38. Esta gente não presta (1991)
Não são só os vizinhos sempre à
espreita de um traste no contentor que me espantam.
Ao fim de cinco anos de clínico geral no Monte de
Caparica, tinha começado a ficar boquiaberto com
alguns dos meus doentes, com o seu primarismo, a sua incapacidade
em prever as consequências das suas próprias
atitudes, a facilidade com que passam ao acto, a dificuldade
em organizarem a sua vida, a mesquinhez, as invejas, os
ódios. E quanto melhor os conhecia menos desculpas
lhes arranjava, até chegar à conclusão
de que certas pessoas – muitas pessoas – são
mesmo más, intrinsecamente más; e não
vale a pena falarmos em desemprego, famílias disfuncionais,
miséria social, o que vocês quiserem –
esta gente não presta e acabou-se.
Foi em Setembro de 1991 que comecei a pôr no papel
uma série de histórias relacionadas com os
meus doentes, tentando provar que a realidade ultrapassa
a ficção. Iniciei esse meu trabalho com “O
Enforcado”, que contava a história de um doente
que, certo dia, decidiu meter uma corda ao pescoço
e enforcar-se porque sim. Claro que me vão dizer
que o homem devia ter razões fortes para cometer
um acto tão definitivo, que até acabou por
não ser definitivo porque alguém chegou a
tempo de lhe desatar o nó antes da asfixia. Mas não
– ele tentou enforcar-se apenas porque lhe apeteceu;
aliás, esse fulano continua a ser meu doente e, ao
longo destes 16 anos, tem mantido esta atitude em tudo o
que faz na vida: muda de emprego de um dia para o outro,
apenas porque, de repente, deixa de gostar do patrão
ou dos horários ou do sítio onde trabalha,
tenta ajudar a filha do primeiro casamento ou pura e simplesmente
a abandona, de um momento para o outro, conforme a disposição
do dia, vive ao sabor do apetite, sem fazer planos. No fundo,
tem uma personalidade caracterial, em que o super-ego não
existe ou, por outras palavras, não tem sentido crítico,
não é capaz de se ver a si próprio,
de avaliar os seus erros e aprender com eles, corrigindo-os;
ao longo da vida, vai sempre cometendo os mesmos erros,
fazendo sempre tudo da mesma maneira; se tem uma discussão,
facilmente dá um soco no opositor, seja ele quem
for, sem medir as consequências; se acorda triste
e deprimido, mete uma corda ao pescoço e enforca-se.
Com a saúde, a atitude é idêntica: mesmo
depois de eu lhe ter demonstrado haver uma relação
directa entre as suas cólicas abdominais excruciantes
e as lautas feijoadas que deglute com regularidade, continua
a ser frequente aparecer na consulta queixando-se de dores
de barriga; quando lhe pergunto se comeu feijão ou
grão, é certo e sabido que a resposta é
afirmativa.
Escrevi também a história da mulher que estava
constantemente a cair, e por isso lhe chamei, à história,
“A Quebra Ossos”. Passaram mais dez anos e ela
já caiu mais não sei quantas vezes; agora
mesmo, que escrevo este capítulo, está de
perna engessada até à anca, após mais
um trambolhão. E não serviu de nada as vezes
sem conta que a avisei para não vir à rua,
despejar o lixo, nos dias de chuva, com chinelos de plástico,
para evitar as escorregadelas, ou que lhe disse para não
descer escadas com as duas mãos ocupadas para, no
caso de cair, ter sempre uma mão livre para se apoiar;
foi caindo ao longo dos anos, cometendo sempre os mesmo
erros, não aprendendo nada com os azares anteriores.
E os casos eram tantos, que as histórias se foram
acumulando.
E depois, mesmo que eu não quisesse, as histórias
pareciam vir ter comigo. Talvez tenha a ver com o facto
de eu me mostrar disponível para ouvir as histórias
que os meus doentes têm para contar… Como a
história daquela jovem que vinha na mota com o namorado,
começou a masturbá-lo e, quando ele ejaculou,
despistaram-se e ela fez fractura do maxilar e da bacia.
Ou a história da doente que me revelou que sofria
de três tosses diferentes. Ou a outra doente que,
com um determinado medicamento, via umas ondas coloridas
e, quando lhe mudei de droga, continuou a ver ondas, mas
de cores diferentes.
