34. O fim dos caderninhos (1988)
O 34º caderninho foi o último de uma longa
série de sebentas onde escrevi milhares de palavras,
durante dezasseis anos: histórias e poemas que foram
publicados em diversos jornais e revistas, ou emitidos em
programas de rádio e televisão, textos a propósito
disto e daquilo e mais poemas, que reuni em livros de exemplar
único e, nos últimos anos, sobretudo desde
a tropa, textos introspectivos, registos de crises de angústia,
manifestos contra mim próprio, cenas de ódio
e de raiva por não ser capaz de me sentir bem, por
ter extrassístoles, suores, insónias, tremeliques
e outros cheliques.
No dia 23 de Dezembro de 1986, comecei o tal 34º caderninho
e, dois anos depois, ainda continuava com ele a meio –
enquanto antes, enchia três e quatro cadernos por
ano. Isto queria dizer que já não sentia tanta
necessidade de escrever coisas íntimas, estava mais
tranquilo, a ansiedade diminuíra bastante. Por outro
lado, com a compra, em Março de 1988, por alturas
do meu 35º aniversário, de uma máquina
de escrever Olivetti, electrónica, por 64 contos,
comecei a escrever os textos para os programas directamente
na máquina, sem fazer rascunhos. Ainda fui escrevendo
alguma coisa no último caderninho, sobretudo quando
estava a trabalhar no SAP, e não havia doentes, o
que me ajudava a passar o tempo, sem ter que aturar as conversas
parvas dos meus colegas de equipa, mas acabei por desistir
e nunca mais senti necessidade de recorrer a este tipo de
textos intimistas.
De todos os textos escritos nesse 34º caderninho, acho
que só vale a pena transcrever um, datado de Janeiro
de 1986, que reza assim:
“À beira dos 34 anos, sou dependente de
uma série de coisas consideradas más: benzodiazepina
diária, anti-arrítmico, gin tónico,
whisky, tabaco, cervejas. E depois? Se me sinto mal e com
um Pacinone me sinto bem, que mal é que tem? Se tenho
prazer no cigarro e no gin, por que razão hei-de
parar? Porque mais tarde me vou arrepender. Talvez seja
verdade. Mas o talvez tem uma dose de improbabilidade infinita.
Pensar no meu quotidiano sem beber gin, sem fumar, sem tomar
o Pacinone matinal, suportando as extras – só
de pensar nisso, mais ansioso fico. Tudo isto poderá
ter explicações engraçadíssimas,
que um psicanalista encontraria nas profundezas da minha
memória e nas minhas fantasias oníricas –
mas para quê?
(…) O que são causas nobres? Qual é
o objectivo da vida? Penso que a vida não tem nenhum
sentido específico. Acho que estou quase a chegar
a uma conclusão cósmica, mas não sei
ainda que palavras utilizar.
Diz-se que a vida tem que ter um sentido porque é-nos
difícil concebê-la sem ele. No entanto, se
me perguntar, honestamente, não encontro nenhum sentido
nela. Viver para construir algo? Para deixar algo para a
posteridade? Tretas!
(…) Admitir que a nossa vida tem um sentido, é
admitir que fomos postos neste mundo por algo, alguém
ou alguma força, deus ou o que quer que seja, com
a intenção de realizarmos um trabalho. Não
pode ser assim. O sentido da minha vida é múltiplo
e nenhum. É fazer este SAP, escrever amanhã
para o programa, conviver com os meus filhos e a Mila, passear
o cão, ler, ouvir música, etc., etc. De tudo
isto, que não é UM sentido, talvez fique algo
para o património da humanidade, talvez não.
O sentido e o objectivo só podem o de ser feliz agora!…”
Continuo a subscrever a ideia que está subjacente
a este texto, embora, hoje em dia, já não
escrevesse desta maneira. Os Monty Python, no filme “O
Sentido da Vida”, também dizem o mesmo: o sentido
da vida?… darmo-nos bem uns com os outros, evitar
as gorduras e, assim de repente, não me lembro de
mais nada… Não é exactamente isto que
eles dizem, mas a ideia é esta. À medida que
os anos vão passando e que vou ficando mais velho,
cada vez mais acredito que não existe, de facto,
um sentido para a nossa vida, na acepção religiosa
da expressão. A vida é para se ir vivendo
e o seu próprio sentido é esse mesmo –
ser vivida.
