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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


34. O fim dos caderninhos (1988)

O 34º caderninho foi o último de uma longa série de sebentas onde escrevi milhares de palavras, durante dezasseis anos: histórias e poemas que foram publicados em diversos jornais e revistas, ou emitidos em programas de rádio e televisão, textos a propósito disto e daquilo e mais poemas, que reuni em livros de exemplar único e, nos últimos anos, sobretudo desde a tropa, textos introspectivos, registos de crises de angústia, manifestos contra mim próprio, cenas de ódio e de raiva por não ser capaz de me sentir bem, por ter extrassístoles, suores, insónias, tremeliques e outros cheliques.
No dia 23 de Dezembro de 1986, comecei o tal 34º caderninho e, dois anos depois, ainda continuava com ele a meio – enquanto antes, enchia três e quatro cadernos por ano. Isto queria dizer que já não sentia tanta necessidade de escrever coisas íntimas, estava mais tranquilo, a ansiedade diminuíra bastante. Por outro lado, com a compra, em Março de 1988, por alturas do meu 35º aniversário, de uma máquina de escrever Olivetti, electrónica, por 64 contos, comecei a escrever os textos para os programas directamente na máquina, sem fazer rascunhos. Ainda fui escrevendo alguma coisa no último caderninho, sobretudo quando estava a trabalhar no SAP, e não havia doentes, o que me ajudava a passar o tempo, sem ter que aturar as conversas parvas dos meus colegas de equipa, mas acabei por desistir e nunca mais senti necessidade de recorrer a este tipo de textos intimistas.
De todos os textos escritos nesse 34º caderninho, acho que só vale a pena transcrever um, datado de Janeiro de 1986, que reza assim:

“À beira dos 34 anos, sou dependente de uma série de coisas consideradas más: benzodiazepina diária, anti-arrítmico, gin tónico, whisky, tabaco, cervejas. E depois? Se me sinto mal e com um Pacinone me sinto bem, que mal é que tem? Se tenho prazer no cigarro e no gin, por que razão hei-de parar? Porque mais tarde me vou arrepender. Talvez seja verdade. Mas o talvez tem uma dose de improbabilidade infinita. Pensar no meu quotidiano sem beber gin, sem fumar, sem tomar o Pacinone matinal, suportando as extras – só de pensar nisso, mais ansioso fico. Tudo isto poderá ter explicações engraçadíssimas, que um psicanalista encontraria nas profundezas da minha memória e nas minhas fantasias oníricas – mas para quê?
(…) O que são causas nobres? Qual é o objectivo da vida? Penso que a vida não tem nenhum sentido específico. Acho que estou quase a chegar a uma conclusão cósmica, mas não sei ainda que palavras utilizar.
Diz-se que a vida tem que ter um sentido porque é-nos difícil concebê-la sem ele. No entanto, se me perguntar, honestamente, não encontro nenhum sentido nela. Viver para construir algo? Para deixar algo para a posteridade? Tretas!
(…) Admitir que a nossa vida tem um sentido, é admitir que fomos postos neste mundo por algo, alguém ou alguma força, deus ou o que quer que seja, com a intenção de realizarmos um trabalho. Não pode ser assim. O sentido da minha vida é múltiplo e nenhum. É fazer este SAP, escrever amanhã para o programa, conviver com os meus filhos e a Mila, passear o cão, ler, ouvir música, etc., etc. De tudo isto, que não é UM sentido, talvez fique algo para o património da humanidade, talvez não. O sentido e o objectivo só podem o de ser feliz agora!…”