Enfim, as histórias eram tantas que eu não
resisti em escrevê-las.
Comecei por chamar-lhes “Esta gente Não Presta”
– título um pouco contundente de mais, mas
que foi ficando.
Além das histórias que os doentes me foram
contando, comecei, também, a coleccionar as cartas
e os bilhetinhos que eles entregavam à administrativa
que trabalhava comigo. Esses escritos falam por si.
Comecemos por um dos escritos de H.T., um doente com esquizofrenia
que, no início dos anos 90 andava muito activo, com
as ideias delirantes bem produtivas. Regularmente, vinha-me
entregar documentos que ele próprio dactilografava.
No topo superior direito da folha de papel, H.T. colocava
uma cópia de uma foto sua e escrevia:
“Esta Folha Presta-se à Concreta Identificação
do Signatário. A Formalização destes
Escritos Implica Responsabilidade Criminal.”
De notar que todas as palavras, excepto os elementos de
ligação (artigos, conjunções),
começavam com maiúscula.
Seguia-se um texto manuscrito, com caligrafia muito bem
desenhada, e que rezava assim:
“A Fotocopiação e Copiagem de meus
Escritos efectuada por Processos Sofisticados com Utilização
e Reprodução Ilícita de Fotografias
estão a servir a Manobras Ilícitas com a Utilização
Indevida e Criminosa de Minha Identidade.
1) As Notas Elaboradas são Arquivadas e Numeradas
em Arquivo Pessoal (intransmissível). 2) A Nota uma
vez Assinada tem Valor Legal. 3) A Assinatura (fotocopiada)
Contida nesta Folha (Folio) não tem valor Efectivo
mas Comparativo 4) A Assinatura (em original) referente
ao Texto efectuado Conferirá com a do Fólio,
Confirmando a sua Autenticidade 5) O Arquivo Pessoal, Comprovará
a Autenticidade das Notas 6) A Assinatura e a Identidade
Poderão, Deverão ser Confirmadas, Assinando
em Presença, Face à Fotografia 7) A Reprodução
e Utilização deste Fólio é Ilícita.”
Estas sete alíneas são surpreendentes e,
ao transcrevê-las, estou a ir contra o que está
determinado na alínea 7). Penso, no entanto, que
H. T. não se deve importar; hoje em dia, vagueia
pelas ruas do Monte de Caparica, muito degradado, física
e mentalmente. Após as alíneas manuscritas
(sempre repetidas em todos documentos que me entregava),
seguia-se o texto propriamente dito:
“Ao Médico de Família (Cópia
ao Pároco da Igreja Local
Dr. Artur Couto e Santos Cópia à Polícia
de Segurança Pública)
Excelência,
Com Referência a Processamento Exercido sobre sua
Vida e Familiares, se Vem Denunciar o Seguinte.
Que Faleceu no Apartamento Imediato de Cima Pessoa de Nome
Conceição, Mãe de Conceição
Hilário, que Responde como Presente no Referido Andar,
Calçada de Alfazina, Prédios Amarelos, Familiar
de uma de Vossas Médicas ao Serviço desta
Clínica.
Porque Neste Andar se Repetem estas Situações
com a Morte de diversas Pessoas, Julgando-se Haver Procedimento
Estranho, Mormente Porque, as Pessoas Em Questão
do Sexo Feminino São Impedidas de sair, e Mormente
não Se Abrem as Portas do Referido Apartamento Quando
Alguém Tem Necessidade de Socorro, Compreendendo-se
que as Pessoas São Assassinadas a Fins do processamento
Criminoso exercido.
Assim Vem-se Solicitar o Procedimento Requerido ao cadáver
de Forma Legal, Sendo que a Pessoa que Responde como sua
Filha, Irmã, digo Familiar da V/ Médica ao
Serviço desta Clínica Deverão proceder
Imediatamente, Sendo que a Mesma Solicita o Enterro de sua
Mãe seja Efectuado Pelo Pároco Local de Monte
de Caparica.
Respeitosos Cumprimentos,
H.T.”
Este meu doente foi um dos vários com esquizofrenia
que entraram para a minha lista. Os restantes colegas, sabendo
que eu tinha estado no internato de Psiquiatria, fizeram
questão de me rechear a lista com doentes psicóticos.
