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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


37. A exclusividade (1990)

Durante o ano de 1989, os médicos fizeram vários dias de greve, protestando contra a política do Governo de Cavaco Silva, mais especificamente contra a política de Saúde da ministra Leonor Beleza.
Pela primeira vez desde há muitos anos (desde sempre?), os médicos pareciam estar unidos. Talvez não soubessem muito bem o que queriam, mas sabiam que não queriam aquela política – ou antes, aquele estilo de política, arrogante, tipo “eu é que sei e tomo as minhas decisões sem precisar de perguntar a opinião dos médicos”. Se é certo que não se faz uma boa política de Saúde sem pensar nos anseios dos utentes, também é certo que, sem os médicos, não se faz coisa nenhuma. O pior, é que os médicos também não sabiam que política queriam, afinal.
Nos primeiros dias da década de 90, Leonor Beleza foi-se embora e, em Maio, entrou em vigor o regime de exclusividade. Teoricamente, esse regime significava um avanço – os médicos podiam optar por trabalhar apenas nos Serviços de Saúde do Estado, deixando a Medicina privada e seriam devidamente compensados por essa opção. Acabaram por aderir à exclusividade apenas aqueles médicos que, ou já não faziam Medicina privada – como era o nosso caso – ou os que tinham uma clínica privada fraquinha, com poucos clientes. De facto, a compensação monetária que o Estado deu, em troca da exclusividade, foi pouco mais que ridícula. Em Abril de 1990, ganhávamos cerca de 160 contos por mês – e podíamos fazer Medicina privada à vontade, caso quiséssemos; em Maio, quando aderimos à exclusividade, passámos a ganhar cerca de 250 contos. Por outras palavras, o Governo dava, aos médicos, cerca de 90 contos mensais para eles só trabalharem para o Estado. Naquele tempo, uma consulta privada de Clínica Geral custava, em média, cinco contos; qualquer médico que fizesse, apenas, cinco consultas dessas por dia, ganhava mais que esses 90 contos em apenas uma semana. Acrescente-se que, até eu, com duas rábulas do Zé da Viúva, ganhava 100 contos – e escrevia quatro dessas rábulas, para o concurso “1,2,3”. Além disso, para se poder aderir à exclusividade, bastava preencher uma declaração de intenções em que, para além do médico se comprometer a não exercer mais nenhuma actividade remunerada, para além da Medicina estatal (a não ser os direitos de autor), apresentava, também, um horário de trabalho que contemplava um total de 42 horas semanais, distribuídas por Saúde de Adultos, Saúde Infantil, Saúde Materna, Planeamento Familiar, Visitas Domiciliárias e consultas de urgência. E o que aconteceu? Médicos que, como nós, já trabalhavam imenso, passaram a trabalhar ainda mais; por outro lado, médicos que, praticamente, só faziam consultas de manhã, que sempre estabeleceram barreiras à acessibilidade dos seus utentes, que nunca se preocuparam em fomentar as consultas dos chamados grupos de risco, que nunca se mostraram disponíveis para fazer domicílios, preencheram o tal papelinho e ficaram, também, com a exclusividade, ganhando mais pelo pouco que já produziam.
Enfim, a ideia da exclusividade foi (e é) uma boa ideia. Mas, neste caso, quem falhou foram os dirigentes intermédios, os directores dos Centros de Saúde, nomeadamente, que deixaram que esta situação se mantivesse. Com efeito, o regime de exclusividade pode ser retirado, caso não haja cumprimento por parte do médico, mas isso nunca aconteceu, os directores nunca tiveram coragem para moralizar o sistema.
Claro que, para nós, o regime de exclusividade favoreceu-nos bastante. Como casal, passámos a ganhar mais 180 contos por mês e eu continuava a poder escrever os meus textos e ser pago por eles, já que uma das poucas excepções previstas pela lei da exclusividade eram, exactamente, os direitos de autor.
Falei há pouco da incapacidade dos dirigentes intermédios para fazer vingar a ideia da exclusividade. Numa altura em que uma boa percentagem dos médicos de família aderiram à exclusividade, e considerando que esses médicos, então, tinham uma média de idades rondando os 35 anos, isto é, no auge das suas criatividade e energia, esses dirigentes não souberam mobilizar os médicos para cumprir as exigências da exclusividade, aproveitando o momento para pedir, em troca do aumento do ordenado, um aumento da produtividade. E o que se passou foi que muitos médicos continuaram com listas abaixo dos 1 500 utentes, nomeadamente nas grandes cidades, enquanto nos subúrbios e na província, começava já a assistir-se a uma desesperante falta de médicos. Sei que, por exemplo, em Lisboa-cidade, muitos médicos de família continuaram ( e continuam) com listas de menos de mil utentes, e sem fazerem consultas de Saúde Infantil, Saúde Materna ou Planeamento Familiar. Mesmo no concelho de Almada, havia (e continua a haver) grandes assimetrias. Enquanto os médicos do Monte de Caparica sempre tiveram listas muito superiores aos tais 1 500 previstos na lei (neste momento, eu tenho 1 877 utentes inscritos na minha lista), há médicos que continuam, mais de dez anos após o início da exclusividade, com listas que ainda não atingiram aquele número. A lei da exclusividade podia ter sido aproveitada, por exemplo, para deslocar profissionais, isto é, só conceder a exclusividade a quem provasse que tinha, de facto, 1 500 utentes e a quem fizesse, de facto, todo o tipo de consultas que constam da área da Clínica Geral. Talvez assim, alguns médicos, para obterem a exclusividade, aceitassem ser colocados noutras Unidades de Saúde mais carenciadas. Neste momento, por exemplo, com estes mesmos médicos a rondarem os 45-50 anos, continuamos, no Monte de Caparica, com listas superlotadas e com cerca de quatro mil utentes sem médico, enquanto outros colegas, em Almada, por exemplo, continuam, calmamente, com listas muito mais pequenas. E agora, dez anos depois, quem consegue deslocar médicos de uma Unidade para outra?
