36. O Pedro e a Dalila (1989)
A Dalila apareceu cá em casa, pela primeira vez,
no terceiro dia de 1989.
O Pedro tinha uma namorada!
É normal ter-se uma namorada aos 15 anos. O que já
não é muito habitual é que essa namorada
se mantenha ao longo dos anos. E já lá vão
13 anos, incluindo quatro de casamento. O Pedro parece ter
herdado o gene da monogamia…
Apesar de ser normal um rapaz de 15 anos ter uma namorada,
a sensação é diferente quando se trata
do nosso filho.
Como já disse, o Pedro mudou o rumo da nossa vida.
Foi graças à sua concepção que
eu e a Mila começámos a viver juntos mais
cedo do que poderíamos ter previsto.
E o Pedro era um bebé lindo, rechonchudo, sorridente,
sempre bem disposto, interagindo muito connosco, desde muito
cedo. Temos slides do Pedro com três meses, rindo-se
para a objectiva da máquina fotográfica. E
assim continua, divertido e pronto a entrar em qualquer
brincadeira, cultivando um fino sentido de humor. Para comprovar
esta afirmação, basta referir que a primeira
palavra que disse, de um modo absolutamente perceptível,
foi “gaita”.
O Pedro com apenas 3 meses.
Outro episódio revelador, não pertence à
minha memória, mas à dele. Ao escrever estas
memórias, espantei-me quando descobri, na Correspondência
da Beira que, afinal, o Pedro não frequentou a mesma
creche da Marta. Foi o Pedro que nos recordou que andou
numa pré-primária, perto da casa dos meus
tios onde, entre outras coisas, se cantavam canções
cristãs. Uma dessas canções dizia,
no refrão, referindo-se a Cristo: “tenho um
amigo que me ama”. O Pedro cantava-a, dizendo “tenho
um amigo que ainda mama”. Por esse motivo, nós
teríamos sido chamados à escola, para explicações.
Sinceramente, não me recordo deste episódio,
mas ele demonstra bem o sentido de humor do Pedro.
Tirando algumas noites mal dormidas, por mor de cólicas
ou por mor da paixão que o Pedro nutria pelas mamas
da Mila, nunca nos deu grandes problemas quando era pequeno.
Lembro-me de uma semana passada no parque de campismo, numa
altura em que a Mila tentava que ele perdesse o hábito
de mamar durante a noite; foram várias noites seguidas
de choro quase ininterrupto mas nós, armados em grandes
educadores da treta (ou da teta…), não cedemos
e o Pedro desabituou-se de mamar durante a noite. Foi este,
talvez, o primeiro trauma que infligimos ao nosso filho
mas, confesso que estávamos fartos de acordar a meio
da noite para o menino fazer de conta que mamava quando,
de facto, o que ele queria era chupar os mamilos da Mila.
O Pedro nunca gostou de chucha exactamente por isso –
sempre preferiu as mamas da mãe; e como sempre foi
um menino bem educado, também nunca chuchou no dedo.
Resultado: como todos os putos têm necessidade de
chuchar, habitou-se a chuchar no lençol da cama –
hábito que só largou por volta dos seis ou
sete anos. Apesar de bem comportado, de nunca ter feito
uma birra digna desse nome, deixava-nos ficar mal em público,
de vez em quando, como naquele dia, no comboio entre o Algueirão
e Queluz, em que passou parte da viagem brandindo o punho
ameaçadoramente e gritando “Pê-Cê-Pê!”
e “Cunhal! Cunhal!”, vá-se lá
saber porquê!… Bom, estou a ser ingénuo;
claro que todos sabíamos porquê. O Pedro estava
habituado a ver-nos, lá na casa do Algueirão,
aos gritos de “Operários e marinheiros! Unidos
venceremos!”, a propósito de tudo e de nada,
gozando com a esquerda e com a direita e, ainda antes disso,
não fui eu que fiz o Pedro posar, de punho erguido,
junto a uma inscrição do PRP?... De que estava
eu à espera?..
Uma das brincadeiras preferidas do Pedro, acompanhado mais
tarde pela Marta, era ir ao guarda vestidos e vestir roupa
nossa, após o que fazia questão de posar para
alguns dos slides mais deliciosos que nós temos.
Talvez com três anos, aí está o Pedro
com um toucado de índio na cabeça, que lhe
havíamos oferecido há pouco tempo; aponto-lhe
a máquina fotográfica e ele logo levanta um
bracito e faz uma pose majestática, como se estivesse
a fazer uma saudação índia: “Ugh!”