Continuo a subscrever a ideia que está subjacente a este texto, embora, hoje em dia, já não escrevesse desta maneira. Os Monty Python, no filme “O Sentido da Vida”, também dizem o mesmo: o sentido da vida?… darmo-nos bem uns com os outros, evitar as gorduras e, assim de repente, não me lembro de mais nada… Não é exactamente isto que eles dizem, mas a ideia é esta. À medida que os anos vão passando e que vou ficando mais velho, cada vez mais acredito que não existe, de facto, um sentido para a nossa vida, na acepção religiosa da expressão. A vida é para se ir vivendo e o seu próprio sentido é esse mesmo – ser vivida.
Em 1988, apercebendo-me de que os caderninhos já tinham cumprido o seu papel, comecei a relê-los e a recolher os textos mais significativos. Resumi os 34 caderninhos em 150 páginas dactilografadas na Olivetti, trabalho que terminei em Agosto do ano seguinte, e do qual me tenho socorrido, ao longo destas memórias.
Dizia eu, no texto que transcrevi acima, que continuava dependente de uma série de coisas consideradas más. Como se vai ver, consegui, após muitos anos de “luta”, deixar de tomar a benzodiazepina e o anti-arrítmico, já não bebo gin do modo compulsivo como bebia, mas continuo fiel ao whisky e ao cigarro e já não ligo muito à coisa. Em 1988, fiz mais uma tentativa para deixar de fumar. Tinha aparecido no mercado o Nicotinel, os adesivos com nicotina que supostamente ajudam os que pretendem abandonar o vício. No dia 23 de Janeiro, eu e a Mila decidimos experimentar a coisa; colámos o adesivo no peito e pusemos os cigarros de lado. Nesse dia, tive uma crise de extrassístoles tão intensa que, no dia seguinte, já andava de cigarro na mão outra vez. A Mila ainda aguentou dois ou três dias sem fumar, mas também acabou por soçobrar. A ideia de deixarmos de fumar surge de vez em quando, mas nunca é suficientemente forte para vencer o prazer que dá fumar um cigarrinho.
Por essa altura, a Mila pregou-me um susto de morte, que me proporcionou a terceira (e última, acho eu…) piela da minha vida. Certo dia, deu conta de um corrimento mamilar e entrámos (eu, pelo menos, entrei…) em pânico. A palpação das mamocas da Mila é muito complicada. Para já – e em primeiríssimo lugar – as mamas da minha mulher não são para palpar por mim, são para apalpar, afagar, acariciar, beijar. É muito complicado para mim, armar-me em médico, e palpar-lhe as maminhas como se ela fosse uma paciente qualquer; não tenho o distanciamento que esse trabalho exige; acabo por me envolver emocionalmente e, das duas uma, ou acabo por começar a apalpá-las, em vez de as palpar, ou encontro caroços em tudo o que apalpo e – podem crer – as mamas da Mila têm muito para (a)palpar. O resultado foi um período de angústia, até que a mamografia viesse comprovar que estava tudo bem. O resultado positivo da mamografia veio no mesmo dia em que tínhamos um jantar no Pátio Alentejano, na Costa da Caparica, a convite de um laboratório qualquer. Aceitámos o convite, fomos e eu aproveitei para festejar, bebendo tudo o que me apareceu pela frente. Foi a Mila que conduziu o carro, de regresso a casa, comigo, no banco ao lado, vendo a via rápida da Costa a ondular perigosamente – sensação que ficou resolvida com o competente vómito.