Os directores dos Centros de Saúde até promoveram actividades “falsas” para encher as 42 horas exigidas pela lei.
Eu, por exemplo, que tinha uma lista bem preenchida e que necessitava de mais horas assistenciais para aumentar a oferta de consultas aos meus utentes, acabei por ser nomeado coordenador do chamado Programa de Informação e Orientação dos utentes, uma treta que servia para me justificar mais duas horas semanais, que dedicava a fazer cartazes em que se informavam os utentes do horário das consultas. Não digo que esta informação não seja importante – mas convenhamos que um médico é mais necessário para ver doentes e não para fazer trabalhos manuais. Eu não precisava deste programa para justificar as 42 horas; infelizmente, tinha, já naquela altura, cerca de 1800 utentes, muitas crianças, muitas grávidas, muitos idosos necessitados de domicílios. Mas muitos outros colegas conseguiram “encher” as 42 horas semanais com programas de educação para a saúde, exposições no Dia Mundial da Diabetes, visitas às escolas da região e outras actividades que, na minha opinião, são da área da Saúde Pública, que tem os seus próprios especialistas. Os médicos de Clínica Geral devem é ver doentes! E esta é outra raivinha que eu tenho: embora se tenha generalizado a expressão “médico de família”, sou muito mais a favor da designação “clínico geral”, como se usa na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. “Médico de família” é um conceito sul-americano (argentino, acho eu), muito bem recebida no Canadá (que é um país que não existe) e importado alegremente pelos portugueses. Médico de que família quando, por vezes, a família é constituída apenas por uma pessoa ou quando cada membro da mesma família tem um médico diferente? É uma grande treta, que hei-de desmontar noutro capítulo…
Resumindo, a lei da exclusividade poucas mudanças trouxe. Os médicos que já trabalhavam muito, continuaram a trabalhar muito e os outros, os que trabalhavam pouco, assim continuaram.
No entanto, a passagem à exclusividade produziu, em mim, uma mudança importante: finalmente, sentia-me razoavelmente remunerado pelo meu trabalho como médico e começava a pôr em causa, com mais acuidade, o meu trabalho como autor de textos.
O concurso “1,2,3” foi a minha experiência de 1990. O Carlos Cruz já tinha feito, acho eu, duas séries do concurso e, para a 3ª série, convidou-me a mim e ao José Duarte para escrever os textos, ressuscitando a personagem do Zé da Viúva. Semanalmente, entre Fevereiro e Julho, passava uma tarde em casa do Zé Duarte, a escrever diálogos mais ou menos patetas, que seriam interpretados pelo Carlos Cruz e o Carlos Cunha. Era mais divertido estar com o Zé do que escrever os textos. Riamo-nos muito mais das piadas que inventávamos e que não ousávamos escrever do que das coisas que, finalmente, acabávamos por pôr no papel. O “1,2,3” era um concurso para a família ver – os textos não podiam ser muito ousados ou demasiado absurdos. Mas enfim, eram 50 contos por semana – não se podiam deitar fora.
Ou podiam?
As dúvidas que já tinha tido quando escrevia as patetices para os programas do Isidro, voltavam a surgir. Confesso que o dinheiro falava mais alto e fui escrevendo, rotineiramente, aqueles diálogos. Cheguei a fazer uma espécie de matriz, do tipo:
- fala o Cruz
- fala o Cunha
- fala o Cruz
- o Cunha diz “o sr. Cruz está equivacoado!”
- fala o Cruz
- o Cunha diz “as ideias vêm no ar e eu já estou a agarrá-las!”
- fala o Cruz
- o Cunha diz: “avancemos sem medos!” e começa a cantar o fadinho final.
O desencanto em relação aos textos era tão grande que, pela primeira vez, não guardei os originais. Tenho os diálogos por aí, algures, gravados em vídeo, mas nunca mais os revi. E, no entanto, o “1,2,3” foi o programa televisivo em que colaborei que mais sucesso teve, tendo chegado aos 80% de audiência (claro que não havia SIC nem TVI…)
Mas tenho que confessar que a massa que ganhava me sabia muito bem e, talvez por isso, adiei por mais alguns anos a decisão de deixar de escrever graças avulsas para programas mais ou menos patetas.
A massa que ganhei deu, por exemplo, para oferecer ao Pedro (e a mim, claro), quando ele fez 17 anos, uma câmara de vídeo Sony, que me custou 170 contos. Já não precisava de pedir a câmara emprestada ao Zé Duarte para gravar as festas de ballet da Marta e as macacadas que inventávamos cá em casa.
Mas ainda foi com a câmara do Zé, que o Pedro, a Dalila e o Pedro Nuno, gravaram um trabalho sobre o Descartes, para ser apresentado na escola, e que estava um mimo de graça e criatividade.
Já no princípio do ano, o Pedro, a Dalila e alguns colegas tinham montado, na escola, um exposição muito engraçada, a que intitularam Expo Freud e que era, basicamente, uma coisa que actualmente se designaria como instalação multimédia, já que tinha música ambiente (Vangelis e Oldfield, claro), iluminação a preceito, decoração a preto e vermelho, fotografias, objectos, desenhos, pinturas. A Expo Freud foi um sucesso lá na escola. Tínhamos um filho artista. Definitivamente.
A Marta, sempre mais prática, também se destacava na escola. Juntamente com a Ana Teresa, sua colega de estudos, de ballet e de alguns fins de semana, entrou num concurso inter-escolar e chegou às meias-finais, que decorreram numa escola da Amora, onde foram dançar o “Rock around the clock” e responder a perguntas de Geografia, uma mistura certamente explosiva, pelo menos a avaliar pela excitação das miúdas, que eu não assisti ao concurso propriamente dito.
Era a “fase dança jazz” da Marta. Um pouco farta, talvez, do ballet clássico, a Marta inscreveu-se, também, na dança jazz.