Em 1988, apercebendo-me de que os caderninhos já
tinham cumprido o seu papel, comecei a relê-los e
a recolher os textos mais significativos. Resumi os 34 caderninhos
em 150 páginas dactilografadas na Olivetti, trabalho
que terminei em Agosto do ano seguinte, e do qual me tenho
socorrido, ao longo destas memórias.
Dizia eu, no texto que transcrevi acima, que continuava
dependente de uma série de coisas consideradas más.
Como se vai ver, consegui, após muitos anos de “luta”,
deixar de tomar a benzodiazepina e o anti-arrítmico,
já não bebo gin do modo compulsivo como bebia,
mas continuo fiel ao whisky e ao cigarro e já não
ligo muito à coisa. Em 1988, fiz mais uma tentativa
para deixar de fumar. Tinha aparecido no mercado o Nicotinel,
os adesivos com nicotina que supostamente ajudam os que
pretendem abandonar o vício. No dia 23 de Janeiro,
eu e a Mila decidimos experimentar a coisa; colámos
o adesivo no peito e pusemos os cigarros de lado. Nesse
dia, tive uma crise de extrassístoles tão
intensa que, no dia seguinte, já andava de cigarro
na mão outra vez. A Mila ainda aguentou dois ou três
dias sem fumar, mas também acabou por soçobrar.
A ideia de deixarmos de fumar surge de vez em quando, mas
nunca é suficientemente forte para vencer o prazer
que dá fumar um cigarrinho.
Por essa altura, a Mila pregou-me um susto de morte, que
me proporcionou a terceira (e última, acho eu…)
piela da minha vida. Certo dia, deu conta de um corrimento
mamilar e entrámos (eu, pelo menos, entrei…)
em pânico. A palpação das mamocas da
Mila é muito complicada. Para já – e
em primeiríssimo lugar – as mamas da minha
mulher não são para palpar por mim, são
para apalpar, afagar, acariciar, beijar. É muito
complicado para mim, armar-me em médico, e palpar-lhe
as maminhas como se ela fosse uma paciente qualquer; não
tenho o distanciamento que esse trabalho exige; acabo por
me envolver emocionalmente e, das duas uma, ou acabo por
começar a apalpá-las, em vez de as palpar,
ou encontro caroços em tudo o que apalpo e –
podem crer – as mamas da Mila têm muito para
(a)palpar. O resultado foi um período de angústia,
até que a mamografia viesse comprovar que estava
tudo bem. O resultado positivo da mamografia veio no mesmo
dia em que tínhamos um jantar no Pátio Alentejano,
na Costa da Caparica, a convite de um laboratório
qualquer. Aceitámos o convite, fomos e eu aproveitei
para festejar, bebendo tudo o que me apareceu pela frente.
Foi a Mila que conduziu o carro, de regresso a casa, comigo,
no banco ao lado, vendo a via rápida da Costa a ondular
perigosamente – sensação que ficou resolvida
com o competente vómito.
Vale a pena referir, aqui, o assédio dos laboratórios
da indústria farmacêutica aos médicos
de Clínica Geral, responsáveis por cerca de
70% das receitas que são passadas no nosso país.
Para nós – que vínhamos de especialidades
hospitalares – foi uma surpresa quando, chegados à
Clínica Geral, deparámos com os delegados
de informação médica, diariamente,
a oferecer canetas, isqueiros, blocos, chapéus de
sol, cadeiras de praia, termos, canecas, bonés, t-shirts
e a convidarem-nos para reuniões clínicas,
seguidas de jantares. Mas penso que é assim mesmo.