Mas H. T. era o mais produtivo deles todos. Que pretenderia
ele com documentos como os que acima transcrevi? Claramente,
denunciar uma situação que, no seu delírio
mais ou menos bem estruturado, merecia a atenção
das diversas autoridades (polícia, médico,
padre…). A princípio, ainda tentei perceber
um pouco melhor o delírio de H. T. mas, quando me
começou a falar de satélites soviéticos
que, através de raios enviados para os candeeiros
da via pública, matavam recém-nascidos no
Bairro Amarelo, achei que não valia a pena esmiuçar
muito a coisa. Certo dia, pediu-me um domicílio.
Fui. Estava acamado, com queixas delirantes de ossos e músculos
a desfazerem-se, por intervenção de terceiros
e seus meios sofisticados; mostrou-me os pontos da casa
onde esses efeitos perversos se faziam sentir, e onde ele
tinha colocado pires com azeite e dentes de alho, eventualmente
para afastar essas más influências.
H.T. sempre recusou terapêutica, e nem pensar em internamento,
mas também não fazia mal a ninguém.
Uma vez apareceu na consulta com um gravador de cassetes
portátil numa mão e um martelo na outra; mas
não me queria fazer mal, apenas entregar mais um
dos seus Fólios. Eu aceitava os seus documentos e
passava-lhe uma declaração assinada em como
os tinha recebido; isso bastava-lhe.
Os anos foram passando; recentemente, as assistentes sociais
que, entretanto invadiram o Bairro do Pica Pau Amarelo,
sobretudo por causa do rendimento mínimo garantido,
interessaram-se pelo caso do H.T. que, vivendo da pensão
mínima e da ajuda dos vizinhos, recusava a comida
que elas lhe queriam dar (envenenada, claro!, garantia ele…),
recusava ir ao médico, recusava internamento! Pediram
a minha opinião. H. T. faz algum mal a alguém?
Por que não o deixam em paz? Elaborei um documento
contra o seu internamento compulsivo. Ignoraram-no. Internaram
compulsivamente H. T., com a ajuda da delegada de Saúde,
que nunca tinha visto H.T. mais gordo mas, enfim, um homem
de aparência andrajosa, com as barbas pela barriga,
que recusa a ajuda das assistentes sociais merece ir para
o hospital dos malucos. Esteve lá dois meses. Depois
da alta, está muito mais degradado, vagueando pelas
ruas do Monte, sem destino aparente e nunca mais me entregou
nenhum dos seus formidáveis Fólios…
O caso de H. T. é um caso extremo e não tive
mais nenhum como ele.
Mas há outras cartas e recados que vale a pena recordar.
Por exemplo este, do Teixeira da Silva, um cabo-verdiano
que, coitado, não teve sequer direito a nome próprio.
Era um tipo muito delicado, cheio de salamaleques, magríssimo,
um verdadeiro pau de virar tripas, que se casou com uma
conterrânea cinco vezes mais pesada que ele. Certo
dia, fez-me chegar, através da mulher, este recado:
“Senhor Doutor Artur
Veio lhe pedir para me passar estas receitas de exame para
caixa. Não veio próprio porque foi trabalhar
e deixei Clarisse vir ter contigo.
Do teu Teixeira da Silva”
Assim, sem mais nem menos, “do teu Teixeira da Silva”;
um tipo fica sinceramente comovido…
Detenhamo-nos, agora, neste convite, emanado do Clube Recreativo
Pombalense, fundado em 1938 e que, no papel timbrado, refere,
como modalidades: “chinquilho, ping-pong, atletismo,
biblioteca (!), futebol, tiro, pesca, setas”:
“Senhor Doutor:
Venho a comunicar-lhe e a convidá-lo, com o maior
gosto, a vir participar como médico na nossa equipa
de futebol salão, nacional da 1ª divisão,
que será efectuado aos fins de semana nos arredores
em Lisboa e Setúbal.
Com o nosso maior respeito e agradecimento, esperamos a
sua resposta.
Para o Bem da Nação
Saúde e Desporto.”
Dois comentários: “a Bem da Nação”,
com maiúsculas, tal e qual como o texto do doente
esquizofrénico; e “futebol salão”,
sem a conjunção “de” – que
é como este pessoal fala dizendo, por exemplo, “tenho
andado com um bocado tosse”.