Noutra ocasião, ao lado da Marta, também ela
mascarada, vestido com um casaco meu, que lhe dava pelos
joelhos e com o meu boné à UDP; quando vou
buscar a máquina fotográfica, lembra-se de
pegar num cachimbo e colocá-lo ao canto da boca,
compondo um ar rufia. Sempre percebeu o gozo que estava
implícito nestas sessões fotográficas.
Na escola, também nunca deu problemas; foi saltando
de escola em escola, durante a instrução primária,
sempre com bom aproveitamento e, no liceu, também
tudo correu quase sempre sobre rodas.
Embora não tivesse dificuldade em arranjar amigos,
sempre os escolheu criteriosamente, preferindo a qualidade
à quantidade e agora está mais ou menos como
nós, com um círculo muito restrito de pessoas
com quem partilha as suas paixões.
E, de repente, aos 15 anos, tinha uma namorada…
Acho que, por vezes, fui demasiado rígido para com
o Pedro, intolerante em demasia, insistindo num rigor exagerado.
O Pedro sempre foi um bocado descuidado, desarrumado, aparentemente
desorganizado e eu demorei algum tempo a aceitá-lo
dessa maneira. Ainda hoje, que o Pedro vive na sua casa,
me faz confusão lá ir e ver o escritório
dele com inúmeros copos e canecas espalhados por
todos os lados, pratos com restos de comida, livros e discos
empilhados e uma ou outra gata passarinhando por cima daquilo
tudo, perante a passividade do Pedro.
Ainda hoje penso que a capacidade do Pedro é quase
ilimitada, mas ele não a quer desenvolver. Assim
chega-lhe e fica satisfeito com a sua pequena empresa de
design, sem ter que dar satisfações a nenhum
patrão.
E quem sou para o criticar? – eu que não passo
de um simples médico de família, quando podia
ser um Psiquiatra de nomeada, com consultório nas
avenidas novas, ou um jornalista famoso, quem sabe director
do telejornal, ou mesmo um argumentista de televisão
badalado nas revistas do jet-set. No fundo, o Pedro é
como eu e isso é que me foi difícil aceitar.
A minha rigidez para com o Pedro tem a ver, obviamente,
com a minha imaturidade mas, tudo o que posso fazer agora,
é pedir-lhe desculpa pelas vezes que lhe exigi demais,
que fui severo demais, que fui – tenho a certeza –
suficientemente estúpido para não saber parar
uma discussão a tempo. Quem me conhece, sabe que
sou capaz de argumentar, de discutir, de apresentar argumentos,
de modo a conseguir fazer vingar a minha opinião.
Hoje em dia, estou muito melhor, mas uma boa discussão
ainda me dá muito gozo. Mas, aos 20-30 anos, não
sabia parar. E recordo algumas discussões com o Pedro,
a propósito de coisas sem importância, em que
eu o massacrava com argumentos, tentando convencê-lo
do meu ponto de vista. O Pedro acabava por se calar. Acho
que não ficava convencido mas percebia que não
valia a pena discutir mais. E, no entanto, nunca me lembro
de, alguma vez, ter sido incorrecto para comigo, enquanto
eu – disso tenho consciência agora – me
aproveitava claramente do facto de ser o Pai, para “vencer”
essas discussões estéreis.
Bom, tenho que confessar que fico feliz por poder pedir
desculpa ao meu filho pelas minhas atitudes menos correctas
e só espero que essas atitudes não o tenham
marcado demasiado ou, se o marcaram, que ele já tenha
conseguido ultrapassar isso. Como dizia alguém, até
aos 25 anos, a culpa das nossas ansiedades é toda
dos pais mas, depois dessa idade, a culpa passa a ser de
nós próprios.
Então, o Pedro tinha uma namorada.
Pedro Nuno, Dalila e Pedro, no 16º aniversário
do nosso filho. É a primeira foto em que aparece
a Dalila. Lá atrás – já desterrados
na varanda, os famosos móveis Sousa Braga.