Nós somos os prescritores, os laboratórios
não podem fazer propaganda aos seus produtos na comunicação
social, o Estado e a Ordem dos Médicos sempre se
demitiram do papel de informadores e formadores, no que
respeita a novas drogas para combater as doenças,
e a indústria aproveita todos estes factos para exercer,
junto de nós, a pressão que pensa ser a mais
adequada, para influenciar a nossa prescrição.
Não vejo mal nenhum nisto, considerando que vivemos
numa sociedade liberal – desde que haja o bom senso
de não prescrever drogas desnecessárias, só
porque o laboratório que as fabrica, nos pagou um
lauto jantar ou nos levou a um Congresso no estrangeiro
– coisa que o Estado nunca fez, muito menos a Ordem
dos Médicos. Toda a classe médica reconhece
que, por exemplo, os inibidores do enzima de conversão
da angiotensina (os chamados IECAS), foram um progresso
notável na terapêutica da hipertensão,
e não só. Hoje em dia, toda a gente está
de acordo: o IECA é essencial na hipertensão,
na insuficiência cardíaca, na protecção
renal do diabético. Como é que nós,
médicos, tomámos conhecimento deste enorme
avanço senão através da própria
indústria?
Nos anos sessenta e setenta, a Merk, Sharp & Dome, dominava
o mercado dos anti-hipertensores, com drogas como o Aldomet
e o Moduretic. Não havia hipertenso que não
tomasse uma destas drogas, ou mesmo as duas (o meu pai,
por exemplo, tomava Aldomet). O laboratório colaborou,
juntamente com médicos, em muitas iniciativas de
medição da tensão arterial por esse
país fora. Se, por um lado, conseguiu, com essas
iniciativas, um aumento significativo das suas vendas, contribuiu,
indesmentivelmente, para a saúde pública nacional.
Quem sabia o que era tensão arterial antes disso?
E quem, hoje em dia, não mediu, pelo menos uma vez,
a sua tensão arterial? Isto foi conseguido graças
ao esforço da indústria farmacêutica
– e não do Estado – que, em contrapartida,
conseguiu que os médicos começassem, maciçamente,
a prescrever os anti-hipertensores. Mas o Aldomet, por exemplo,
tinha (e tem) muitos efeitos secundários desagradáveis
e os IECA vieram colmatar essa falha. O primeiro dos IECA
foi o Capoten e foi esse mesmo que eu comecei a tomar em
1988. Finalmente, aos 35 anos, depois de muita resistência,
acabei por aceitar a evidência: era hipertenso. A
Mila já me tinha detectado por várias vezes
a tensão arterial elevada, mas acabávamos
sempre por relacionar esse facto com o stress. Lembro-me
de um domingo de Verão, em que estávamos no
parque de campismo e eu regressei de um Pão Comanteiga
e parecia que a minha cabeça estalava. Estava com
uma tensão arterial altíssima. Eram os nervos.
Não ligámos muito. Mas em 1988, várias
medições seguidas, davam sempre uma mínima
acima de 100 milímetros de mercúrio. Aceitei
o óbvio: saía ao meu paizinho, era também
hipertenso e comecei a tomar Capoten mas a coisa foi difícil
de controlar, no princípio. No final desse ano, já
tomava dois comprimidos diários de 50 miligramas
de Capoten e a sacana da tensão continuava acima
do que seria desejável. Ainda passariam alguns anos
até que eu descobrisse o que me provocava tanto stress…
Quanto à escrita, o ano de 1988 ficou marcado pelo
regresso do Pão Comanteiga, para a sua última
série de programas. Equipa quase completamente renovada:
Carlos Cruz, José Duarte, José Fanha e eu
próprio, da equipa anterior, e ainda a Clara Pinto
Correia, o Luís Macieira e o João Miguel Silva.
Esta última série durou de Março a
Agosto, sempre ao domingo de manhã, das 10 às
13 horas, na Rádio Comercial e decidimos, desta vez,
arranjar um tema por mês. O pagamento também
passou a ser diferente: em vez de receber por programa,
recebia um cachet de 150 contos por mês. Recordo que,
nesse ano, o meu ordenado como médico era de 107
contos mensais; mais uma vez, ganhava mais a escrever piadas
para um programa de rádio do que pela responsabilidade
de uma lista de mais de mil e quinhentos utentes.
