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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


35. O Paulo e a Zélia (1988)

Foi em 1988 que conhecemos a nova companheira do meu irmão, a Zélia, que ele conhecera na EDP, onde ambos trabalhavam.
O meu irmão sempre foi um bocado misterioso para mim.
Quando ele nasceu, eu já tinha sete anos e andava preocupado com outras coisas. Não senti que o nascimento do meu irmão tenha afectado a minha posição de, até então, filho único. Não senti que me tenham roubado afectos, em favor do meu irmão. Quando ele começou a instrução primária, dava eu os primeiros passos como fumador e pesquisava já as tais revistas eróticas que o meu pai tinha escondidas. Quando eu saí de casa, um pouco antes dos 20 anos, tinha o Paulo 13. Quero com isto dizer que pouca convivência verdadeira tive com o meu irmão durante a infância.
Poderia dizer que me lembro deste ou daquele episódio, mas é mentira. Essas memórias são, muitas vezes, criadas pelas imagens. Tenho, por exemplo, uma foto da minha mãe, com o Paulo, ainda bebé, ao colo, vestido para o baptizado. Não me lembro de nada. O que é perfeitamente natural, na medida em que, só depois de escrever este capítulo e depois de o ter colocado na internet é que a minha irmã me informou que o bebé da fotografia é ela, e não o Paulo... Tenho outra foto em que estou eu, talvez com 11 anos, de lacinho ao pescoço, o Paulo e a Bela, pequeninos, todos muito bem vestidinhos; sei que foi num casamento. Não me lembro de nada.


Paulo, de olhar desconfiado, Bela e eu, talvez em 1964. Não me lembro de nada...

Lembro-me bem, no entanto, do episódio da chupeta. Vinha eu a subir a Avenida Gomes Pereira, vindo da escola, e o Paulo estava à janela, com a minha avó ou com a minha mãe, isso já não sei. O Paulo tinha acabado de deitar a chupeta fora (teria dois anos, três anos?); dei um chuto na chupeta, ela foi parar a meio da estrada, veio um carro e passou-lhe por cima. Perguntei ao meu irmão se queria que eu fosse buscar a chupeta e ele fez uma careta de nojo.
Mas, tirando este episódio breve e as histórias do Sr. Picocó, ambos já anteriormente relatados, não me lembro de mais nada.
Penso que a morte da minha mãe deve ter afectado bastante a estabilidade do Paulo, que estava em plena adolescência quando isso aconteceu. De algum modo, esse facto influenciou os resultados escolares e o Paulo, que sempre foi um tipo inteligente e sagaz, nem sequer tentou a Universidade.
Ficou-se pela EDP e pela música.
Quando viveu, com a Guida, na nossa cave do Algueirão, certo dia comprou uma bateria. Toda a gente lá em casa experimentou a coisa. Mas a sua atracção sempre foram os teclados. O Paulo cresceu com os grupos de rock progressivo, os Genesis, os King Crimson, os Yes e outros que tais, mas nunca deu o passo que faltava para, por exemplo, formar uma banda.
Depois de sair da nossa cave, quase que perdi o rasto ao meu irmão. As nossas vidas levaram rumos diferentes e encontramo-nos duas ou três vezes por ano.
Em 1988, comprou o seu primeiro sintetizador – tinha apenas 28 anos.
E eu continuo a vê-lo como se ele tivesse, mais ou menos, essa idade. E não é só por ele continuar a usar rabo de cavalo e brinco na orelha, apesar de já ter passado os 40 anos. Acho que continua com projectos de vida que é costume surgirem aos 20 e não aos 40 anos – o que não é obrigatoriamente mau. Tornar-se um compositor famoso não é, propriamente, um projecto da quarta década de vida, embora, por exemplo, o Henry Miller só tenha começado a publicar os seus livros depois dos 40 anos.
Depois de um primeiro casamento com a Guida, que não resultou, o Paulo encontrou, na Zélia, a companheira que o equilibrou e lhe deu tranquilidade. Alguns anos depois de vida em comum, decidiram casar-se e, também eles, formam uma dupla – todos dizemos “o Paulo e a Zélia”, todos passámos a vê-los como uma dupla, indissociável.


O Paulo e a Zélia em 2001.

O ano passado, o Paulo fez uma edição de autor de um CD com instrumentais da sua autoria. Fez tudo: compôs, tocou todos os instrumentos, gravou as músicas, fez a capa do disco. Está a vendê-lo pela internet e não só.
O Paulo falhou uma carreira na música?
Mas quem sou eu para dizer isto – eu que pensei em escrever e publicar livros, que achei que a Medicina não era para mim, que me dediquei ao jornalismo, voltei depois ao estetoscópio, andei perdido na Psiquiatria, enquanto escrevia piadas para a rádio e televisão, até perceber que, afinal, a vida é um projecto diário que se vai cumprindo?…
Certamente que o Paulo vai cumprindo os seus projectos, só que os dele não têm coincidido com os meus, nem tinham que coincidir. Esta história dos irmãos está muito sobrevalorizada. Temos o mesmo pai e a mesma mãe – mas isso não quer dizer que tenhamos o mesmo percurso, a mesma ideologia, os mesmos anseios.
Mas, repito, para mim, o Paulo continua a ser um mistério.
Aqui está um novo projecto para a minha vida: conhecer melhor o meu irmão.
Enquanto é tempo…

 



Próximo capítulo: 35. O Pedro e a Dalila (1989)

 

Actualizado em: 22 Fevereiro 2004
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