Outro meu doente, A. N., entretanto já falecido,
inundava-me de cartas, que enviava através da desgraçada
da mulher que, sempre que me entregava uma dessas cartas,
se desfazia em desculpas. Eis um exemplo:
“Sr. Doutor Artur Santos tenho um problema que
se agrava dia a dia, quando acordo de noite começo
logo a bocejar à volta de 3 minutos que se processa
isto, vem-me lágrimas aos olhos, como só tenho
5 dentes todos juntos do lado direito, babo-me muito. Que
será isto Sr. Doutor Couto e Santos?
Minha mulher por outro lado assim que se deita começa
a dormir será do coração que ela ressona?
Estou durante 3 minutos a bocejar, é esquisito deve
ser alguma doença que só o Sr. Doutor pode
descobrir e são várias vezes na noite. Esta
redacção vai muito mal porque eu levantei-me
estonteado para escrever isto ao Sr. Doutor.
Tenho muitos gases dos intestinos e cheiram muito mal, o
Sr. Doutor receite-me alguma coisa para curar este problema,
por favor.
Muito obrigado.
A cabeça continua a largar gordura, minha mulher
ao friccionar a cabeça não pode tocar em nada
que fica com gordura eu é que tenho de abrir a torneira
para ela lavar as mãos.”
Que fazer perante uma missiva deste quilate? O trabalho
que este doente me deu!… Era frequente ir consultá-lo
lá a casa, porque o sr. A. N. tinha alguma dificuldade
em se deslocar, por mor das gonartroses e coxartroses. Fazia
questão de me mostrar alguns dos seus fluidos: a
cor e o cheiro da urina, o lenço com as manchas da
expectoração, a tal gorduraça que se
desprendia da cabeça – enfim, uma verdadeira
lição de arte médica à moda
antiga. Como se sabe, antigamente, na ausência de
análises e outros exames complementares, o estudo
dos fluidos orgânicos era, muitas vezes, a única
maneira de chegar a uma hipótese diagnóstica.
Certa vez, A.N. perguntou-me se o grande jornalista Francisco
Couto e Santos seria da minha família. Caí
na asneira de lhe dizer que fora meu tio. A partir daí,
nunca mais me largou com memórias de negócios
que teria tido com o meu tio. O fulano, provavelmente, estaria
a confabular mas o que é certo é que sabia
muitas coisas da vida do meu tio. Já na década
de 60, ser jornalista era profissão de prestígio
e, ao longo da minha vida, tenho deparado com muita gente
que ainda se recorda do meu tio Xico e das suas crónicas
no “Mundo Desportivo”. Claro que essas memórias
se mantiveram todos estes anos porque coincidiram com os
momentos áureos da equipa de futebol do Benfica.
Como já contei, o meu tio acompanhava o Benfica nas
suas deslocações ao estrangeiro e, depois,
escrevia aquelas reportagens brilhantes que transformam
os jornais desportivos em verdadeiras obras da literatura
portuguesa.
Tia Zezinha e tio Xico, algures nos anos 60. Esta imagem
devia ter aparecido muitos capítulos antes, mas só
a arranjei depois, graças ao arquivo da minha irmã.
Mas continuemos com as missivas dos meus doentes.
Passemos a outro exemplo, de um doente de Cabo Verde, ex-polícia,
que emigrou para o nosso país depois de ter ficado
sem um pedaço da língua durante uma rixa:
“Exmo Sr. Doutor Artur:
Em prol de manifesta necessidade venho por este meio respeitosamente,
solicitar a Vª Excª se digne passar esta receita
no meu nome, afim de facilitar-me, na aquisição
do presente medicamento, relativamente ao quantitativo enerente.
Pois, o mesmo se destina ao meu irmão, enviado de
cabo Verde, para os devidos efeitos. Do qual encontra-se
em faculdade de duença.
Pelo que, muito agradecia, dentro do seu bom ofício
e humanismo.
Porto brandão, 1/05/91
O solicitante e seu duente,
José T. S. e Fátima Saudações.”