A última edição do Pão foi muito
divertida, embora os críticos achassem que a fórmula
já estava gasta. No que respeita ao humor (e não
só) nós, portugueses, somos muito “exigentes”.
Séries inglesas e americanas mantêm-se anos
a fio mas, por cá, se um tipo descobre uma fórmula
engraçada e a repete, está desgraçado
– é preciso ter ideias novas todos os dias.
Somos uns idiotas! Admito, claro, que a fórmula não
era nova, mas continuo a pensar que o Pão Comanteiga
ainda tinha graça e poderia ter continuado durante
mais algum tempo, se a equipa fosse maior, ou se os seus
elementos se pudessem dar ao luxo de não fazer mais
nada, se não escrever para o programa. Parece que
me estou a contradizer, na medida em que, mais atrás,
dei o exemplo de Fawlty Towers, que apenas teve treze episódios
e que todos são pequenas obras de arte, postulando
que, se o John Cleese tivesse feito mais episódios,
provavelmente, a coisa não teria tido a mesma graça.
Mas com o Pão, a coisa era diferente. Um programa
de três horas de rádio podia aguentar-se durante
mais algum tempo se tivesse havido a coragem de o ir modificando:
mais música, menos textos, a repetição
de alguns textos, a renovação frequente da
equipa, textos de colaboradores externos, novas rubricas
e por aí fora. Hoje em dia, a rádio não
tem nada que se assemelhe ao Pão Comanteiga e –
tirando a TSF que, devido à sua especificidade, é
um caso à parte – as restantes estações
generalistas são um completo deserto de ideias.
A terceira série do Pão Comanteiga teve ainda
um suplemento semanal no jornal A Capital, praticamente
coordenado por mim e pelo José Duarte, onde se publicavam
alguns dos textos que eram lidos na rádio.
No que respeita à escrita, o ano não terminou
sem mais uma experiência: em Novembro, comecei a colaborar
na escrita de uma peça de teatro, juntamente com
o Carlos, o Zé Duarte, o Zambujal e o Fialho Gouveia.
Era para se chamar “Este já está liquidado”,
mas acabou por ficar “Quem tramou o Comendador?”.
Três ou quatro vezes por semana, reunia-me no escritório
do Carlos, nas Amoreiras, com os restantes autores e ali
ficava horas, com o texto da peça, para a frente
e para trás. Foi um parto difícil e doloroso
e, embora tenha sido interessante, como experiência,
foi muito desgastante e pouco lucrativo; ficou assente que
cada autor ficaria com 1,5% da receita de bilheteira e,
como ela não foi famosa, a coisa revelou-se muito
pouco lucrativa para o trabalho ciclópico que deu.
Entretanto, tínhamos uns filhos cada vez mais adolescentes.
O Pedro, que esse ano completou 15 anos, teve uma pequena
crise de adolescência, com uma breve quebra nos habituais
bons resultados escolares – nada que meia dúzia
de explicações da Mila não ajudassem
e eu, armado em pai progressista e liberal, resolvi ter
uma conversa de homem para homem com o meu filho, onde se
falou de muita coisa, incluindo de masturbação,
preservativos e correlativos. Inseguro no que respeita ao
êxito das minhas palavras, ofereci-lhe, também,
uma nova aparelhagem Sanyo, como incentivo para melhorar
as suas notas. Não faço ideia se essa conversa
teve alguma influência no Pedro ou se foi a aparelhagem
nova que o entusiasmou ou se, mais prosaicamente, as explicações
da Mila deram resultado – ou se não foi nada
disto, ou tudo junto, mas o que é certo é
o rapaz recuperou das negativas e passou calmamente para
o 10º ano.