A Marta, com 14 anos, no aldeamento da Bemposta, Algarve, onde passámos uma semana, em Agosto de 1990.

Começou a vir ao de cima essa tendência da Marta – não ser capaz de estar quieta: a escola e o ballet ocupavam-lhe o ano lectivo mas, quando chegavam as férias grandes, ela não parava – foram aulas de natação, de francês na Alliance, de inglês no Cambridge. Parada é que não. Talvez por ter começado a ir para o infantário logo com três meses, cedo começou a habituar-se a levantar o rabo cedo da cama; nunca foi preciso chamar a Marta, de manhã e, que eu me lembre, nunca chegou atrasada à escola.
Os cachets da escrita deram, também, para a compra de mais uma aparelhagem; nesse ano, foi um conjunto da Sony e aconteceu mais uma rotação de aparelhagens: o meu conjunto Pioneer foi para o quarto do Pedro e o Sanyo do Pedro foi para o quarto da Marta. E deram ainda para mais uma semana (a última) no Algarve e para a compra do primeiro computador pessoal a sério. Era um Schneider Euro XT, com uma memória muito curtinha que, juntamente com a impressora e o monitor, custou a fortuna de 322 contos. Inacreditável. Ao câmbio actual, esses trezentos contos valeriam, pelo menos, o dobro e com 600 contos, hoje em dia, o computador que eu comprasse havia de ser uma bomba. Graças a um processador de texto chamado Ventura, comecei a deixar de escrever à máquina. O Ventura, para quem não se lembra, tinha a particularidade de só fazer o til e o acento circunflexo, por exemplo, se carregássemos no “control” e numa sequência de três algarismos – alguém se lembra?… Era engraçadíssimo escrever, por exemplo, “cão” e ter que teclar “c”, “control”, “123”, “a” e “o”. Se um tipo se esquecia de teclar “control”, surgia “c123ao”, em vez de cão.


O Pedro, com 17 anos, também na Bemposta.

