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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


31. Uma vez por Semana (1986)

A única coisa interessante que teve o programa televisivo “Arroz Doce”, do Júlio Isidro, foi voltar a trabalhar com o Rui Lemus. Já não me recordo como é que ele apareceu na equipa de autores, mas o que é certo é que foi a presença dele que me ajudou a aguentar a pressão da desilusão. O Isidro sempre tinha feito programas festivos – Passeio dos Alegres, Festa é Festa, A Festa Continua; o Arroz Doce (que era para se chamar “Amigo Público”), podia ser uma experiência interessante. O estúdio estava transformado numa sala de estar, supostamente da casa do Isidro; as visitas dessa casa eram, ao fim e ao cabo, os convidados do programa, incluindo alguns personagens com graça, nomeadamente a porteira do prédio, interpretada pela Eunice Muñoz. Foi um desastre. Sensaborão, sem chama. O programa ia para o ar todas as semanas como quem pica o ponto. Salvavam-se os jantares com o Rui Lemus, nos dias em que o programa era gravado e em que ficávamos nos estúdios do Lumiar até às tantas, como se isso influenciasse alguma decisão do Isidro, sempre muito preocupado em não chocar, em agradar a todos.
Além do reencontro com o Lemus, também já tinha “reencontrado” o Álvaro Belo Marques, embora apenas por carta. Assim, de repente, recebi, em 1984, uma carta dele, vinda do Maputo, onde ele então residia. Falava-me da família, dava-me notícia do ambiente político escaldante de Moçambique e contava-me coisas do dia a dia de um país em convulsão. Da resposta que lhe enviei, transcrevo:

“Com que então tens um computador e um vídeo e não tens papel higiénico!… No mínimo, é curioso… É que um gajo não pode limpar o cu a uma videocassete ou ao ZX Spectrum, não é verdade?… Embora também seja certo ser impossível jogar xadrez com um rolo de papel higiénico…
Nesse sentido, e para tentar minorar as tuas faltas, envio-te, junto com esta missiva, algumas folhas de papel higiénico, que deves guardar cautelosamente em qualquer lugar seguro. Prometo que, em cada carta, enviarei mais algumas folhas. Depois, com a ajuda de um rolo de fita gomada, juntarás todas as folhas e obterás um gracioso rolo, que deverás utilizar judiciosamente.”

A troca de correspondência com o Belo Marques manteve-se durante dois anos e, depois, acabou como começou, de repente. Desde 1986 que nunca mais ouvi falar de tal personagem.
Em Janeiro de 1985, escrevia-lhe isto:

“Por aqui, as novidades são muitas e nenhumas. Tudo é relativo. Excepto o que é rigorosamente absoluto… e a palavra absoluto é muito relativa. Só deus sabe, e cada vez anda mais esquecido… Por exemplo, poderia dizer que o país continua situado perigosamente na ponta da Europa. O que vale é que a Europa, sendo o velho continente, cada vez tem menos ponta e, por enquanto, ainda não caímos ao mar. A coisa anima-se de vez em quando, com uns atentados à bomba, uns assaltos a bancos e a discussão do Orçamento de Estado, na Assembleia da República. Quem quiser andar sisudo, que ande! Isto só pode dar para rir! O Dr. Soares não se dá bem com o general Eanes, a engenheira Pintassilgo vai concorrer à presidência, o ex-futuro ministro teima em falar de vez em quando, o Manuel Alegre continua a publicar livros, o Raul Rego escreve que nem um desalmado para tudo o que seja jornal, a Acção Social Democrática Independente vai dissolver-se, o que é estranho, porque ninguém tinha reparado que existia, os preços subiram entre 20 e 30%, o Otelo continua preso, o Dr. Sousa Tavares ainda é ministro e, sempre que pode, manda umas bocas que põe os restantes ministros todos a apanhar bolota, mas é só para dar a impressão de que há pluralismo, a selecção nacional perdeu com a Roménia e o Porto vai ser campeão, o número de casamentos diminuiu, as matrículas dos automóveis vão passar a ser fabricadas na Casa da Moeda, o Tancredo Neves anda por aí a receber galhardetes e a televisão anda a transmitir uma nova telenovela portuguesa, a Mila está linda, como todas as mulheres de 30 anos e os nossos putos crescem à brava, carago!”