Antes de fazer 15 anos, pedimos-lhe – como já
era habitual há uns tempos – uma lista das
prendas que gostaria de ter no seu aniversário, e
o Pedro entregou-nos o seguinte rol:
“um Commodore Amiga; um Spectrum plus 3; uma
máscara de mergulho igual à do Jorge; barbatanas;
uma bola de voleyball; uma bola de handball; uma bola de
praia; discos do Mike Oldfield; discos do Vangelis; livros
do Tolkien; livros da colecção Espaço;
livros da colecção Clube do Jovem Detective;
livros do Lucky Luke; livros do Astérix; cassetes
de audio; uma TV a cores; uma camcorder; um Ferrari Testarrossa;
um petroleiro do Kuwait; um morteiro iraniano; um ayatollah
Khomeiny; um Ronald Reagan; meio Gorbachev; dois terços
da Austrália; a Califórnia, com ou sem habitantes,
tanto faz; uma antena parabólica; kits para montar;
um Space Shuttle (em bom estado, sem fugas), 250 gramas
de fiambre; meio queijo Pastor; um candeeiro para a mesa,
daqueles que deram à Inês; uma bandeira do
SLB; a conta, por favor; um Ângelo Correia (embalsamado,
de preferência); paz, pão, saúde, educação;
uma esmolinha; uma escada Magirus; o último disco
do Marco Paulo… Isso não! Estava a brincar!
Ouviram? Não, por favor! Antes o poço da morte,
que tal sorte!; uma noite com Richard Antoni; um busto do
Beethoven; um chocolate suíço… não,
melhor, uma fábrica de chocolates suíços;
um alvo para atirar dardos e consequentemente, uma placa
de esferovite; uma impressora;, jogos de computador; uma
bomba para encher pneus; um sintetizador; um CD; uns ólicos.”
Estão, certamente, a reconhecer o estilo, não
é verdade?
Já não me recordo de todas as prendas que
lhe demos – até porque esta lista era, depois,
transmitida aos avós e tios e primos, e as prendas
eram distribuídas por todos. Sei que lhe oferecemos
um estirador, que durou até ao ano passado (ainda
existe, mas está desactivado) e um alvo para dardos;
no entanto, esquecemo-nos de lhe dar a competente placa
de esferovite. O alvo foi pendurado na porta do armário
do quarto do Pedro e o resultado foi óbvio: porta
com mais buracos que um passador.
Dia do 15º aniversário do Pedro. A avó
Arminda está muito divertida, perante o olhar condescendente
do aniversariante.
A nossa outra adolescente, que completou 12 anos em 1988,
também se estava a safar nos estudos, passando para
o 7º ano. A sua paixão continuava a ser o ballet
e, nesse ano, começou a dançar em pontas.
No seu aniversário, já não lhe demos
Barbies, como até então; as prendas foram,
basicamente, anéis e pulseiras.
Apesar de termos dois filhos adolescentes, continuávamos
a passar muitas tardes juntos, na praia mas, uma vez por
outra, já íamos só nós os dois,
enquanto os miúdos iam ao cinema, por exemplo. Era
o primeiro sinal de que, em breve, cada um começaria
a seguir o seu próprio caminho.
Os dias na praia eram longos e, por vezes, começavam
bem cedo, de manhã, e prolongavam-se até à
hora do sol se pôr. Nesse ano, passámos mais
uma semana no Algarve, dessa vez em Pedras d’El Rei.
Fartámo-nos, de tal modo, de praia que, hoje em dia,
é raro lá pormos os pés; o Pedro, então,
já não deve ir à praia há uns
três anos; só a Marta continua fiel, indo lá
sempre que pode.
Agora, gostamos mais da praia no Outono ou no Inverno, naqueles
dias frios em que o sol sabe melhor.
Naquele ano, um dos nossos passatempos preferidos era ir
até à praia, nos dias luminosos de Inverno
e levar o Gin, que corria que nem um desalmado, para a frente
e para trás, sem nunca se cansar. Nos anos anteriores,
quando os miúdos eram mais pequenos, também
costumávamos ir até à mata que bordeja
a arriba da Costa da Caparica; levávamos umas cadeiras
de praia e, enquanto os miúdos corriam e saltavam,
nós ficávamos sentadinhos a ler um livro.