Vale a pena referir, aqui, o assédio dos laboratórios da indústria farmacêutica aos médicos de Clínica Geral, responsáveis por cerca de 70% das receitas que são passadas no nosso país. Para nós – que vínhamos de especialidades hospitalares – foi uma surpresa quando, chegados à Clínica Geral, deparámos com os delegados de informação médica, diariamente, a oferecer canetas, isqueiros, blocos, chapéus de sol, cadeiras de praia, termos, canecas, bonés, t-shirts e a convidarem-nos para reuniões clínicas, seguidas de jantares. Mas penso que é assim mesmo. Nós somos os prescritores, os laboratórios não podem fazer propaganda aos seus produtos na comunicação social, o Estado e a Ordem dos Médicos sempre se demitiram do papel de informadores e formadores, no que respeita a novas drogas para combater as doenças, e a indústria aproveita todos estes factos para exercer, junto de nós, a pressão que pensa ser a mais adequada, para influenciar a nossa prescrição. Não vejo mal nenhum nisto, considerando que vivemos numa sociedade liberal – desde que haja o bom senso de não prescrever drogas desnecessárias, só porque o laboratório que as fabrica, nos pagou um lauto jantar ou nos levou a um Congresso no estrangeiro – coisa que o Estado nunca fez, muito menos a Ordem dos Médicos. Toda a classe médica reconhece que, por exemplo, os inibidores do enzima de conversão da angiotensina (os chamados IECAS), foram um progresso notável na terapêutica da hipertensão, e não só. Hoje em dia, toda a gente está de acordo: o IECA é essencial na hipertensão, na insuficiência cardíaca, na protecção renal do diabético. Como é que nós, médicos, tomámos conhecimento deste enorme avanço senão através da própria indústria?
Nos anos sessenta e setenta, a Merk, Sharp & Dome, dominava o mercado dos anti-hipertensores, com drogas como o Aldomet e o Moduretic. Não havia hipertenso que não tomasse uma destas drogas, ou mesmo as duas (o meu pai, por exemplo, tomava Aldomet). O laboratório colaborou, juntamente com médicos, em muitas iniciativas de medição da tensão arterial por esse país fora. Se, por um lado, conseguiu, com essas iniciativas, um aumento significativo das suas vendas, contribuiu, indesmentivelmente, para a saúde pública nacional. Quem sabia o que era tensão arterial antes disso? E quem, hoje em dia, não mediu, pelo menos uma vez, a sua tensão arterial? Isto foi conseguido graças ao esforço da indústria farmacêutica – e não do Estado – que, em contrapartida, conseguiu que os médicos começassem, maciçamente, a prescrever os anti-hipertensores. Mas o Aldomet, por exemplo, tinha (e tem) muitos efeitos secundários desagradáveis e os IECA vieram colmatar essa falha. O primeiro dos IECA foi o Capoten e foi esse mesmo que eu comecei a tomar em 1988. Finalmente, aos 35 anos, depois de muita resistência, acabei por aceitar a evidência: era hipertenso. A Mila já me tinha detectado por várias vezes a tensão arterial elevada, mas acabávamos sempre por relacionar esse facto com o stress. Lembro-me de um domingo de Verão, em que estávamos no parque de campismo e eu regressei de um Pão Comanteiga e parecia que a minha cabeça estalava. Estava com uma tensão arterial altíssima. Eram os nervos. Não ligámos muito. Mas em 1988, várias medições seguidas, davam sempre uma mínima acima de 100 milímetros de mercúrio. Aceitei o óbvio: saía ao meu paizinho, era também hipertenso e comecei a tomar Capoten mas a coisa foi difícil de controlar, no princípio. No final desse ano, já tomava dois comprimidos diários de 50 miligramas de Capoten e a sacana da tensão continuava acima do que seria desejável. Ainda passariam alguns anos até que eu descobrisse o que me provocava tanto stress…
Quanto à escrita, o ano de 1988 ficou marcado pelo regresso do Pão Comanteiga, para a sua última série de programas. Equipa quase completamente renovada: Carlos Cruz, José Duarte, José Fanha e eu próprio, da equipa anterior, e ainda a Clara Pinto Correia, o Luís Macieira e o João Miguel Silva. Esta última série durou de Março a Agosto, sempre ao domingo de manhã, das 10 às 13 horas, na Rádio Comercial e decidimos, desta vez, arranjar um tema por mês. O pagamento também passou a ser diferente: em vez de receber por programa, recebia um cachet de 150 contos por mês. Recordo que, nesse ano, o meu ordenado como médico era de 107 contos mensais; mais uma vez, ganhava mais a escrever piadas para um programa de rádio do que pela responsabilidade de uma lista de mais de mil e quinhentos utentes.