Era o estilo “Maldita Enxaqueca”, que tinha iniciado na Correspondência da Beira e tinha aproveitado, depois, para o “Bisnau” – a enumeração de uma série de factos, aparentemente não relacionados mas que, quando postos em sequência, formavam o resumo de um argumento que era, afinal, a realidade.
Mas o ano de 1986 fica marcado, definitivamente, pelo programa “Uma Vez por Semana” – o seu programa sexual.
Era com este slogan que começava o melhor programa em que colaborei. Transmitido da meia noite às duas da madrugada, de sexta para sábado, na Rádio Comercial, durou de Fevereiro a Maio e rendeu-me dez contos por emissão – em cinco anos, duplicava o meu cachet!
Ideia do Zé Duarte e do Carlos Cruz, desenvolvida por mim, José Fanha, Mário Zambujal e Helder Duarte. Os textos eram lidos pelos dois do costume e ainda pela voz inconfundível da Maria Helena D’Eça Leal e pela estreante Henriqueta Ricardo. O tema era o sexo. Textos elegantes, com um sentido de humor muito fino. Falámos de tudo, sem grosseria: as zonas erógenas, os sonhos húmidos, a descrição dos órgãos sexuais, os fetiches e, à uma da manhã, todas as semanas, uma posição para o acto sexual.


A equipa do “Uma Vez por Semana”. Da esquerda para a direita: José Duarte, a assistente de realização Manuela Gomes (casada com o Adelino Gomes), eu, Maria Helena D’Eça Leal, Henriqueta Ricardo e José Fanha. À frente, o Carlos Cruz. Foto publicada no semanário Se7e.



Apesar da elegância dos textos, muita gente se chocou com o conteúdo do programa. Em 1986, falar de sexo abertamente, na rádio, em Portugal, mesmo naquele horário nocturno, não caía bem em certos círculos. O João David Nunes, director da Rádio Comercial, recebeu algumas cartas de protesto, uma delas assinada pela mulher do Mário Soares, a Maria Barroso. Talvez devido a essas pressões, o programa durou apenas quatro meses, mas deu muito gozo. Meia dúzia de anos depois, a TV Cabo começava a transmitir filmes pornográficos no famoso canal 18, vejam bem!...
Inventámos uma instituição denominada Instituto Português de Higiene Sexual, que dava conselhos e divulgava avisos, como os que seguem:

“- Um verdadeiro manual de sexologia dedica-se, apenas, à masturbação.
- O coito só deve ser interrompido por motivos de força menor.
- Nunca use uma fita métrica. O sexo mede-se sempre aos palmos.
- O sexo não é para se fazer – é para se ir fazendo…
- Cuidado minha senhora – não excite demasiado o seu companheiro. Olhe que ele pode ficar fora de si…
- O sexo subaquático é do escafandro!
- A abstinência favorece sempre outros candidatos.
- A posição de missionário pode ser praticada por ateus convictos.
- 90% das saias com macho atrás têm uma fêmea à frente. As restantes 10% confirmam a regra.”

Para além das frases – estilo que vinha do Pão Comanteiga -, escrevi excelentes diálogos para voz masculina e feminina e textos para serem lidos pela Maria Helena, que aderiu muito bem à nossa ideia e que os interpretava com aquela voz bem colocada e sensual. Acho que vale a pena transcrever um desses textos, quase ao acaso, porque qualquer um dá uma ideia do tipo de coisas que se disseram durante esses quatro meses. Trata-se da descrição da vulva:

“Que confusões que por aí vão por causa da vulva!… Cada pessoa tem a sua opinião, a sua concepção de vulva. E no entanto, na maioria dos casos, estão enganados. Um breve inquérito, realizado pelo telefone, revelou as respostas mais surpreendentes. Para além dos habituais impropérios e de termos sido convidados a visitar locais pouco recomendados, alguns inquiridos disseram que vulva era vagina, púbis, um órgão dos sentidos, nome de um conjunto de rock português, a capital do Laos, título de um romance de Harold Robbins e até uma marca de caramelos.
Por isso, e para que se não estabeleça mais confusões com a vulva, vamos descrevê-la anatomicamente, com o rigor habitual.
Para começar é bom esclarecer que a vulva é o nome dado ao conjunto dos órgãos genitais externos da mulher. É, de facto, um conjunto, mas não de rock português, como afirmava um dos inquiridos.
Todas as descrições anatómicas se tornam fastidiosas se não forem acompanhadas por uma observação directa. Não há nada como juntar a teoria à prática. E isto é dos livros.
Portanto, observe-a enquanto escuta a descrição.
A vulva é ocupada, na sua parte média, por uma depressão (o vestíbulo), no fundo do qual se abrem a uretra e a vagina – o que quer dizer que esta não pertence à vagina, embora vá lá dar. Ponto assente.
O vestíbulo é limitado, lateralmente, pelos pequenos e grandes lábios. Enquanto os grandes se juntam para formar o monte de Vénus, os pequenos juntam-se ao clitóris, seguindo a regra de que muitos poucos fazem muito. O clitóris (cuja pronúncia continua em dúvida) é formado por dois órgãos erécteis: os corpos cavernosos. Mas existem outros dois órgãos erécteis: os bulbos vestibulares, colocados um de cada lado do orifício vaginal.
Finalmente, a vulva possui ainda duas glândulas de Bartholin – também uma de cada lado do orifício vaginal, com a importante missão de lubrificar todo o conjunto.
Esperamos que a descrição não tenha sido demasiado rápida e que tenha conseguido acompanhá-la.
Mas, para o caso de se ter perdido a meio da vulva, vamos resumir rapidamente: a vulva é o conjunto dos órgãos genitais externos da mulher, a saber (e vá conferindo): vestíbulo, grandes lábios, pequenos lábios, monte de Vénus, clitóris, corpos cavernosos, bulbos vestibulares e glândulas de Bartholin. Estão todos?
Pronto – isso é a vulva… e o resto é paisagem…
Desfrute-a…”