A certa altura, o Pedro e a Marta lembraram-se de guardar
algumas moedas numa caixinha e enterrá-la em determinado
sítio da mata e, sempre que lá voltávamos,
iam verificar como estava o tesouro e acrescentar-lhe mais
algumas moedas.
Cinco meses depois de estarmos na nossa casa, tivemos uma
grande surpresa: tínhamos a cozinha infestada de
baratas! Certo dia, vendo uma barata a sair de um rádio
Sanyo portátil que tínhamos na cozinha, decidi
desmanchá-lo e ficámos boquiabertos: era uma
colónia multitudinária de baratas! Milhares
delas! A guerra foi declarada. À noite, e sem avisar,
acendia a luz da cozinha, abria um armário ao acaso
e lá estavam elas, de antenas no ar, espreitando
por trás dos tachos e panelas. Seguia-se uma perseguição
tenaz: tirava tudo do armário e desatava a matá-las
com fúria. Mas, quais guerrilheiras, por cada barata
que matava, parecia que dezenas delas surgiam. Foi uma guerra
prolongada e parecia que não havia nada a fazer,
até que descobrimos as armadilhas para baratas. Inundei
os armários com aquilo. Chegámos a ter mais
de uma centenas de armadilhas distribuídas pelos
armários, atrás do frigorífico e das
máquinas de lavar, nas prateleiras, na chaminé
mas, finalmente, conseguimos afugentá-las. Sabemos,
pelos relatos dos vizinhos, que o prédio está
infestado; culpa-se a conduta do lixo e a proximidade dos
cais da Lisnave, mas nós estamos livres! Tirando
uma ou outra barata suicida que, de vez em quando, desconhecendo
a existência das dezenas de armadilhas, ainda aparece
por cá – e logo é destruída eficazmente
– a praga foi extinta.
Outra chatice foi a da sanita. Parece que somos perseguidos
pelas sanitas. Já no Algueirão foi a porcaria
que relatei. Também nesta casa, a sanita resolveu
entupir. E eu, armado em canalizador, resolvi tirar a sanita
para ver de que se tratava – e não gostei do
que vi: parecia que não havia ligação
entra a sanita e o esgoto. E não havia mesmo! Tínhamos
comprado uma sanita de um modelo diferente do habitual e
o sacana do Capinha não devia saber como é
que aquilo se ligava ao esgoto. Então, optou pela
decisão mais fácil: não a ligou ao
esgoto, pura e simplesmente; enfiou para ali um bocadinho
de telha, em plano inclinado, muita massa de vidraceiro
e esperou que o acaso e a sorte fizessem o resto. E, pelo
menos durante quase um ano, a coisa resultou. Até
que qualquer coisa mais consistente se negou a escorregar
pela telha e entupiu aquilo tudo. O canalizador que cá
veio a casa, coçou a cabeça várias
vezes, o que era mau sinal. Como é que ele iria montar
aquilo como deve ser sem estragar os azulejos do chão?
Tememos o pior… E afinal, a coisa até foi bem
simples: o homem escavou o chão da casa de banho,
escavou, escavou, até abrir um buraco na placa e
chegar ao tecto do vizinho de baixo, a quem nós chamávamos
“periquito”, um velhote magrinho e baixinho
e muito resmungão. Passámos a ter vista para
a sanita do “periquito”. Bom, a coisa lá
se resolveu, com muitos pedidos de desculpa ao vizinho e
um trabalho extra do canalizador, que teve que chamar um
amigo pedreiro e outro estucador, que isto de especialistas
é outra coisa…
Outro especialista que ficou famoso na nossa vida foi o
Suissas, técnico de rádio e televisão.
Conheci-o na Bepaliz, onde comprei o vídeo Wega.