Foi, finalmente, com o pilim ganho com os diálogos do Zé da Viúva, que comprámos duas estantes para guardar os nossos livros. Foi o fim da estante de aparite, que nos perseguia desde 1974. Quando fomos viver para o nosso mini apartamento da Rua Inácio de Sousa, em S. Domingos de Benfica, mandámos fazer uma estante com três portas em baixo e várias prateleiras em cima. Nessa estante de aparite, fomos guardando os nossos dossiers, caixas de arquivo, caixas de slides e os livros, que foram aumentando ao longo dos anos. Era um caixote com cerca de um metro e setenta de altura por metro e meio de comprimento, que fomos pintando de várias cores, conforme nos dava na cabeça. Às tantas, fartos de tintas, forrámos parte da estante com papel autocolante colorido. Foi uma moda, esse papel. No tal apartamento, no quarto do Pedro, tínhamos um guarda vestidos de mogno, que veio da casa dos meus pais. Era um móvel austero, de linhas direitas, demasiado formal para o nosso gosto. Não demorou muito tempo até que a Mila pegasse em papel autocolante colorido, recortasse grandes pétalas e formasse enormes malmequeres nas portas do guarda vestidos.
A estante de aparite, que já estava desterrada numa das varandas da nossa casa, servindo apenas para arrumações secundárias, tornou-se obsoleta com a chegada das duas estantes, estilo inglês, elegantes e com portas de vidro, para que os livros não apanhassem pó. Tinha chegado o fim da velha estante. Mas como a sacana era maciça e não cabia nos elevadores, nem pensar em ir pelas escadas abaixo com o mamarracho. Portanto, resolvi aquilo “à Artur”. Peguei no martelo e no serrote e destruí a estante à cacetada. Fiz o mesmo com o velho móvel da Mafalda, o tal que construímos, no Algueirão, quando tínhamos a mania que éramos auto-suficentes e nos armávamos em horticultores, marceneiros, jardineiros e ofícios correlativos.
E já que falei em livros, os policias da colecção Vampiro continuavam a dominar as minhas compras, embora em 1990 também tenha descoberto o Milan Kundera, comprando “A Valsa do Adeus”, “A Imortalidade” e “A Brincadeira”, além do inevitável “A Insustentável Leveza do Ser”. A Patrícia Highsmith continuava em alta, com “Águas Profundas”, “Sereias num Campo de Golfe”, “As Duas Faces de Janeiro” e “Assassinos de Estimação”.
No que respeita a discos compactos, eram cada vez mais. Transcrever a lista seria fastidioso, mas sempre digo que fui tentando compensar os anos em que não tinha dinheiro para comprar os LP que gostaria de ter comprado; assim, comprei todos os discos compactos dos Beatles, claro, o “Dark Side of the Moon”, dos Pink Floyd, os “Greatest Hits” dos Blood, Sweat and Tears, o “Snowgoose”, dos Camel, discos dos inenarráveis Creedence Clearwater Revival, o “Thick as a Brick”, dos Jethro Tull, que me fez recordar o sabor da cerveja preta, bebida em canecas de barro, em casa do Zé Tó, muitos anos antes, “Small Change”, “Nighthawks at the Dinner”, “The Heart of Saturday Night”, todos do Tom Waits, e ainda discos do Sting, McCartney, David Bowie, Alan Parsons, Rolling Stones, para além de vários discos da chamada música clássica. Ia a caminho, alegremente, dos duzentos discos compactos.
Quanto a filmes, para além de continuar a ver vídeofilmes por catálogo, as idas ao cinema, cada vez mais raras, foram todas para ver os chamados blockbusters: “Caça ao Outubro Vermelho”, “Dick Tracy”, “Assalto ao Aeroporto” e pouco mais. Por esta altura, já tinha desenvolvido uma boa dose de anticorpos contra a maioria do cinema europeu, sobretudo aquele que se caracteriza por filmes chatos e monótonos, com som dessíncrono; cada vez me faltava mais a paciência para ver longos planos, com a câmara fixa e dois actores a olharem para o infinito, proferindo monossílabos com os lábios fechados ou mexendo a boca, sem som.