Estão a ver o género?…
Que gozo que me deu escrever dezenas de textos como este, sempre baseados na consulta exaustiva do velho Rouviére – nunca o calhamaço de Anatomia foi tão manuseado como durante aqueles quatro meses!…
Tinha, portanto, voltado ao convívio da equipa do Carlos Cruz e sentia-me cada vez melhor, até porque, desde Janeiro, estava a tomar a tal propafenona, que me eliminava, quase por completo, as tenebrosas extrassístoles.
E, mais uma vez, tudo se passou por acaso. Aproveitando o facto de se realizarem umas Jornadas de Cardiologia no Hotel do Mar, em Sesimbra, na mesma altura em que completávamos 13 anos de casados, fomos lá passar duas noites. Numa das sessões das Jornadas, ouvi um colega cardiologista falar da propafenona e da sua eficácia no controlo das arritmias ventriculares. Já tinha experimentado tantas drogas, praticamente sem supervisão, por que não experimentar mais uma?
Comecei, portanto, a tomar a propafenona, também conhecida como Rytmonorm e foi um milagre!
De repente, com três comprimidos de 150 miligramas por dia, as extrassístoles desapareceram. Foi uma das melhores coisas que me aconteceram. Pude, finalmente, voltar a saborear as pequenas grandes coisas da vida, como se fossem novidade: comer sem extrassístoles, fazer amor sem extrassístoles, ir às reuniões sem extrassístoles, brincar com os miúdos sem extrassístoles! Senti-me como um homem novo e até arranjei coragem para ir fazer um ecocardiograma que, obviamente, era normal. Desapareceram, assim, do meu espírito, todos aqueles receios de alterações valvulares cardíacas ou outras. Tinha uma perturbação do ritmo cardíaco mas, estruturalmente, o meu coração era normal. Podia continuar a fumar! Não que eu estivesse quase decidido a deixar de o fazer mas, ao fumar cada cigarro, sentia a culpabilidade judaico-cristã a massacrar-me: tens o coração doente e ainda o tornas mais doente com os cigarros, devias deixar de fumar, estás a fazer mal a ti próprio e não és capaz de parar só porque isso te dá prazer, para ti, afinal, o prazer é mais importante que a saúde!…
Ainda por cima, o Rytmonorm não me causava nenhum efeito secundário, a não ser um certo amargor na boca, relativamente fácil de suportar. Cheguei a tomar 900 miligramas de propafenona por dia (a dose máxima recomendada), mas consegui dominar as cabronas das extrassístoles!
Foi ainda com algumas extrassístoles que fui votar no Mário Soares para a Presidência da República, contra o Freitas do Amaral. Tem sido assim em quase todas as eleições – votar contra alguém ou alguma coisa. O chamado voto útil. Só nas primeiras eleições após o 25 de Abril, para a Assembleia Constituinte, em 1975, é que votei conscientemente a favor – votei UDP, que até conseguiu eleger um deputado, o agora PS, Acácio Barreiros.
Depois, face às propostas políticas da extrema esquerda, que continuaram delirantes, passei a votar contra. Votei no Eanes (que enjoo!) contra o Soares Carneiro; votei no PS, contra o Cavaco; votei no Soares contra o Freitas; votei no Jorge Sampaio contra o Cavaco, outra vez.
O dinheiro que ganhei no “Uma Vez por Semana” chegou para comprar, nesse ano, mais uma aparelhagem, por altura do meu 33º aniversário. Dessa vez, foi um conjunto hi-fi da Pioneer, com dois gravadores de cassetes. E toca a regravar as cassetes todas! A este propósito, escrevi o seguinte texto no 23º caderninho:

“Para quê gravar cassetes? Ou ainda pior: para quê regravá-las? Para meu deleite ou apenas para preencher o tempo? E escrever? E ver doentes? E comer? E amar? Pode parecer, à primeira vista, que estou á beira de uma grande fossa, mas é apenas uma discussão filosófica acerca das razões que nos levam a ter uma vida tão preenchida, tão plena e, depois, surge uma pequena aberta e, em vez de aproveitarmos para nosso puro deleite (ficar quieto, por exemplo, a ouvir as cassetes que regravei), sentimos um grande vazio e uma necessidade imensa de fazer logo qualquer coisa – como escrever patetices neste caderno, por exemplo.”