De repente, o tempo tinha passado depressa demais e o Pedro
já não era um miúdo. Quando penso nisso,
fico com uma sensação de vazio, com vontade
de tornar a viver, outra vez, a infância do Pedro,
mas com a maturidade que tenho hoje. Isto está muito
mal organizado! Quando, finalmente, temos o know-how para
sermos pais, já o nosso tempo passou; a natureza
forneceu-nos o hardware, mas o software deixa muito a desejar;
e quando, muitos anos depois, fazemos vários upgrades
e conseguimos, definitivamente, ter capacidade para sermos
pais, estamos com idade de sermos avós. Talvez seja
por isso que, depois, fazemos aos nossos netos tudo o que
nos recusávamos fazer aos nossos filhos, por acharmos
que isso os poderia prejudicar. Alguém também
disse que os avós servem para isso mesmo: estragar
os netos com mimos e, depois, devolvê-los aos pais.
Se fosse pai agora, sei que já não teria paciência
para aturar um bebé. O que era bom era ser pai aos
20 anos, como eu fui, com a maturidade que tenho agora,
mas com a disponibilidade que tinha então. Confuso,
não acham?…
A princípio, a Dalila foi apresentada como uma simples
colega, claro. Era engraçado ver o nosso filho todo
entusiasmado com uma colega. Depois, a coisa começou
a ficar mais séria e era preciso ter a famosa conversa
de homem para homem. E aquele discurso muito bonito, muito
porreiraço, que eu tenho com os meus doentes adolescentes,
com o Pedro, resumiu-se, mais ou menos, à frase:
“para não haver problemas, tens aqui preservativos!”
Frase sublinhada por algumas extrassístoles, claro.
Convenhamos que aquela frase continha, subjacente, toda
a informação necessária e suficiente:
sabemos que tens uma namorada, sabemos que vais começar
a tua vida sexual, aprovamos implicitamente e, por isso,
fornecemos-te alguns preservativos.
Mas há que concordar que, para um casal de médicos,
aquela frase representa medicina de má qualidade…
Por outro lado, ser o pai a fornecer preservativos ao filho,
pode ser considerado uma ajuda notável. Mesmo depois
de casado, era com imensa vergonha que entrava numa farmácia
para comprar preservativos! Naquele tempo, não havia
camisinhas à venda nos supermercados, nem daquelas
máquinas em que se mete a moeda e sai a camisinha.
Era mesmo obrigatório ir à farmácia.
Em Queluz, certo dia, fui a uma farmácia em que,
depois de ter pedido os preservativos com a voz mais bem
colocada que consegui no momento, a senhora que me atendeu,
virou-me as costas e foi chamar um colega do sexo masculino.
Um tipo sentia-se culpado de um crime gravíssimo
e apetecia chegar à farmácia e apresentar
uma certidão de casamento, como quem diz, eu venho
comprar preservativos mas não sou nenhum pecador,
já sou casado e tudo!…
Claro que, em 1989, ninguém podia adivinhar que a
relação entre o Pedro e a Dalila se iria desenvolver
de tal modo que deu no que deu: estão juntos desde
então.
Naquela altura, era apenas uma gracinha: o Pedro tem uma
namorada. E estávamos atentos a todos os olhares
que eles trocavam, aos sorrisos, aos silêncios. Provando,
mais uma vez, que as coincidências existem, viemos
a descobrir, alguns meses mais tarde, que a mãe da
Dalila era, também, médica de Clínica
Geral, em Palmela. Conhecêmo-la na Academia Almadense,
no intervalo do primeiro “Batman”, se não
estou em erro.
Para além deste filme do Tim Burton, houve outros
filmes, em 1989, que merecem ser referidos, nomeadamente
“Um Peixe Chamado Wanda”, com o John Cleese
e “Indiana Jones e a Última Cruzada”.
O resto foram vídeos, que eu alugava por catálogo.
Era um método como outro qualquer. Comprava um guia
com os vídeos editados em Portugal e assinalava os
que me pareciam poder ser interessantes. Apanhei grandes
banhadas, mas também vi bons filmes que, de outro
modo, me escapariam.
No que respeita à escrita, o ano de 1989 não
foi muito prolixo. Continuei a colaborar na escrita da peça
“Quem tramou o Comendador?” que, depois de muitas
vicissitudes, acabou por estrear no dia 27 de Abril.
No dia da estreia, o teatro Maria Matos estava cheio e os
aplausos não nos foram regateados. Soube bem subir
ao palco com os restantes autores e agradecer os aplausos.
