
Claro que não. O que acontece é que gostam
de ir ao médico e, ainda por cima, é barato.
Tenho doentes que, no sábado, vão à
urgência do Hospital Garcia de Orta, no domingo vão
ao SAP de Almada e, na segunda feira, vão à
minha consulta, trazendo ainda na mão, por aviar,
as receitas que lhe foram passadas. Não há
qualquer coordenação entre os vários
serviços e não há barreiras. As taxas
moderadoras, por exemplo, são para rir – o
fulano que ganha o ordenado mínimo paga os mesmos
300 escudos que o tipo que ganha mil contos por mês!
Por isso, o trabalho é sempre muito.
Em Dezembro de 1986, por exemplo, num SAP de 12 horas, em
plena epidemia de gripe – aquela coisa que a minha
mãe tratava com aspirina e caldinhos quentes –
observei 109 doentes, e os restantes três colegas
de equipa terão observado outro tanto. E depois,
também tenho que dizer que há colegas de profissão
que, desde que iniciaram as suas carreiras, habituaram os
seus doentes a chegarem tarde, sair cedo e nunca ver mais
que um determinado número de doentes em cada consulta.
Os doentes destes médicos acabaram por se conformar
com esse método de trabalho e desabituaram-se de
ir ao seu médico, preferindo as diversas urgências
disponíveis. Outros médicos, onde eu me incluo,
sempre se mostraram disponíveis, não colocando
limites na inscrição de doentes na consulta,
para além dos humanamente razoáveis e o resultado
é que, agora, mesmo que eu queira estabelecer algum
limite, a minha relação com os doentes é
tão próxima, que me é difícil
dizer não.
Portanto, logo no meu segundo ano como clínico geral,
comecei a ter doses industriais de trabalho. A comissão
instaladora do Centro de Saúde da Costa de Caparica,
a que a minha Unidade pertence, achou que eu estava a gastar
credenciais de exames complementares a mais e cortou o respectivo
fornecimento. Não sabiam com quem se estavam a meter
– estavam perante um furioso escritor de cartas. Escrevi
assim:
“Venho dar-vos conhecimento de um fenómeno
estranho que entrava a minha função como médico
de Clínica Geral e que torna a prática da
medicina uma “coisa” ridícula e sujeita
a restrições administrativas surrealistas.
No princípio do mês de Outubro, foram-me fornecidos
35 exemplares do modelo 15182 (pedido de análises)
e – embora me fosse dito que já fora pedido
um aumento de dotação para o mês seguinte
– deveria “governar-me” com este número.
Pois bem (e seguia-se a descrição de todos
os pedidos de análises que eu já tinha feito,
com o nome dos doentes e a que se destinavam).
Em conclusão: a 14 do corrente, possuo cinco “papelinhos”,
modelo 15182, e ainda me faltam fazer, este mês, onze
consultas de Clínica Geral, com uma média
de 18 doentes/dia.
Pergunto: que devo fazer? Dizer aos doentes que façam
o favor de não precisarem de análises, porque
não há papéis ou, da próxima
vez, terei que ter cuidado e ser mais poupadinho, evitando
pedir análises, por exemplo, nas infecções
urinárias ou nas suspeitas de gravidez ou hepatite?”
A ironia continuava, mesmo para os meus superiores hierárquicos,
que eu ainda mal conhecia. Não sei que comentários
mereceu esta carta – sei que, no dia seguinte tinha,
em cima da secretária, um molho dos tais papelinhos…
Enfim, após 17 anos de carreira na Clínica
Geral, tenha as minhas ideias sobre a organização
dos serviços, mas penso que isso daria outro livro.
Mais três acontecimentos importantes marcaram 1986:
a Mila decidiu, finalmente, aos 33 anos, aprender a conduzir,
eu tornei-me sócio do primeiro videoclube de Almada,
o Discoeuropa, alugando um filme do Spielberg que tinha
perdido no cinema, o “Tubarão”, e a Marta
viu-se, finalmente, livre da megera da professora, terminando
a instrução primária e ingressando,
também ela, na Escola António da Costa. Entretanto,
o Pedro matriculava-se no 8º ano, na Escola Emídio
Navarro, onde ingressara no ano anterior, já que
a António da Costa só tinha os dois primeiros
anos do secundário.
Já que falei de filmes, em 1986, apenas três
me ficaram na memória: “Noites Escaldantes”,
do Lawrence Kasdan, “Cotton Club”, do Coppola
e “Era uma Vez na América”, do Sérgio
Leone.
Quanto a livros, ainda andava preso aos policiais –
e até construí uma prateleira à medida
para os livrinhos da Vampiro, que continuavam a aumentar.
No que respeita a outras literaturas, comprei, por exemplo,
“Ano da Morte de Ricardo Reis”, do Saramago.
Não gostei.
Ainda antes de terminar, o ano de 1986 trouxe-me mais um
programa televisivo, desta vez com o Carlos Cruz; mas isso
fica para o próximo capítulo…
Mas não posso concluir este capítulo sem transcrever
o que a Mila me escreveu, algures em 1986, num papelinho
que guardei religiosamente:
“Desde há já algumas semanas que a
“velha vontade” de ser mãe outra vez
me tem assaltado.
Na última semana, tenho mesmo andado a ter continuamente,
ao longo de todo o dia, “repentes” de pensamentos
sobre uma nova criança. É claro que me assusta
sempre o lado realístico do que isso acarretaria,
em termos da nossa independência como casal, que agora
já temos, uma vez que o Pedro e a Marta já
estão crescidos. Porém, desta vez, a parte
emocional está de tal forma FORTE que não
sei o que pensar… Interrogo-me tantas vezes, sobre
qual será a causa desta vontade tão grande
de ter outro filho, pois racionalmente não a entendo,
uma vez que as maternidades anteriores foram tão
plenas e tão bem vividas.
Vejo-me a olhar para o Pedro e para a Marta e a sentir um
gozo tão grande de vê-los crescer e isso então
ainda me faz apetecer mais e mais, ver crescer outro filho.
Hoje, vê tu como estou, pus à ginecologista
o problema de saber se não haveria nenhum inconveniente
físico em relação a outra gravidez.
Não estou definitivamente bem… Pergunto-me
se daqui a vários anos não me arrependerei
de não ter tido outro filho ou de o ter tido…
É que o tempo, sinto-o, é agora, aos 33 anos,
que urge… Sinto que tenho que me decidir definitivamente
agora…
E depois, amo-te muito. Sexualmente e emocionalmente, crescemos
juntos, e muito. Agora quero, ou penso que quero, um novo
fruto desta união tão profunda. Que grande
merda, estás tu agora a pensar, lá tenho que
a convencer outra vez!
Não quero que me convenças, mas estou baralhada,
lá isso estou…
Esta, penso eu, talvez seja a minha declaração
de amor, agora que tantos casais, com o tempo de casados
que nós temos, começam a fartar-se. Desculpa
a instabilidade que te vou causar. Amo-te… amo-te…”
Não é bonito?…
E eu?… Que fiz perante esta declaração
de amor, este pedido tão veemente?
Obviamente, convenci a Mila de que um terceiro filho talvez
não fosse boa ideia. Muito sinceramente, estava satisfeito
com o Pedro e com a Marta e não me estava a ver a
voltar, outra vez, às fraldas e às creches.
Agora, quando penso nisso, tenho pena de não termos
tido um terceiro filho mas, neste momento, ambos estamos
de acordo: foi melhor assim…
E também te amo muito, Mila…
Próximo capítulo: ainda não disponível
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