Hoje em dia, já não sou assim. No entanto, durante muitos anos, era frenético no que respeita a preencher o dia todo com algo. A Mila, coitada, foi uma vítima, na medida que eu a criticava se, nas férias, lhe apetecia dormir uma sesta após o almoço, por exemplo. Para mim, dormir era uma perda de tempo. Havia que estar a fazer sempre alguma coisa. Agora, já não. Já sou capaz de ficar sossegadinho, sentadinho, sem fazer nada de especial – e não me sentir culpabilizado por isso…
Enfim, graças às contas sempre muito bem feitinhas pela Mila, que sabe poupar aqui para se poder gastar acolá, até conseguimos arranjar dinheiro para pagar a uma empregada diariamente, para nos fazer a limpeza. Finalmente, já não era preciso esperar pelas folgas ou pelos fins de semana livres, para a Mila andar de pano do pó em punho e eu com o aspirador. A Irene, uma são-tomense cheia de força e vigor, encarregava-se desse trabalho. Estávamos a ficar uns senhores doutores, caramba! Até deixei de comprar Bosford e comecei a dar-me ao luxo de só beber Gordon’s. E quanto mais gin bebia, menos leite consumia. Percebi que as grandes crises de cólicas abdominais que tinha, de vez em quando, estavam relacionadas com o consumo de leite, sobretudo após uma noite de serviço no SAP, em que me fartava de beber leite, para aplacar a fome. Rebolava-me na cama, com dores excruciantes. Já tinha tido dores semelhantes em Mourão, que atribuíra ao queijo alentejano, com muitos cardos. Agora, era o leite. Acabou-se o leite, pronto!
E acabaram-se os pássaros, também. O chiqueiral era demais. A Irene levou-os; limpar por limpar, limpava a porcaria na casa dela.
No terraço, a actividade era frenética. Quando o Pedro fez 13 anos, oferecemos-lhe um cesto de basquet e, durante as férias, as tardes eram passadas com despiques intensos entre o Pedro e os seus amigos de então: o Pedro Nuno e o Miguel, vizinho do terceiro andar. Ao mesmo tempo, a Marta brincava aos jantarinhos com a Ana, irmã do Miguel. Construímos uma bancada de aparite, pintada de vermelho, com pregos onde a Marta pendurava as panelinhas e os tachinhos. E depois, era a bagunça total, com a bola de basquet a cair em cima das panelas e a espalhar a água pela chão do terraço e o Gin, correndo que nem um doido, de um lado para o outro, derrapando na água. Se aparecia um gato vadio, passeando-se pelo muro que rodeava o terraço, o Gin desvairava. Para ele, a Pantufa não era um gato (aliás, para nós também não… talvez a encarnação do Beethoven ou de outro génio qualquer que quisesse, na sua nova vida, encarnado em felino, ter uma existência calma e pacífica). Por vezes, bastava que um de nós apontasse para o muro e gritasse: “Gin! Olha o gato!” e lá ia o nosso cão correr de um lado para o outro, ladrando furiosamente. Em breve, substituímos o grito de “olha o gato!” por “olha o Cavaco!” – a reacção do Gin era igualmente feroz. O que contava era a entoação – ou será que o nosso cão era um anti-cavaquista militante?…


Nós os quatro, em 1986, na varanda da nossa primeira casa em Almada. Três notas: as plantas, uma constante das nossas varandas, a prateleira de pinho, feita por nós, com frasquinhos e tinteiros e os meus óculos, que ocupam mais de metade da minha cara.