A Bepaliz foi à falência e o Suissas abriu
uma loja mesmo em frente à nossa casa, onde reparava
televisores, vídeos e aparelhagens de som. Nesse
ano, a nossa televisão, da prestigiada marca alemã
de leste, Kolster, perdeu o pio e a imagem. Levei-a ao Suissas
que a arranjou rapidamente; disse-me que era o sistema de
alimentação que estava avariado e levou-me
seis contos e setecentos pelo arranjo. Ao longo dos anos,
levei vários aparelhos ao Suissas, para que eles
os arranjasse; invariavelmente, era o sistema de alimentação
e o preço do arranjo, andava sempre à volta
dos seis contos e setecentos. Especialistas…
No campo da Saúde, a coisa andava tremida. A contestação
era imensa e, em Junho, os médicos fizeram quatro
dias de greve, aos quais aderimos. Era, de facto, preciso
mudar qualquer coisa. Na Clínica Geral, por exemplo,
a nova geração de Médicos de Família
começava a iniciar novas formas de trabalhar, sem
que houvesse qualquer gesto de boa vontade, por parte do
Governo. Nós os dois, por exemplo, iniciámos,
também em Junho, uma experiência que, a pouco
e pouco, se estendeu aos restantes médicos da nossa
Unidade de Saúde e, mais tarde, a outras Unidades.
Juntamente com duas administrativas mais dinâmicas,
a Fátima e a Isabel, criámos um secretariado.
Os nossos utentes, em vez de marcarem consulta na secretaria
geral, sempre com aquelas bichas medonhas, passaram a marcar
consulta só com aquelas duas administrativas, com
um atendimento mais personalizado, sem guichets a separar
os utentes das funcionárias. Gradualmente, a Fátima
e a Isabel foram desenvolvendo o seu trabalho com muita
competência; às tantas, já conheciam
os nossos doentes tão bem como nós, o que
facilitava todas as tarefas de convocação
da criança que faltava à consulta de rotina,
ou da marcação de um domicílio, enfim,
de toda a programação de trabalho. Pela primeira
vez, desde que iniciáramos a Clínica Geral,
em 1985, trabalhávamos em equipa.
Ao fim de três anos no Monte de Caparica, a nossa
relação com os doentes era cada vez melhor
e as prendas de Natal eram disso reflexo. E, num universo
de mais de três mil utentes, havia sempre um que tinha
uma actividade que se adaptava às nossas necessidades.
Por exemplo, a Mila tinha um doente que era ferro velho
e, a certa altura, ao saber – já não
sei como – que eu gostava de rádios antigos,
convidou-nos a passar lá pelo armazém a ver
se haveria alguma coisa que nos interessasse. Nesse dia,
trouxemos para casa catorze rádios antigos e passámos
a tarde a limpar-lhes as teias de aranha e o lixo.
Naquela altura, as minhas colecções estavam
quase todas desactivadas: os postais guardados em caixas
de madeira, os autocolantes e os rótulos nos respectivos
dossiers, as mortalhas nas vitrinas. Só a colecção
de latas continuava a crescer, embora devagarinho. Nesse
ano, apenas tinha duzentas.
No que respeita a vídeos, continuava a alugar três
ou quatro por semana. Desforrámo-nos de anos seguidos
em que perdemos muitos filmes ou porque tínhamos
que estudar, ou porque não tínhamos dinheiro
para ir ao cinema ou porque os miúdos eram pequenos.
Vimos dezenas de filmes e revimos outras dezenas. Ao cinema,
fomos poucas vezes, quer porque os filmes não nos
interessavam, quer por preguiça. De assinalar, apenas
mais um filme do Spielberg, “O Império do Sol”,
que nos impressionou bastante.
Quanto a livros, a coisa esteve mais pobre. Tirando os policiais,
pouca coisa mais comprei. Estava mais virado para os discos
compactos, também numa tentativa de recuperar o tempo
perdido. Comprei o duplo branco dos Beatles, discos do Paul
Simon, Paul McCartney, Talking Heads, Dire Straits, Aztec
Camera, Alan Parson’s, Beethoven e do “meu amigo”
Tom Waits, “Raindogs” e “Swordfishtrombones”.
Terminei o ano de 1988 como tinha começado, de lacinho
ao pescoço. Foi mais uma das minhas palermices. Como
o ano tinha dois oitos, decidi que seria o ano do laço
e desatei a comprar e a usar, laço.
Como todas as palermices, passou-me depressa.
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