No princípio de 1990, tive uma gripe, o que era algo de raro. Tirando as extrassístoles, as crises de pânico e a hipertensão, sempre fui um tipo muito saudável. No que respeita a gripes e constipações, até costumava brincar, dizendo que era imune a essas coisas porque bebia gin tónico todos os dias, e o quinino da água tónica seria o profiláctico. Mas, nesse ano, o sacana do vírus apanhou-me e deixou-me uma lassidão que me deitou abaixo. Se não me engano, só meti atestado por doença duas vezes, em 25 anos de carreira. Às vezes, dá-me uma raiva que fico mudo e surdo! Dou baixa a doentes por causa de pingo no nariz, cera nos ouvidos, ar nos intestinos e, depois, quando sinto algum mal estar, sou incapaz de dar baixa a mim próprio. E, quando me sinto mal, ou há-de ser no fim de semana, para não faltar ao serviço ou, se for durante a semana, nunca acho que seja suficiente para faltar ao serviço. Tudo isto por causa da minha educação judaico-cristã, com laivos de marxismo-leninismo. E aí vou eu, mesmo com cólicas, ou o furúnculo na virilha, ou ligeiramente febril, para o Monte de Caparica, dar baixa a um bando de preguiçosos que, por uma unha ligeiramente encravada, uma hemorróida minúscula ou, simplesmente, cansaço, vêm pedir baixa!
Para além da gripe de 1990, as extrassístoles mantinham-se, embora controladas pelo Rytmonorm. Nesse ano, decidi consultar a Professora Doutora Celeste Vagueiro, eminente cardiologista, conhecida pelos seus estudos na área da arritmologia. Marquei consulta para o seu consultório privado, sem revelar que era médico. Aguardei, calmamente, na sala de espera, acompanhado pela Mila, claro. A colega foi muito simpática, observou-me, auscultou-me, mediu-me a tensão arterial, que estava obviamente alta, e aconselhou-me a deixar de fumar (pois!). Foi ela a primeira a falar-me da possível relação entre aerofagia e extrassístoles. Eu já tinha percebido que havia uma relação estreita entre os dois fenómenos: sempre que tinha o estômago ou os intestinos cheios de gases, as extrassístoles aumentavam. Que fazer? Comer mais arroz, desistir da cerveja e de outras bebidas gasosas, como a água tónica, e outras medidas igualmente interessantes. Não segui nenhum dos seus conselhos. No entanto, deixei de comer feijão e grão (grande estúpido!) e comecei a mastigar umas pastilhas de Aero Om, a ver se diminuía os gases. Fui fazer novo ecocardiograma ao Hospital de Santa Maria, que era normal e continuei com a minha vida, engolindo o Rytmonorm, apesar de ter começado a tomar consciência de que a situação não podia continuar assim para sempre. O problema é que todos os estudos demonstram que os anti-arrítmicos em geral têm, como um dos efeitos secundários possíveis, a génese de arritmias irreversíveis e, logicamente, a morte. É irónico, mas é verdade: um medicamento que se toma para combater a arritmia, pode provocar uma arritmia ainda mais grave. E eu, que tinha uma arritmia benigna, com um coração saudável, ao tomar aquela droga, arriscava-me a provocar uma arritmia grave e irreversível. Mas, naquela altura, era impensável deixar de tomar o Rytmonorm - eu não conseguia viver com as extrassístoles. Apesar dos anos de experiência, apesar de já ter percebido que as crises de extrassístoles acabavam por passar sem deixar sequelas, o que é certo é que, sempre que tinha uma crise, não conseguia deixar de entrar em pânico. E a experiência anterior era tão dolorosa, que eu preferia continuar a arriscar-me ao tomar o Rytmonorm, do que deixar as extrassístoles seguirem o seu curso.
Quanto a deixar de fumar, a vontade continuava a ser pouca. A Mila, no entanto, continuava a fazer tentativas. Atacada, todos os Invernos, por infecções respiratórias difíceis de controlar, fez mais uma tentativa em Novembro desse ano. Esteve uma semana sem fumar mas andava tão irritada que até a Marta – que sempre nos estimulou a deixarmos o tabaco – acabou por lhe pedir que fumasse um cigarrito, a ver se se acalmava.
O romance entre o Pedro e Dalila continuava a desenvolver-se e fomo-nos habituando a ter mais uma adolescente cá em casa. Aliás, era já costume os amigos dos nossos filhos acamparem na nossa casa; era muito raro que o Pedro ou a Marta fossem para casa dos amigos, talvez porque, cá em casa, não havia plásticos por cima dos tapetes nem cobertas a tapar os sofás e as coisas eram mesmo para ser usadas por todos.
E como o Pedro já começava a ter idade para ter juízo, achámos que ele precisava de uma mesada mais consentânea com a sua condição de jovem a frequentar o 12º ano de Arte e Design e com namorada. Pedimos-lhe que calculasse quanto dinheiro seria justo que lhe déssemos, por mês, de modo a que incluísse tudo, mesmo os gastos escolares. Respondeu-nos com este texto:

“Caderno reivindicativo nº 654738/ 65637 – 90
Vem este documento listar as necessidades económicas mensais (no acordo nº 4536/6473+267=647 de 1778, celebrado entre o patronato e o concelho permanente de concertação social), do indivíduo nº 10035588, de 11-06-1973 (B.I. de A. I. De Lisboa (3-06-1988) caduco em 03-11-1993). Este documento foi elaborado, com base no grau de inflação nacional no mês de Setembro do ano de 1990, por conceituadas empresas de estatística, nacionais e internacionais.
Descrição:
Alínea 1) (Na conformidade do artigo 345/4-78 da lei de base dos transportes). Necessidade de aquisição do passe mensal 012 (da empresa nacional R.N.) – 2275$00 (com acréscimo de valor desconhecido, para a aquisição do cartão de passageiro)
Alínea 2) (Dentro da lei nº 342/4-76, do Ministério da Agricultura e Pescas). Aquisição de bens comestíveis no valor de 2000$00 (ou, em opção, 1000$00).
Alínea 3) (Segundo os preços base da editora Meribérica). Compra de uma edição da revista “Selecções BD” por mês, ao preço de 600$00.
Alínea 4) Compra de material gravável e/ou audível, segundo sugestão do patronato, o equivalente a ½ disco compacto, num mês,, ou seja, 1600$00.
Alínea 5) (Criada com a consulta especial do Sr. Steven Spielberg) Idas ao cinema e/ou aluguer de vídeocassetes, no valor de 1000$00 (ou, em alternativa, 500$).
Alínea 6) (De acordo com a lei de base nº 3426/635-3200 A.C., do Ministério dos Negócios Estrangeiros). Revelação de um rolo fotográfico, refª 135/36, a cores, num mês, 2070$00 (preço de Julho de 1990), ou, em alternativa, 1035$$00.
Alínea 7) (De acordo com o Ministério da Cultura e com o Exmo. Sr. Vítor Corleone) Aquisição de material de desenho, extra escolar, no valor equivalente ao de três (3) lápis refª 999-Prismalo I, da marca suíça, Caran d’Ache, 300$00.
Assim se conclui que a quantia a ser entregue, deveria ser, em caso de acordo com o patronato, de 9845$000, com um pequeno acréscimo de 155$000, para arredondar as contas.”