Mas enfim, toda a gente que enchia a plateia tinha sido
convidada. Depois, foi um fracasso. A sala estava quase
sempre às moscas. Até ao fim de Maio, o meu
1,5% da receita de bilheteira, correspondeu a uns míseros
83 contos e, de Junho a Agosto, mês em que a peça
saiu de cena, recebi apenas 35 contos. Tive pena que assim
fosse porque acho que a peça até tinha graça;
os diálogos estavam bem construídos, o enredo
dava várias voltas curiosas e, tanto a música,
como os bailados, não eram pirosos.
Durante o resto do ano, não houve mais escrita. Só
em Dezembro, o Carlos Cruz me telefonou, convidando-me para
mais uma experiência: a colaboração
no concurso “1,2,3”, escrevendo textos para
a personagem do Zé da Viúva.
A equipa do Pão Comanteiga e do Contra-Ataque tinha
já ganho prémios pela qualidade dos respectivos
programas. Eram os “Sete de Ouro”, instituídos
pelo semanário “Sete” que, durante a
década de oitenta do século passado, era uma
referência na imprensa dedicada aos meios de comunicação
e espectáculos em geral.. Por timidez, e porque sempre
detestei as tretas dos cocktails e vernisages e festinhas
dos ricos e famosos, nunca estive presente nas cerimónias
em que esses “Sete de Ouro” foram atribuídos.
Mas fiquei irritado, quando um tal Luís de Campos
foi nomeado para “Sete de Ouro”, em 1989, pela
autoria dos textos do “Lá em casa tudo bem”,
referentes ao ano anterior. Ora, parte desses textos, eram
ainda da minha autoria. Vai daí, escrevi uma carta
para o Sete, em que dizia, a certa altura:
“O 8º, 9º, 10º e 11º episódios
(emitidos já em 1988) eram ainda da autoria do que
assina em baixo. O Luís de Campos (que eu nem conheço),
começou a escrever os episódios seguintes,
todos emitidos no decorrer do presente ano (1989). Não
está em causa a qualidade dos textos da autoria do
Luís de Campos. Admito até que os textos do
que assina em baixo sejam uma grande merda. No entanto,
a bem da informação (mas quem quer o bem da
informação?), Luís de Campos não
pode ser nomeado para o “Sete de Ouro”, como
autor de textos que não escreveu.”
Os tipos do Sete não me ligaram nenhuma, mas o tal
Luís de Campos (que eu continuo a não saber
quem era) não ganhou nada.
Ainda em 1989, o mesmo semanário Sete, a propósito
da estreia da peça, publicou uma reportagem com o
Carlos Cruz, o Mário Zambujal e o Fialho Gouveia,
em que dizia, a certa altura:
“Golo puxa golo e fica-se, então, a saber
que vão faltar dois: José Duarte, à
aventura na Serra da Estrela, provavelmente comendo queijos,
e Artur Couto e Santos, retirado em Almada de Leste, a preparar-se
para a era Gorbachev.”
Não gostei desta prosa. Escrevi outra carta:
“Artur Couto e Santos, co-autor, com José
Duarte (e os três senhores que surgem na fotografia
publicada na edição da passada semana do semanário
que Vossa Excelência superiormente dirige), da peça
“Quem Tramou o Comendador?”, vem por este meio
alertá-lo para alguns erros cometidos pela fantástica
autora do texto que rodeava graciosamente a referida fotografia.
E informa que:
1. Não se encontrava “retirado em Almada”,
como a excelente colaboradora afirmou. Nunca me retiro.
Sou uma pessoa simples: vou-me embora ou fujo.
2. Não se encontrava “retirado em Almada de
Leste”, pelas razões atrás apontadas
e devido a uma pequena questão geográfica.
Se os pontos cardeais não me enganam, Almada de Leste
deve ser na Cova da Piedade e eu moro em Cacilhas.
3. No que respeita à segunda parte da frase (“a
preparar-se para a era Gorbachev”) informa que:
a) Nunca se prepara. Vai-se arranjando….
b) Gorbachev não era – é. Para ser “Era”,
teria que grafar-se com maiúscula.
c) Não conhece Gorbachev, nem de parto, nem de longe.
Viu-o na televisão mas falava com legendas. Não
gostei e deixei de ver.
d) Nunca pertenceu ao PCP, como a retumbante colaboradora
parece dar a entender com a já citada frase, nem
quando era perigoso, nem quando era moda, muito menos agora,
que deve ser chato.
4. Informa ainda que esta é já a segunda carta
que escreve para o “Sete” no corrente ano. Pode
tornar-se um hábito. Se me vicio, não há
carteiro que vos valha.