Outro grande motivo de diversão nesse ano foi uma câmara de vídeo, sistema beta, que o Zé Duarte me emprestou durante algum tempo. Era um bacamarte que pesava uma dúzia de quilos e eu pedi-lha emprestada para gravar mais uma festa de ballet da Academia Almadense. Nessa altura, já a Marta tinha aulas com a professora Maria Franco, que se especializara em danças populares castelhanas. Por esse motivo, a Marta foi dançar, nessa festa, uma Jota, vestida com trajes típicos da Andaluzia. E que bem que ela dançou, destacando-se das demais pela graciosidade e a perfeição dos gestos!
Mas, para além da gravação da festa da Marta, a câmara serviu, também, para grandes brincadeiras. Já que as rábulas que eu escrevia para os programas do Isidro tinham pouca graça – ou, se tinham alguma, eram logo destruídas pelas interpretações especialíssimas da Maria Vieira e da Ana Bola, que as modificavam a seu belo prazer, colocando-as ao nível da piada do cocó e do chi-chi – como não conseguia estar satisfeito com a minha produção televisiva, inventava rábulas malucas, que interpretava com a ajuda, sobretudo, do Pedro. Passámos tardes bem divertidas. Lembro-me de uma dessas rábulas, em que eu demonstrava, com a ajuda da bicicleta do Pedro, as vantagens de um novo modelo de automóvel sem portas e com apenas duas rodas. Era tudo de improviso, obviamente. E o Pedro, coitado, com a câmara ao ombro, ria-se a bandeiras despegadas e tremia a imagem. Mas também ele fazia rábulas do caraças, todas de improviso. Uma noite, no quarto dele, pus a câmara a gravar e o miúdo começou um monólogo perfeitamente louco, em que se apresentava como o exterminador de lombrigas; com a ajuda de uma peça trazida de Santiago, e que servia para tirar rolhas das pipas, explicava como sacava os parasitas das pessoas. Um fartar de rir!
Talvez graças ao cesto de basquet ou ao facto de ter completado 13 anos, o Pedro mostrou-se, nessa altura, um pouco mais interessado nas actividades físicas. Tanto ele como a Marta foram aprender a nadar numa colectividade com o incrível nome de Sociedade Filarmónica União Artística Piedense – e o Pedro até participou numa iniciativa engraçada dessa SFUAP: as 24 horas a nadar, fazendo as piscinas que lhe couberam no sorteio. Sol de pouca dura, no entanto. Depressa se fartou, continuando a preferir os jogos do Spectrum.
Foi por essa altura que consegui realizar outro dos meus sonhos mais ou menos megalómanos: comprar a Enciclopédia Britânica. E digo megalómano porque a Enciclopédia custou-nos 235 contos, enquanto o nosso ordenado era pouco mais de 80 contos e acabáramos de abrir uma conta-poupança-habitação com uns míseros 50 contos. Se não tivesse comprado o vídeo beta, nem a Britânica, nem a aparelhagem Pioneer, a tal conta poderia ter começado com mais de 500 contos. Opções de que não me arrependo. Sempre gostei muito de enciclopédias. Neste momento, além da Caxton e da Britânica, tenho a Lexicoteca e a Larrousse. Deve ser por causa do meu gosto em catalogar, indexar, arquivar, organizar – e as enciclopédias, com todas aquelas entradas por ordem alfabética, fascinam-me.
No nosso segundo ano como Clínicos Gerais no Monte de Caparica, o trabalho aumentou significativamente e começámos a entrar num ritmo que nunca mais abrandou, antes pelo contrário. A Unidade de Saúde do Monte serve uma população muito carenciada, social e economicamente. São cerca de 22 mil habitantes distribuídos por uma região relativamente extensa e congrega, além da população autóctone, muitos regressados das ex-colónias e realojados de bairros de barracas. Assim, distribuídos pelo Porto Brandão, Castelo Picão, Pêra, Lazarim, Alcaniça, Banática, Granja, Fonte Santa, Filipa de Água, Raposo, temos pescadores, velhotes que ainda tratam de pequenas courelas, operários que vieram do Alentejo para trabalhar na Lisnave, regressados das ex-colónias, primeiras e segundas (e até terceiras gerações) de cabo-verdianos, guineenses, angolanos, indianos de Moçambique, são-tomenses, indivíduos de etnia cigana. Muitos destes últimos, estão todos no chamado Bairro do Pica Pau Amarelo, com os costumeiros problemas de droga, delinquência, desemprego, gravidez na adolescência. O habitual… E, de há uns tempos para cá, começaram a chegar os brasileiros, ucranianos, moldavos, eslovenos, bósnios...