A última edição do Pão foi muito divertida, embora os críticos achassem que a fórmula já estava gasta. No que respeita ao humor (e não só) nós, portugueses, somos muito “exigentes”. Séries inglesas e americanas mantêm-se anos a fio mas, por cá, se um tipo descobre uma fórmula engraçada e a repete, está desgraçado – é preciso ter ideias novas todos os dias. Somos uns idiotas! Admito, claro, que a fórmula não era nova, mas continuo a pensar que o Pão Comanteiga ainda tinha graça e poderia ter continuado durante mais algum tempo, se a equipa fosse maior, ou se os seus elementos se pudessem dar ao luxo de não fazer mais nada, se não escrever para o programa. Parece que me estou a contradizer, na medida em que, mais atrás, dei o exemplo de Fawlty Towers, que apenas teve treze episódios e que todos são pequenas obras de arte, postulando que, se o John Cleese tivesse feito mais episódios, provavelmente, a coisa não teria tido a mesma graça. Mas com o Pão, a coisa era diferente. Um programa de três horas de rádio podia aguentar-se durante mais algum tempo se tivesse havido a coragem de o ir modificando: mais música, menos textos, a repetição de alguns textos, a renovação frequente da equipa, textos de colaboradores externos, novas rubricas e por aí fora. Hoje em dia, a rádio não tem nada que se assemelhe ao Pão Comanteiga e – tirando a TSF que, devido à sua especificidade, é um caso à parte – as restantes estações generalistas são um completo deserto de ideias.
A terceira série do Pão Comanteiga teve ainda um suplemento semanal no jornal A Capital, praticamente coordenado por mim e pelo José Duarte, onde se publicavam alguns dos textos que eram lidos na rádio.
No que respeita à escrita, o ano não terminou sem mais uma experiência: em Novembro, comecei a colaborar na escrita de uma peça de teatro, juntamente com o Carlos, o Zé Duarte, o Zambujal e o Fialho Gouveia. Era para se chamar “Este já está liquidado”, mas acabou por ficar “Quem tramou o Comendador?”. Três ou quatro vezes por semana, reunia-me no escritório do Carlos, nas Amoreiras, com os restantes autores e ali ficava horas, com o texto da peça, para a frente e para trás. Foi um parto difícil e doloroso e, embora tenha sido interessante, como experiência, foi muito desgastante e pouco lucrativo; ficou assente que cada autor ficaria com 1,5% da receita de bilheteira e, como ela não foi famosa, a coisa revelou-se muito pouco lucrativa para o trabalho ciclópico que deu.
Entretanto, tínhamos uns filhos cada vez mais adolescentes. O Pedro, que esse ano completou 15 anos, teve uma pequena crise de adolescência, com uma breve quebra nos habituais bons resultados escolares – nada que meia dúzia de explicações da Mila não ajudassem e eu, armado em pai progressista e liberal, resolvi ter uma conversa de homem para homem com o meu filho, onde se falou de muita coisa, incluindo de masturbação, preservativos e correlativos. Inseguro no que respeita ao êxito das minhas palavras, ofereci-lhe, também, uma nova aparelhagem Sanyo, como incentivo para melhorar as suas notas. Não faço ideia se essa conversa teve alguma influência no Pedro ou se foi a aparelhagem nova que o entusiasmou ou se, mais prosaicamente, as explicações da Mila deram resultado – ou se não foi nada disto, ou tudo junto, mas o que é certo é o rapaz recuperou das negativas e passou calmamente para o 10º ano.
Antes de fazer 15 anos, pedimos-lhe – como já era habitual há uns tempos – uma lista das prendas que gostaria de ter no seu aniversário, e o Pedro entregou-nos o seguinte rol:

“um Commodore Amiga; um Spectrum plus 3; uma máscara de mergulho igual à do Jorge; barbatanas; uma bola de voleyball; uma bola de handball; uma bola de praia; discos do Mike Oldfield; discos do Vangelis; livros do Tolkien; livros da colecção Espaço; livros da colecção Clube do Jovem Detective; livros do Lucky Luke; livros do Astérix; cassetes de audio; uma TV a cores; uma camcorder; um Ferrari Testarrossa; um petroleiro do Kuwait; um morteiro iraniano; um ayatollah Khomeiny; um Ronald Reagan; meio Gorbachev; dois terços da Austrália; a Califórnia, com ou sem habitantes, tanto faz; uma antena parabólica; kits para montar; um Space Shuttle (em bom estado, sem fugas), 250 gramas de fiambre; meio queijo Pastor; um candeeiro para a mesa, daqueles que deram à Inês; uma bandeira do SLB; a conta, por favor; um Ângelo Correia (embalsamado, de preferência); paz, pão, saúde, educação; uma esmolinha; uma escada Magirus; o último disco do Marco Paulo… Isso não! Estava a brincar! Ouviram? Não, por favor! Antes o poço da morte, que tal sorte!; uma noite com Richard Antoni; um busto do Beethoven; um chocolate suíço… não, melhor, uma fábrica de chocolates suíços; um alvo para atirar dardos e consequentemente, uma placa de esferovite; uma impressora;, jogos de computador; uma bomba para encher pneus; um sintetizador; um CD; uns ólicos.”