Quem pode resistir a uma coisa destas?
Claro que o caderno reivindicativo foi aprovado pela entidade patronal, neste caso, nós e o Pedro passou a receber uma mesada, a qual administrava a seu belo prazer e nunca lhe perguntámos onde gastava o dinheiro. Por nossa conta, ficava apenas a cama, a mesa e a roupa lavada. E, quase sempre, era a Mila que tomava a iniciativa de comprar umas calças ou uma camisa para o Pedro. Ao contrário da Marta, que sempre gostou de comprar roupa, o Pedro, só quando pressionado é que comprava alguma coisa nova. Outra diferença bem notória entra os dois irmãos: o Pedro raramente pedia uma coisa; às vezes, era preciso insistir com ele para perceber se queria mesmo isto ou aquilo. Pelo contrário, a Marta nunca hesitou em pedir.
Naquela altura, a Marta tinha 14 e o Pedro, 17 anos e, embora tivessem gostos e hábitos muito diferentes, davam-se muito bem; nesse ano, por duas ou três vezes, foram com os amigos almoçar a um restaurante italiano que estava na berra, o La Traviata; conversavam muito, combinavam coisas juntos e – sempre que a avó Rita ia passar uns dias a casa da Bela, o que era cada vez mais frequente – gostavam de tomar conta da casa e até nos faziam o almoço de vez em quando. Neste ponto, o privilegiado era sempre eu, que continuo a gabar-me de não saber sequer estrelar um ovo ou descascar uma laranja. Como filho primogénito, com uma mãe e uma avó em casa, nunca tive necessidade de fazer nada na cozinha – aparecia sempre tudo feito, da simples sandes de fiambre ao mais complexo cozinhado. E o meu pai até gostava de cozinhar e, aos domingos, fazia questão de ser ele a confeccionar determinados pratos. Mas eu, não. Pelo contrário, a Mila desde os 9 anos que cozinhava. Quando nos casámos, a Mila tomou conta de mim, no que respeita, também, à alimentação; habituada que estava a cozinhar, nunca se importou de ser ela a tratar desse departamento. E eu encostei-me… Mais tarde, sempre que a Mila estava de Banco, quem me fritava as batatinhas e grelhava o bife, era o Pedro ou a Marta. Encostei-me, mais uma vez…
Como disse, começou a ser frequente a avó ir passar uns dias a casa da Bela. A minha irmã, cada vez mais íntima da Marta, percebia perfeitamente que o chamado choque de gerações estava a tornar-se gradualmente mais difícil de ultrapassar e fazia-nos o favor de levar a avó, de vez em quando. Era uma maneira de amenizar o clima que, por vezes, andava um pouco pesado cá por casa, com os conflitos entre a avó e a neta e de, ao mesmo tempo, arejar um pouco o espírito à avó, cada vez mais fechada em casa, por mor dos seis andares e do elevador que a separava da rua.
A decisão quanto ao futuro da avó Rita tinha que ser tomada em breve.
O “1,2,3” terminou em Julho e, durante vários meses, não escrevi graçolas nenhumas.
Aproveitámos o tempo livre para pintar a casa praticamente toda, incluindo as varandas e para deitar fora toneladas de lixo. E não foi só a estante de aparite, de que já falei; outro ícone dos nosso primeiros anos de vida em comum foi, também, para o lixo; refiro-me ao tampo da mesa redonda que havíamos comprado no Braz e Braz, quase vinte anos antes e que foi resistindo às várias arrumações e limpezas; não resistiu, no entanto, ao início da década de noventa e foi mesmo para o lixo. É espantoso como vamos acumulando lixo ao longo da nossa vida e, sempre que decidimos fazer uma limpeza profunda à casa, acabamos por encontrar montes de coisas que não nos interessam para nada e que já nem sabemos por que raio é que foram guardadas. Os brindes dos laboratórios, por exemplo: isqueiros, canetas, pisa-papéis, blocos, pastas, calculadoras de bolso, bolas de praia, cinzeiros, objectos decorativos de gosto duvidoso, lanternas, e muitas coisas indizíveis – hoje em dia, já nem trago nada disso para casa; fica no meu gabinete e, na consulta de Saúde Infantil, distribuo a tralha pelos putos, que saem da consulta sempre muito satisfeitos; mas, no princípio, trazíamos aquilo para casa, na esperança de que os nossos filhos achassem alguma graça à tralha; e eles até achavam durante um dia ou dois mas, depois, as coisas iam-se acumulando até que chegava o dia da tal limpeza profunda.
Depois de uma dessas limpezas, entrego-me, quase sempre, a uma experiência interessante: vou despejar o lixo ao contentor que está junto à entrada do prédio e, depois, cronometro o tempo que o lixo lá fica até que apareça algum vizinho dos que não desperdiçam nada e andam sempre à cata de coisas interessantes que os outros deitam fora. Surpreendo-me quase sempre. Por vezes, nem dá tempo a que eu volte para casa; os trinta segundos que o elevador leva a subir seis andares é o suficiente: quando vou à janela, já lá não está o que deitei fora. No aproveitar é que está o ganho… O tampo da nossa velha mesa, em fibra de vidro, foi um êxito; desapareceu em segundos.
Suspeito que há uma espécie de grupos de detecção e vigilância, formados por vizinhos, sempre à espreita, trabalhando por turnos. Quando alguém vai deixar, junto ao contentor, nem que seja um velho colchão esbarrondado e cheio de manchas de origem duvidosa, o grupo de detecção e vigilância entra em acção rapidamente e saca o traste, guardando-o em local seguro; depois, em assembleia, os trastes devem ser leiloados entre os vizinhos associados.
Bem hajam…
No Natal de 1990, tive uma súbita inspiração e escrevi uma dúzia de poemas para oferecer à Mila, em mais um livrinho de exemplar único. Gosto muito de alguns deles e acho que vale a pena transcrever alguns – até porque todos estes livrinho de exemplar único nunca foram lidos por mais ninguém – a não ser por nós os dois – e têm estado, todos estes anos, religiosamente guardados na gaveta da mesa de cabeceira da Mila. Dos doze poemas, escolhi estes:

“1.
Há uma serpente boa na tua língua/ uma nuvem macia nos teus lábios/
um pássaro azul nos teus olhos/ uma duna frágil nos teus cabelos/
uma lua enorme na tua boca/ um grupo rock nas tuas ancas/
um vale húmido nas tuas coxas/ um solo de violino nos teus ombros/
uma cordilheira doce nas tuas mamas/ uma cama de espuma na tua barriga/
uma galáxia imensa no teu sexo/ qualquer coisa de grego nas tuas pernas/
e tudo o que é bom nos teus pés/
por isso de peço:
não te desfaças de nada/ e guarda um bocadinho de tudo para mim”

“3.
O que vamos jantar hoje?/ posso arranjar o gin?/
Queres jogar um scrabble?/ vamos alugar um filme?/
Fazes-me uma massagem?/ medes-me a tensão?
Vamos fazer contas?/ e se mudássemos a sala?/
Já falaste coma Marta?/ já perguntaste ao Pedro?/
Baratas, outra vez?/ estou-te a aleijar?/
Como é que correu a consulta?/ por que não compras?/
Amas-me?”

“4.
Apetece-me pintar o nosso amor/ com uma cor qualquer
musicá-lo/ (e teria que ser uma melodia única)/
emoldurá-lo com espuma/ e pendurá-lo no mar
apetece-me forrar o nosso amor
com tiras de veludo/ e deitar-me sobre ele
com o sono dos fins de semana
Apetece-me cozinhar o nosso amor
com especiarias estranhas/ e aromas exóticos
e depois comê-lo/ com o apetite dos bebés.”

“9.
Sinto os extremos do teu corpo/ tocar nas fronteiras do meu
e todos os meus sentidos/ se despertam
Onde está o resto da tua boca?
Onde ficaram os teus dedos?
Onde deixaste parte do teu sexo?
Onde estão os teus cabelos?
Não vale a pena procurar/ Fiquei com um pouco de tudo
da última vez/ que fizemos amor...”

Não é para me gabar, mas gosto muito destes poemas. Ao contrário de todos os que escrevi nos meus 20-30 anos, que não escreveria hoje em dia, não me envergonho destes versos. Será a isto que se chama maturidade?...


Eu e a minha eterna namorada, em Dezembro de 1990, num dos nossos passeios pela praia da Costa da Caparica.

 



Próximo capítulo: 38. Esta gente não presta (1991)

 

Actualizado em: 14 Março 2004
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