No fundo, o que o José queria era que eu passasse
uma receita no seu nome, para ele enviar ao irmão,
residente em Cabo Verde; mas o seu passado de polícia
amanuense, habituado a levantar autos, está bem patente
no palavreado da carta.
Cartas como estas, tenho às dezenas, bem como bilhetinhos
escritos em pedaços de papel de carta, de boletins
de totoloto ou guardanapos de papel, pedindo medicamentos
inexistentes como, por exemplo, supositórios Indesit
(em vez de Indocid). Para já não falar do
doente que me entregou o seu extracto bancário, em
vez do envelope com as análises, do outro que me
veio pedir uma declaração para a assistente
social lhe arranjar um esquentador novo – enfim, as
histórias foram-se acumulando e eu fui-as escrevendo,
um pouco ao estilo do Mário-Henrique, sem saber,
naquele momento, o que iria fazer com aquilo.
Às tantas, pareceu-me que o título “Esta
Gente Não Presta” talvez fosse excessivo. E,
no entanto, que dizer dos doentes que iam para a porta da
Unidade de Saúde, logo de madrugada, guardando vagas
que, depois, vendiam aos que chegavam mais tarde? E dos
que vêm à consulta com o único propósito
de dizer mal de um outro doente, e o ódio latente
em alguns deles, e raiva, e a maldadezinha, a maledicência…
Costumo dizer que, se um dia, montasse uma banca no adro
da igreja do Monte de Caparica e começasse a contar
tudo o que sei sobre os meus doentes, haveria uma sublevação
popular. Sim, bem sei, o segredo profissional… e se
eu sei muitas coisas é porque os doentes confiam
em mim e decidem abrir-se comigo. Até aqui, tudo
bem. Mas confesso que, por vezes, já não tenho
pachorra.
Que dizer, por exemplo, da pobre Laurinda que, em 16 anos,
já foi à minha consulta mais de duzentas vezes,
o que dá uma média superior a duas consultas
por mês, todos os meses, todos os anos? É o
caso típico de doente consumista; e não me
venham dizer que já não tentei tudo –
marcar-lhe consulta com dia e hora, passar-lhe medicação
sem data para dois ou três meses, para poder ir aviando
os medicamentos a pouco e pouco – nada resulta, o
que a Laurinda gosta mesmo é de ir ao médico.
Doenças? Claro que as tem; a habitual hipertensão,
a osteoartrose, a velhice, a solidão, o isolamento.
Que dizer dos velhotes abandonados pelos filhos? Tenho vários,
com filhos morando a dois passos que, durante semanas e
semanas a única visita que recebem é a do
médico, quando lá vou a casa fazer um domicílio.
Que dizer de uma pessoa que me pede para passar as receitas
no nome do marido porque, como este tem a chamada senha
verde, tem mais desconto nos medicamentos? Lógico,
não é?… Mas eis que, entretanto, uma
das filhas surge com lupus eritematoso, uma doença
do tecido conjuntivo que dá direito à comparticipação
total dos medicamentos – logo me pede para passar
os medicamentos todos no nome da filha, incluindo os comprimidos
para a próstata do marido, para a hipertensão
da mãe, para o reumático da vizinha.
Que dizer de uma família que vive à custa
dos apoios da assistência social e todos os seus membros
andam de telemóvel à cintura?
Que dizer da doente reformada aos 35 anos por uma cegueira
que nunca existiu e que consegue, anos depois, uma grande
invalidez, após duas tromboses que simulou?
E da outra doente que, não conseguindo a reforma
de maneira nenhuma, se dá ao trabalho de simular
uma crise psicótica, ser internada no Miguel Bombarda
e, assim, conseguir a tão almejada reforma?
Nas histórias que fui escrevendo (já suficientes,hoje
em dia, para três livros), alterei os nomes dos intervenientes
e modifiquei um ou outro pormenor, respeitando, assim, a
privacidade dos meus doentes. Mas há outras histórias
que não tive coragem de publicar. No entanto, como
estas memórias são para consumo interno, acho
que vale a pena contar alguns enredos, de que fui tomando
conhecimento, ao longo de todos estes anos, e que se integram
perfeitamente no espírito de “Este povo não
presta” – projecto que, apesar o tal título
contundente, ainda não abandonei definitvamente.