Estão, certamente, a reconhecer o estilo, não é verdade?
Já não me recordo de todas as prendas que lhe demos – até porque esta lista era, depois, transmitida aos avós e tios e primos, e as prendas eram distribuídas por todos. Sei que lhe oferecemos um estirador, que durou até ao ano passado (ainda existe, mas está desactivado) e um alvo para dardos; no entanto, esquecemo-nos de lhe dar a competente placa de esferovite. O alvo foi pendurado na porta do armário do quarto do Pedro e o resultado foi óbvio: porta com mais buracos que um passador.


Dia do 15º aniversário do Pedro. A avó Arminda está muito divertida, perante o olhar condescendente do aniversariante.

A nossa outra adolescente, que completou 12 anos em 1988, também se estava a safar nos estudos, passando para o 7º ano. A sua paixão continuava a ser o ballet e, nesse ano, começou a dançar em pontas. No seu aniversário, já não lhe demos Barbies, como até então; as prendas foram, basicamente, anéis e pulseiras.
Apesar de termos dois filhos adolescentes, continuávamos a passar muitas tardes juntos, na praia mas, uma vez por outra, já íamos só nós os dois, enquanto os miúdos iam ao cinema, por exemplo. Era o primeiro sinal de que, em breve, cada um começaria a seguir o seu próprio caminho.
Os dias na praia eram longos e, por vezes, começavam bem cedo, de manhã, e prolongavam-se até à hora do sol se pôr. Nesse ano, passámos mais uma semana no Algarve, dessa vez em Pedras d’El Rei. Fartámo-nos, de tal modo, de praia que, hoje em dia, é raro lá pormos os pés; o Pedro, então, já não deve ir à praia há uns três anos; só a Marta continua fiel, indo lá sempre que pode.
Agora, gostamos mais da praia no Outono ou no Inverno, naqueles dias frios em que o sol sabe melhor.
Naquele ano, um dos nossos passatempos preferidos era ir até à praia, nos dias luminosos de Inverno e levar o Gin, que corria que nem um desalmado, para a frente e para trás, sem nunca se cansar. Nos anos anteriores, quando os miúdos eram mais pequenos, também costumávamos ir até à mata que bordeja a arriba da Costa da Caparica; levávamos umas cadeiras de praia e, enquanto os miúdos corriam e saltavam, nós ficávamos sentadinhos a ler um livro. A certa altura, o Pedro e a Marta lembraram-se de guardar algumas moedas numa caixinha e enterrá-la em determinado sítio da mata e, sempre que lá voltávamos, iam verificar como estava o tesouro e acrescentar-lhe mais algumas moedas.
Cinco meses depois de estarmos na nossa casa, tivemos uma grande surpresa: tínhamos a cozinha infestada de baratas! Certo dia, vendo uma barata a sair de um rádio Sanyo portátil que tínhamos na cozinha, decidi desmanchá-lo e ficámos boquiabertos: era uma colónia multitudinária de baratas! Milhares delas! A guerra foi declarada. À noite, e sem avisar, acendia a luz da cozinha, abria um armário ao acaso e lá estavam elas, de antenas no ar, espreitando por trás dos tachos e panelas. Seguia-se uma perseguição tenaz: tirava tudo do armário e desatava a matá-las com fúria. Mas, quais guerrilheiras, por cada barata que matava, parecia que dezenas delas surgiam. Foi uma guerra prolongada e parecia que não havia nada a fazer, até que descobrimos as armadilhas para baratas. Inundei os armários com aquilo. Chegámos a ter mais de uma centenas de armadilhas distribuídas pelos armários, atrás do frigorífico e das máquinas de lavar, nas prateleiras, na chaminé mas, finalmente, conseguimos afugentá-las. Sabemos, pelos relatos dos vizinhos, que o prédio está infestado; culpa-se a conduta do lixo e a proximidade dos cais da Lisnave, mas nós estamos livres! Tirando uma ou outra barata suicida que, de vez em quando, desconhecendo a existência das dezenas de armadilhas, ainda aparece por cá – e logo é destruída eficazmente – a praga foi extinta.
Outra chatice foi a da sanita. Parece que somos perseguidos pelas sanitas. Já no Algueirão foi a porcaria que relatei. Também nesta casa, a sanita resolveu entupir. E eu, armado em canalizador, resolvi tirar a sanita para ver de que se tratava – e não gostei do que vi: parecia que não havia ligação entra a sanita e o esgoto. E não havia mesmo! Tínhamos comprado uma sanita de um modelo diferente do habitual e o sacana do Capinha não devia saber como é que aquilo se ligava ao esgoto. Então, optou pela decisão mais fácil: não a ligou ao esgoto, pura e simplesmente; enfiou para ali um bocadinho de telha, em plano inclinado, muita massa de vidraceiro e esperou que o acaso e a sorte fizessem o resto. E, pelo menos durante quase um ano, a coisa resultou. Até que qualquer coisa mais consistente se negou a escorregar pela telha e entupiu aquilo tudo. O canalizador que cá veio a casa, coçou a cabeça várias vezes, o que era mau sinal. Como é que ele iria montar aquilo como deve ser sem estragar os azulejos do chão? Tememos o pior… E afinal, a coisa até foi bem simples: o homem escavou o chão da casa de banho, escavou, escavou, até abrir um buraco na placa e chegar ao tecto do vizinho de baixo, a quem nós chamávamos “periquito”, um velhote magrinho e baixinho e muito resmungão. Passámos a ter vista para a sanita do “periquito”. Bom, a coisa lá se resolveu, com muitos pedidos de desculpa ao vizinho e um trabalho extra do canalizador, que teve que chamar um amigo pedreiro e outro estucador, que isto de especialistas é outra coisa…