5. Mais informa que se encontra ligeiramente aborrecido.
Em Cacilhas.”
Acho que é uma carta com alguma graça e os
tipos do “Sete” também acharam e por
isso a publicaram na semana seguinte.
Escrever cartas sempre me deu muito gozo e, às vezes,
não escrevo mais porque não cedo ao impulso.
Estou sentadinho a ler um jornal ou a ver as notícias
na televisão e, de repente, leio ou oiço qualquer
coisa idiota, e dá-me logo vontade de escrever a
desancar o gajo que escreveu ou disse tal alarvidade. Mas
depois, deixo passar esse momento e acho que não
vale a pena o tempo e a energia que ia gastar. Felizmente,
ainda há momentos em que acabo mesmo por escrever.
E digo felizmente porque, anos depois, ao reler essas cartas,
acho graça.. Ainda em 1989, fomos ver um filme do
ex-Monty Python, Terry Gilliam, intitulado “A Fantástica
Aventura do Barão”, uma loucura completa, como
é habitual nos filmes deste realizador. Gostámos
muito do filme, embora ache que não foi dos melhores
que ele fez; gostei mais, por exemplo, do “Brazil”.
Mas um crítico do Expresso, que ainda hoje continua
no activo, o Jorge Leitão Ramos, escreveu uma crítica
a desancar o filme. Fiquei pior que estragado e, aproveitando
o facto de, na altura, o director daquele jornal ser o meu
antigo companheiro de telejornal, Joaquim Vieira - o tal
que fugiu comigo no dia 25 de Novembro, quando as tropas
ocuparam a televisão – decidi escrever-lhe
esta carta:
“Exmo. Sr. Director Adjunto de o “Expresso”
Joaquim Vieira
Quim
Pá:
De vez em quando, apetece-me escrever-te. Depois, a
vontade passa-me. Enfim, coisas de FEC-ML, GDUP’s,
25’s de Novembro e cooperativas com nomes parecidos
com “Frase”, da qual possuo uma acção
bestialmente inactiva. Recordações. Assim
do género: fui colega deste gajo na RTP e agora o
fulano já é (já?) director adjunto
do Expresso. E depois? Eu já sou clínico geral
no Monte de Caparica!
Às vezes, quando o Expresso publica algum artigo
sobre o conflito médicos versus Leonor Beleza, apetece-me
escrever-te, dizendo-te que não é bem assim.
Clínicos gerais somos muitos, substituímos
os antigos médicos da Caixa e, na província,
o revolucionário Serviço Médico à
Periferia – e pouco temos a ver com as “justas
reivindicações” dos médicos da
Ordem. Só a designação “Ordem
dos Médicos” faz lembrar uma porrada de médicos,
todos ordenados. E é de ordenados que se trata. E
quem trata da saúde aos doentes somos nós.
Coisas…
Mas eis que, esta semana, vejo uma fotografia na secção
“Gente”. Lá estavas tu, muito enfiadinho
no fato completo com gravata, apertando a mão ao
sr. Aníbal António Cavaco Silva. Não
te preocupes – apertei a mão ao Dr. Soares
há cerca de dois meses e continuo de boa saúde.
E disseste qualquer coisa do género: “decorridos
15 anos ainda não percebi qual o papel dos jornalistas
numa sociedade democrática.” Tem graça:
disse uma coisa parecida em 1977, quando deixei de ser jornalista.
Claro que o papel do jornalista é o de jornal. Pouco
mais. Mas tu tens-te saído muito bem. Gosto do que
escreves. Isto é um elogio. Agora, fico bravo é
com os críticos de cinema, nomeadamente com o JLR.
Porra! O gajo ganha dinheiro para escrever a sua opinião
e eu pago 100 paus para ler a opinião dele! Há
aqui qualquer coisa que não está certa. Por
isso, decidi escrever a carta que segue em anexo.
Para ti, um grande abraço. Para ele, as linhas que
se seguem.
Exmo. Director de o “Expresso”:
Ao abrigo de um artigo qualquer da lei de imprensa, e em
nome de Terry Gilliam, que não tenho o prazer de
conhecer, venho solicitar a publicação desta
carta resposta ao pequenino naco de prosa da autoria de
JLR, publicado no Cartaz do Expresso, no passado dia 29/7.