São já muitos anos de contacto com “o
povo”; são milhares e milhares de consultas,
muitas delas de tipo confessional, em que transparece a
mesquinhez das pessoas, a maldade em que muitas elas são
férteis, a pobreza de afectos, a ausência de
solidariedade.
Portanto, e para que não fiquem na gaveta, vou transcrever
alguns textos que fui escrevendo sobre alguns dos meus doentes,
e que se lixe a ética...
(...)
E poderia continuar com os exemplos mas a conclusão
é esta: sejamos sinceros e não tenhamos medo
das palavras: este país é, de facto, muito
bonito – o povo é que não presta…
Acho sempre alguma graça quando assisto a algum debate
sobre os Serviços de Saúde. Fala-se da má
organização, do caos nas urgências,
da falta de médicos, da negligência de alguns,
das listas de espera, mas raramente se fala nos utentes.
O Serviço de Saúde inclui, também,
os utentes que são, obviamente, parte do problema;
eles não podem só ter direitos, até
porque a doença é, acima de tudo, do doente.
Quando se prescreve uma terapêutica a um doente, é
esperado que ele a cumpra; um diabético não
pode culpabilizar o seu médico, se continua a comer
o que lhe dá na gana, se se esquece de fazer as injecções
de insulina como deve ser e se não pára de
engordar; um fumador que é aconselhado a deixar de
fumar, não pode culpar o médico (ou a indústria
tabaqueira) pelo cancro que, finalmente, lhe surge na garganta;
os utentes não se podem queixar das listas de espera
quando, por causa de uma simples hérnia, se inscrevem
em três hospitais, a ver qual é o primeiro
que os chama e depois, algumas vezes, quando são
chamados, não vão porque não lhes dá
jeito naquele momento.
Acresce que o acto médico, em Portugal, está
muito desvalorizado. Uma boa percentagem dos meus doentes
estão isentos da taxa moderadora – ir ao médico
é, talvez, a única coisa à borla a
que têm direito; portanto, podem lá ir hoje
porque acham que a tensão não está
boa, voltam para a semana a pedir uma caixa de comprimidos
para a febre e, dois dias depois, um xarope para a tosse.
E mesmo os que pagam… trezentos escudos por uma consulta!…
Sinceramente, não sei dizer qual seria o preço
certo para uma consulta médica no Serviço
Nacional de Saúde, mas penso que terá que
haver coragem política de aceitar o que está
à vista de todos: o acto médico é menosprezado
por parte dos utentes. Se querem uma consulta simples, vão
à loja dos trezentos (Unidade de Saúde), se
querem uma coisa mais jeitosa, vão à grande
superfície (o Hospital), onde pagam mil escudos,
mas têm direito a análises e radiografias.
A situação é, de facto, muito complexa
e não é fácil de encontrar soluções
óptimas mas penso que muitos de nós, com décadas
de experiência, talvez conseguíssemos dar um
contributo válido. Eu próprio, até
já escrevi a uma ministra, a dar-lhe alguns conselhos,
mas isso fica para mais tarde.
Em 1991, eu e os meus colegas do Monte continuávamos
a trabalhar à brava. Guardei a estatística
de Maio desse ano (que não incluía as consultas
efectuadas no SAP), que rezava assim, no que dizia respeito
a número de consultas: Dr. Guimarães –
557 consultas; Dr. Artur – 538; Dra. Emilia –
469; Dra. Julia – 430; Dr. Júlio – 445;
Dr. Leitão – 372. Os números de outros
colegas, de outras Unidades de Saúde, raramente chegavam
às trezentas consultas.
Qual era o prémio que nós recebíamos
por tanto trabalho? Cartas enviadas pelo Ministério
da Saúde, exigindo que explicássemos porque
gastávamos tanto dinheiro em medicamentos!
Um exemplo: num determinado mês, informava-me o Ministério
que eu tinha prescrito medicamentos no valor de 1 265 518
escudos. De facto, o valor parece exorbitante. Só
que, nesse mesmo mês, eu tinha efectuado 695 consultas,
o que dava um gasto médio de 1 820 escudos por consulta,
em medicamentos o que não é nada…
Mas era desagradável um tipo trabalhar que nem um
danado e, no fim do mês, receber recadinhos destes,
quase convidando-o a trabalhar menos.
Esta gente (do Ministério) também não
presta…
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