Outro especialista que ficou famoso na nossa vida foi o Suissas, técnico de rádio e televisão. Conheci-o na Bepaliz, onde comprei o vídeo Wega. A Bepaliz foi à falência e o Suissas abriu uma loja mesmo em frente à nossa casa, onde reparava televisores, vídeos e aparelhagens de som. Nesse ano, a nossa televisão, da prestigiada marca alemã de leste, Kolster, perdeu o pio e a imagem. Levei-a ao Suissas que a arranjou rapidamente; disse-me que era o sistema de alimentação que estava avariado e levou-me seis contos e setecentos pelo arranjo. Ao longo dos anos, levei vários aparelhos ao Suissas, para que eles os arranjasse; invariavelmente, era o sistema de alimentação e o preço do arranjo, andava sempre à volta dos seis contos e setecentos. Especialistas…
No campo da Saúde, a coisa andava tremida. A contestação era imensa e, em Junho, os médicos fizeram quatro dias de greve, aos quais aderimos. Era, de facto, preciso mudar qualquer coisa. Na Clínica Geral, por exemplo, a nova geração de Médicos de Família começava a iniciar novas formas de trabalhar, sem que houvesse qualquer gesto de boa vontade, por parte do Governo. Nós os dois, por exemplo, iniciámos, também em Junho, uma experiência que, a pouco e pouco, se estendeu aos restantes médicos da nossa Unidade de Saúde e, mais tarde, a outras Unidades. Juntamente com duas administrativas mais dinâmicas, a Fátima e a Isabel, criámos um secretariado. Os nossos utentes, em vez de marcarem consulta na secretaria geral, sempre com aquelas bichas medonhas, passaram a marcar consulta só com aquelas duas administrativas, com um atendimento mais personalizado, sem guichets a separar os utentes das funcionárias. Gradualmente, a Fátima e a Isabel foram desenvolvendo o seu trabalho com muita competência; às tantas, já conheciam os nossos doentes tão bem como nós, o que facilitava todas as tarefas de convocação da criança que faltava à consulta de rotina, ou da marcação de um domicílio, enfim, de toda a programação de trabalho. Pela primeira vez, desde que iniciáramos a Clínica Geral, em 1985, trabalhávamos em equipa.
Ao fim de três anos no Monte de Caparica, a nossa relação com os doentes era cada vez melhor e as prendas de Natal eram disso reflexo. E, num universo de mais de três mil utentes, havia sempre um que tinha uma actividade que se adaptava às nossas necessidades. Por exemplo, a Mila tinha um doente que era ferro velho e, a certa altura, ao saber – já não sei como – que eu gostava de rádios antigos, convidou-nos a passar lá pelo armazém a ver se haveria alguma coisa que nos interessasse. Nesse dia, trouxemos para casa catorze rádios antigos e passámos a tarde a limpar-lhes as teias de aranha e o lixo.
Naquela altura, as minhas colecções estavam quase todas desactivadas: os postais guardados em caixas de madeira, os autocolantes e os rótulos nos respectivos dossiers, as mortalhas nas vitrinas. Só a colecção de latas continuava a crescer, embora devagarinho. Nesse ano, apenas tinha duzentas.
No que respeita a vídeos, continuava a alugar três ou quatro por semana. Desforrámo-nos de anos seguidos em que perdemos muitos filmes ou porque tínhamos que estudar, ou porque não tínhamos dinheiro para ir ao cinema ou porque os miúdos eram pequenos. Vimos dezenas de filmes e revimos outras dezenas. Ao cinema, fomos poucas vezes, quer porque os filmes não nos interessavam, quer por preguiça. De assinalar, apenas mais um filme do Spielberg, “O Império do Sol”, que nos impressionou bastante.
Quanto a livros, a coisa esteve mais pobre. Tirando os policiais, pouca coisa mais comprei. Estava mais virado para os discos compactos, também numa tentativa de recuperar o tempo perdido. Comprei o duplo branco dos Beatles, discos do Paul Simon, Paul McCartney, Talking Heads, Dire Straits, Aztec Camera, Alan Parson’s, Beethoven e do “meu amigo” Tom Waits, “Raindogs” e “Swordfishtrombones”.
Terminei o ano de 1988 como tinha começado, de lacinho ao pescoço. Foi mais uma das minhas palermices. Como o ano tinha dois oitos, decidi que seria o ano do laço e desatei a comprar e a usar, laço.
Como todas as palermices, passou-me depressa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 





 

 

 



Próximo capítulo: 35. O Paulo e a Zélia (1989)

 

Actualizado em: 15 Fevereiro 2004
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