Referia-se Jorge Ele Erre, ao filme de Gilliam, “A
Fantástica Aventura do Barão”, classificando-o
de “manifestação de inconsciência”,
“acumulação de pechisbeque”, “fantástico
e desbragado fogo de artifício”, “barroquismo
demencial”, “parafernália técnica
e incontinência narrativa”. Ora, Jota Leitão
Erre esqueceu-se de muitos adjectivos que teriam alindado
ainda mais o seu texto, como por exemplo: prepotência
exasperante e introspectiva, onirismo sumptuoso e rino-faríngeo,
imbecilidade maníaco-depressiva, concupiscência
alucinatória e purulenta e pesporrência anticonstitucional.
É pena. O estilo de Jota Ele Ramos é tão
rebarbativo que a omissão destes adjectivos lhe tiram
o brilho habitual e transformam a sua pequena crónica
num bocejo enorme, em vez da habitual eructação
a que estamos habituados.
É pena, também, que Jorge Leitão Erre
possa escrever num semanário com a tiragem do Expresso
sem ser preso ou, pelo menos, pisado no Metro.
É que o filme do Terry Gilliam dá gozo, caramba!
Gozo!
Será que Jota Ele Ramos não sabe o que é
gozar?
Parece que não.
Vejam bem que ele ia “cochilando” durante o
filme!
Será que Jota Ele Erre sofre de algum recalcamento
freudiano que o obriga compulsivamente a adormecer sempre
que o seu corpo (fonte de pecado) o puxa para o gozo?
Há tratamento para isso, sr. Jota Leitão Erre.
As suas melhoras.”
Obviamente, o jornal ignorou este dislate, o que eu já
esperava; mas, sinceramente, esperava que o Joaquim Vieira
me respondesse, nem que fosse com um cartãozinho
de visita, a enviar-me os seus cumprimentos. Longe, muito
longe, iam os tempos em que ele era militante fervoroso
da Frente Comunista- marxista-leninista (FEC-ML) e me convidou
para escrever artigos para o “25 de Abril do Povo”,
semanário revolucionário, que era editado
com o apoio da União Democrática e Popular
(UDP) mas que, no fundo, era uma tribuna do Partido Comunista
Reconstruído, organização semi-clandestina
que, segundo uma piada interna, devia ser formada por quatro
tipos e um cão.
Quando eu digo, na carta, que apertei a mão ao Dr.
Soares, referia-me àquela noite em que o Mário
Soares decidiu ir ver a nossa peça. Foi em Maio de
1989 e eu estive lá, com os restantes autores, a
receber o sr. Presidente. Foi a segunda vez que vi a peça
como espectador; ainda lá voltei com o Pedro e a
Dalila e, depois, desinteressei-me da coisa, que foi, de
facto, um fracasso.
No Natal de 1989, apeteceu-me oferecer mais um poema à
Mila, sob a forma de exemplar único.
Essa poema, que intitulei “Bastava recordar a Colmeia”,
era já uma tentativa de elaborar as minhas memórias,
razão pela qual acho que vale a pena transcrevê-lo:
“Bastava recordar a Colmeia/ mas há muito
mais...
Os teus olhos azuis e as covinhas no rosto/
O casacão rosa e azul, bamboleante/
As calças de veludo preto e a mala a tiracolo/ Aquela
tarde na cantina/
Com o teus lábios no meu pescoço/ E o beijo
na secretaria da Universidade/
E o beijo nos corredores da Faculdade de Ciências/
E todos os outros beijos/ mas sobretudo o abraço
na nossa primeira noite/
O cafezinha na Cidade Universitária/ E os arbustos
em redor do campo/
E a sala de alunos/ com os placards, atrás dos quais
prosseguimos o reconhecimento dos nossos corpos/
E o banco traseiro do 34/ O meu quarto, com o Zé
Tó em guarda/
O teu macaco preto/ As minhas mãos nas tuas nádegas
no dia 5 de Março/
Depois, à chuva, sob a tua sombrinha cor de rosa/
o Zé tirou-nos uma fotografia/
A casa da Fernanda e a consumação/ O apeadeiro
da Cruz da Pedra/
E as viagens até Queluz/ A leitura quase religiosa
do República/
As cadelinhas no Solar dos Canadianos/ O quarto do Zé/
O quarto da Paula Pires/ E todos os outros quartos que fomos
conquistando/
O nosso quarto de Queluz/ com o guarda vestido escondendo
a cama de casal/
As prateleiras de tijolo e pinho/ e a cama pequenina, com
o Pedro, em pé/
Agarrado à trave e eu a dizer-lhe que o Marcelo tinha
caído/
O quarto da Inácio de Sousa/
com o divã de abrir e fechar e a cozinha ali ao lado/
O quarto do Algueirão, com vista para as couves e
as alfaces/
O quarto-masmorra de Moimenta, com saída para o telhado/
O quarto do hotel em Londres, com casa de banho e tudo!