Os Centros de Saúde não são suficientes para responder às solicitações dos utentes e as razões são muitas. Por um lado, muitos médicos estão pouco disponíveis, dispersam-se por várias actividades, são pouco assíduos; por outro, as populações procuram, na ida ao médico, a resposta para muitos dos seus problemas, as mais das vezes, de carácter social; ao mesmo tempo, alguma propaganda partidária incutiu nas pessoas a ideia de resposta imediata, por parte dos serviços de saúde, com a criação dos SAP (Serviço de Atendimento Permanente) e serviços afins. Talvez que a criação desses serviços tivesse, como objectivo inicial, afastar das urgências hospitalares, as situações que não necessitavam de cuidados diferenciados, as amidgalites, as unhas encravadas, as dores de dentes, as dores nas costas. Mas o que aconteceu foi que muitos doentes continuaram a preferir as urgências hospitalares, pensando que aí, fazendo uma radiografia ou uma análise, o seu mal seria melhor diagnosticado e tratado. Por seu lado, os médicos hospitalares, temendo o julgamento popular, começaram a praticar uma medicina defensiva, isto é, pedir exames em quase todas as situações, mesmo sem grande justificação, não querendo ser acusados de negligência. Entretanto, nos Centro de Saúde, as pessoas tinham que ir às 4 da manhã para obter uma consulta. O resultado de tudo isto: Centros de Saúde cheios, SAP’s cheios, urgências hospitalares cheias, hospitais cheios – e, acrescente-se, clínicas particulares cheias, anjos da noite e a fins a prosperarem. Será que os portugueses são assim tão doentes?
Claro que não. O que acontece é que gostam de ir ao médico e, ainda por cima, é barato. Tenho doentes que, no sábado, vão à urgência do Hospital Garcia de Orta, no domingo vão ao SAP de Almada e, na segunda feira, vão à minha consulta, trazendo ainda na mão, por aviar, as receitas que lhe foram passadas. Não há qualquer coordenação entre os vários serviços e não há barreiras. As taxas moderadoras, por exemplo, são para rir – o fulano que ganha o ordenado mínimo paga os mesmos 300 escudos que o tipo que ganha mil contos por mês! Por isso, o trabalho é sempre muito.
Em Dezembro de 1986, por exemplo, num SAP de 12 horas, em plena epidemia de gripe – aquela coisa que a minha mãe tratava com aspirina e caldinhos quentes – observei 109 doentes, e os restantes três colegas de equipa terão observado outro tanto. E depois, também tenho que dizer que há colegas de profissão que, desde que iniciaram as suas carreiras, habituaram os seus doentes a chegarem tarde, sair cedo e nunca ver mais que um determinado número de doentes em cada consulta. Os doentes destes médicos acabaram por se conformar com esse método de trabalho e desabituaram-se de ir ao seu médico, preferindo as diversas urgências disponíveis. Outros médicos, onde eu me incluo, sempre se mostraram disponíveis, não colocando limites na inscrição de doentes na consulta, para além dos humanamente razoáveis e o resultado é que, agora, mesmo que eu queira estabelecer algum limite, a minha relação com os doentes é tão próxima, que me é difícil dizer não.
Portanto, logo no meu segundo ano como clínico geral, comecei a ter doses industriais de trabalho. A comissão instaladora do Centro de Saúde da Costa de Caparica, a que a minha Unidade pertence, achou que eu estava a gastar credenciais de exames complementares a mais e cortou o respectivo fornecimento. Não sabiam com quem se estavam a meter – estavam perante um furioso escritor de cartas. Escrevi assim:

“Venho dar-vos conhecimento de um fenómeno estranho que entrava a minha função como médico de Clínica Geral e que torna a prática da medicina uma “coisa” ridícula e sujeita a restrições administrativas surrealistas.
No princípio do mês de Outubro, foram-me fornecidos 35 exemplares do modelo 15182 (pedido de análises) e – embora me fosse dito que já fora pedido um aumento de dotação para o mês seguinte – deveria “governar-me” com este número.
Pois bem (e seguia-se a descrição de todos os pedidos de análises que eu já tinha feito, com o nome dos doentes e a que se destinavam).
Em conclusão: a 14 do corrente, possuo cinco “papelinhos”, modelo 15182, e ainda me faltam fazer, este mês, onze consultas de Clínica Geral, com uma média de 18 doentes/dia.
Pergunto: que devo fazer? Dizer aos doentes que façam o favor de não precisarem de análises, porque não há papéis ou, da próxima vez, terei que ter cuidado e ser mais poupadinho, evitando pedir análises, por exemplo, nas infecções urinárias ou nas suspeitas de gravidez ou hepatite?”

A ironia continuava, mesmo para os meus superiores hierárquicos, que eu ainda mal conhecia. Não sei que comentários mereceu esta carta – sei que, no dia seguinte tinha, em cima da secretária, um molho dos tais papelinhos…
Enfim, após 17 anos de carreira na Clínica Geral, tenha as minhas ideias sobre a organização dos serviços, mas penso que isso daria outro livro.
Mais três acontecimentos importantes marcaram 1986: a Mila decidiu, finalmente, aos 33 anos, aprender a conduzir, eu tornei-me sócio do primeiro videoclube de Almada, o Discoeuropa, alugando um filme do Spielberg que tinha perdido no cinema, o “Tubarão”, e a Marta viu-se, finalmente, livre da megera da professora, terminando a instrução primária e ingressando, também ela, na Escola António da Costa. Entretanto, o Pedro matriculava-se no 8º ano, na Escola Emídio Navarro, onde ingressara no ano anterior, já que a António da Costa só tinha os dois primeiros anos do secundário.
Já que falei de filmes, em 1986, apenas três me ficaram na memória: “Noites Escaldantes”, do Lawrence Kasdan, “Cotton Club”, do Coppola e “Era uma Vez na América”, do Sérgio Leone.
Quanto a livros, ainda andava preso aos policiais – e até construí uma prateleira à medida para os livrinhos da Vampiro, que continuavam a aumentar. No que respeita a outras literaturas, comprei, por exemplo, “Ano da Morte de Ricardo Reis”, do Saramago. Não gostei.
Ainda antes de terminar, o ano de 1986 trouxe-me mais um programa televisivo, desta vez com o Carlos Cruz; mas isso fica para o próximo capítulo…
Mas não posso concluir este capítulo sem transcrever o que a Mila me escreveu, algures em 1986, num papelinho que guardei religiosamente:

“Desde há já algumas semanas que a “velha vontade” de ser mãe outra vez me tem assaltado.
Na última semana, tenho mesmo andado a ter continuamente, ao longo de todo o dia, “repentes” de pensamentos sobre uma nova criança. É claro que me assusta sempre o lado realístico do que isso acarretaria, em termos da nossa independência como casal, que agora já temos, uma vez que o Pedro e a Marta já estão crescidos. Porém, desta vez, a parte emocional está de tal forma FORTE que não sei o que pensar… Interrogo-me tantas vezes, sobre qual será a causa desta vontade tão grande de ter outro filho, pois racionalmente não a entendo, uma vez que as maternidades anteriores foram tão plenas e tão bem vividas.
Vejo-me a olhar para o Pedro e para a Marta e a sentir um gozo tão grande de vê-los crescer e isso então ainda me faz apetecer mais e mais, ver crescer outro filho.
Hoje, vê tu como estou, pus à ginecologista o problema de saber se não haveria nenhum inconveniente físico em relação a outra gravidez. Não estou definitivamente bem… Pergunto-me se daqui a vários anos não me arrependerei de não ter tido outro filho ou de o ter tido… É que o tempo, sinto-o, é agora, aos 33 anos, que urge… Sinto que tenho que me decidir definitivamente agora…
E depois, amo-te muito. Sexualmente e emocionalmente, crescemos juntos, e muito. Agora quero, ou penso que quero, um novo fruto desta união tão profunda. Que grande merda, estás tu agora a pensar, lá tenho que a convencer outra vez!
Não quero que me convenças, mas estou baralhada, lá isso estou…
Esta, penso eu, talvez seja a minha declaração de amor, agora que tantos casais, com o tempo de casados que nós temos, começam a fartar-se. Desculpa a instabilidade que te vou causar. Amo-te… amo-te…”

Não é bonito?…
E eu?… Que fiz perante esta declaração de amor, este pedido tão veemente?
Obviamente, convenci a Mila de que um terceiro filho talvez não fosse boa ideia. Muito sinceramente, estava satisfeito com o Pedro e com a Marta e não me estava a ver a voltar, outra vez, às fraldas e às creches.
Agora, quando penso nisso, tenho pena de não termos tido um terceiro filho mas, neste momento, ambos estamos de acordo: foi melhor assim…
E também te amo muito, Mila…

 

 

 

 

 

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: ainda não disponível

 

Actualizado em: 6 Dezembro 2003
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