O quarto da tenda de campismo/ com gemidos mal contidos/
O quarto de Mourão com a secretária pesadona/
Que permitiu grandes avanços tecnológicos/
O quarto da Messe em Évora/ onde nos desforrávamos
aos fins de semana/
O quarto da Bernardo Francisco da Costa/
Onde tudo se tornou mais maduro e ainda melhor/
O quarto da nossa primeira casa/ com vista para o Tejo/
E muitos outros quartos/ sobretudo o chão da mata
da Caparica/
Ou a areia das dunas/
- era só puxar o fato de banho para o lado/
ou tirar rapidamente aquele macacão horrível/
cheio de desenhos bebâdos de Picasso -/
As descobertas/ que foram muitas e foram todas/ do sexo/
De como usá-lo, gozá-lo, desfrutá-lo,
fruí-lo/
Da política, do fascismo, da oposição/
do República e do Álvaro Guerra/
Do 25 de Abril, da democracia/
A descoberta dos livros/ o Miller, o Mário-Henrique,
o Boris Vian,
O Eça de Queiroz.../
A descoberta da música/ Shostakovitch no 2º
balcão do S. Luiz/
Beethoven, Stravinsky/ e a redescoberta dos anos 60/
Dos Beatles e da música fácil e alegre/
A descoberta do cinema/ Buñuel, Woody Allen/
A descoberta dos filhos/ A incerteza do gravindex negativo/
O medo e depois a alegria/
O Pedro a crescer entre receios e paranóias/
O Pedro a crescer, sempre a crescer/ O seu primeiro dia
de aulas/
Com aqueles olhos de criança do Biafra/ no restaurante
em Armamar/
A escola toda, o liceu quase todo/ O seu sentido de humor/
O seu namoro/ E a Marta a chegar ao Algueirão/
Muito pequenina, submersa nos teus braços/
E a Marta a crescer, sempre a crescer/
A escola toda, o liceu agora/ O ballet, o seu mau génio
– sai á mãe -/
As minhas paranóias e o modo como me ajudaste/
As tuas más disposições matinais, que
fui atenuando/
A nossa vida de casa às costas/
Benfica, Queluz, outra vez Benfica, Algueirão, Moimenta,
outra vez Algueirão, Mourão, outra vez Algueirão,
Almada/
A nossa profissão às costas/ Tudo às
nossas costas/ e afinal até foi bom/
Até é bom/
As tuas refeições, apesar de praguejares/
a tua picata, a galinha no barro/
A tua capacidade para fazeres contas/ O teu grãozinho
de loucura que permite que o meu pedregulho role aquilo
que deve rolar/
Ver-te limpar o pó mordendo a ponta da língua/
Fazer as palavras cruzadas na sanita/ Tricotar camisolas
para a família toda/
Aturar trinta doentes com boa disposição/
Dormir placidamente com uma réstia de luz no rosto/
Beijar-me o corpo todo com amor e imaginação/
Ler um policial até às três da manhã
porque não gostas de deixar nada a meio/
As tuas monumentais mamas quase sufocando o Pedro e Marta/
Ver-te num banho de imersão, cheia de espuma/
Apalpares-me no elevador/ cortares-me o cabelo à
escovinha/
Refreares o orçamento e acabares por comprar sempre
mais/
Mudares os móveis todos numa manhã/ Ver-te
regar as plantas/
Ajudar os putos na matemática/ Conduzir com as mãos
crispadas no volante/
Beijares-me antes de eu transpor os portões do Regimento
das Caldas/
Subir a avenida ao domingo de manhã para comprar
pão quente na Socopal/
Deitadinhos na cama a ver um vídeofilme/
Sentados na sala a rever o nosso ficheiro/
Bastava recordar a Colmeia mas existem tantos pequenos nadas.../
E, no entanto, após quase 17 anos, só sou
capaz de dizer/
Que te amo/
Porque sim.”
O ano de 1989 ficou ainda marcado pelo Pátio Alentejano.
Era um restaurante simpático, na Costa da Caparica,
onde fomos pela primeira vez, convidados por um laboratório
e eu apanhei a tal piela, para festejar o facto da Mila
ter uma mamografia sem alterações. Nesse ano,
voltámos lá a 19 de Janeiro, para festejar
o nosso 16º aniversário de casamento e conseguimos
jantar apenas por cerca de três contos e ainda lá
fomos a 18 de Março, por altura do meu 36º aniversário.
No que respeita aos estudos, os nosso filhos continuavam
a cumprir. O Pedro passou para o 11º ano e até
teve um cartaz sobre o Dia Mundial da Árvore exposto
na Câmara Municipal. Passava os dias com o seu grande
amigo da altura, o Pedro Nuno e, claro, com a Dalila. A
Marta, por seu lado, passou para o 8º ano e tinha na
Ana Teresa, a sua companheira de eleição,
passando alguns fins de semana com ela, para além
de nos começar a chatear a cabeça, começando
a chegar tarde a casa porque ia a várias festas de
aniversário dos variadíssimos colegas com
quem se dava bem, nomeadamente um tal Bernardo. Enfim, o
Pedro ter uma namorada aos 15 anos, era normal mas a Marta,
aos 12, começar a namorar, já nos fazia alguma
confusão. Coisas do crescimento…
Como já disse, a Marta passou rapidamente das Barbies
para a adolescência. Nessa altura, os grandes heróis
das adolescentes eram o Tom Cruise e a Madonna. Em Setembro,
a Marta comprou um aquário e dois peixes, a quem
deu exactamente esses nomes. Mas, azar dos azares, logo
no dia seguinte, o Tom Cruise não resistiu e morreu
afogado, que é uma coisa que também acontece
aos peixes. Aproveitei o facto de a Marta estar a passar
um fim de semana com a Joana, para lhe comprar um aquário
maior e mais uma série de peixinhos. Mais uma série
de seres vivos começaram, então, a viver connosco,
para além do Gin, da Pantufa e das baratas que, felizmente,
decresciam a olhos vistos, incompatibilizando-se, definitivamente,
com as centenas de armadilhas que eu lhes ia colocando pela
cozinha toda.
Para além do Tom Cruise e da Madonna, outra grande
paixão da Marta continuava a ser o ballet. Na festa
da Academia desse ano, dançou o Can-Can e estava
giríssima, com o vestido com folhinhos e a liga na
perna.
Marta, Catarina e Ana Teresa, vestidas para dançar
o Can Can, num espectáculo no Clube de Campismo de
Almada, em Agosto de 1989.
Pronto. Estávamos mesmo com dois filhos adolescentes!…
E esse facto fazia com que, nas férias, fosse cada
vez mais frequente irmos sozinhos à praia. E como,
em 1989, o tempo de praia até escasseou, aderimos
à moda de então, o Trivial Pursuit e passámos
grande parte das férias desse ano a jogar. Tanto
jogámos que depressa nos fartámos…
No dia 12 de Maio, decidi deixar de fumar.
Aguentei 24 horas.
E não vale a pena falar mais sobre isso.
Antes do fim do ano, ainda conseguimos juntar dinheiro para
comprar um carro novo. O 127 já estava com uns anitos
valentes, já tinha aguentado duas mudanças
de casa e tinha chegado a altura de ser substituído,
antes que começasse a dar problemas graves.
Como o dinheiro não abundava – como habitualmente
– optámos por um Fiat UNO, dos mais fraquinhos.
No dia 3 de Novembro, a troco de 1 300 contos, ficámos
com o UA-84-11 que, para nós, valia tanto como um
Mercedes topo de gama. E o engraçado, é que,
pelo 127, a Fiat ainda nos deu 430 contos, mais 100 contos
do que ele nos custou. Pela primeira (e única) vez,
ganhava dinheiro com a troca de um carro!
O nosso terceiro Fiat, um Uno 45. Os nossos filhos exultaram
– contentavam-se com pouco...
E como sempre fomos pobrezinhos, fomos todos para o parque
de estacionamento da praia da Rainha, tirar fotografias
ao carro novo e, no Natal desse ano, o Pedro ofereceu-me
um desenho, no qual fez uma caricatura minha, a bordo do
Uno, cabelos ao vento, como se estivesse a conduzir um verdadeiro
bólide.
Tinha um filho desenhador – e com namorada…
Uma família feliz, no 13º
aniversário da Marta. Eu, a Joana, a Bela, a Marta
e a Luisa, a Inês, a Arminda, o Sousa e o Pedro. A
Mila fotografou.
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