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O Coiso
Memórias de um fumador
50 anos de história


39. A memória das imagens (1991)

A vontade de registar o passado não começou com estas memórias. Já por várias vezes tinha tentado fazer reviver o passado. Em 1991, graças à câmara de vídeo e ao vídeogravador, decidi projectar os nossos slides e depois filmá-los, de modo a que os pudéssemos ver numa determinada sequência. Filmei os melhores slides da Marta, por ordem cronológica, de 1976 a 1988, ano em que desistimos de fazer slides e sonorizei o filme com o inevitável “Martha my dear”, dos Beatles. Fiz o mesmo com os slides de Pedro e escolhi, como banda sonora, o “Dreamer”, dos Supertramp. Fiz ainda um terceiro vídeo em que juntei fotografias minhas e da Mila; começava com imagens de ambos, ainda bebés de tenra idade, ao colo das respectivas mães e continuava com fotos da infância e da adolescência até aos 18 anos, quando nos conhecemos. Aí, a música de fundo era o clássico “You are my destiny”; depois, continuava pelos anos fora, ao som de “When I’m 64”, dos Beatles resumindo, em cerca de dez minutos de vídeo, 19 anos de uma vida em comum.
Era a memória em imagens.
E muitas vezes, a memória que nos fica resulta de fotografias que vamos guardando e do que elaboramos à volta delas. Mais tarde, é difícil distinguir entre uma memória, digamos, pura, e uma outra, contaminada pela fotografia que vimos e revimos.
Ainda me lembro de uma das primeiras máquinas da minha infância – era uma Kodak, com estojo de cabedal castanho. Quando trabalhava no Telejornal, comprei uma máquina Yashica, sistema reflex, em segunda mão, pertencente a um qualquer repórter fotográfico que estava a renovar o seu material. Era uma grande máquina e ainda hoje dura, nas mãos do Pedro. Foi com essa máquina que tirámos mais de três mil slides, entre 1975 e 1987.
Alguns desses slides são, de facto, verdadeiras memórias em imagens.
Costa da Caparica, Maio de 1975, quando o areal ainda era extenso e largo. Um barco de pescadores, com a quilha colorida. Eu, com o cabelo escorrido e o bigode farfalhudo, boné preto e casaco de xadrez, comprado por vinte escudos nos Porfírios. Toda a gente tinha um casaco destes. A Mila com os cabelos compridos ao vento e o casaco de lã, cor de rosa e azul escuro. O Pedro, quase com dois anos, ainda com os caracóis aloirados e com um barrete vermelho
No mesmo mês, a série de slides feitos na Estufa Fria. Um rolo Agfa que devia estar estragado. Todos os slides saíram com um granulado que acabou por torná-los únicos. O Pedro posa e faz carinhas.
Ainda em Maio, no parque de campismo, só se vê a cabecinha e os pés do Pedro, todo enfiado dentro de um alguidar azul, que ainda hoje resiste; está na nossa garagem, com batatas oferecidas pelos doentes.
Cabo da Roca, Setembro de 1975. Fomos com o Zé Tó e a Mizé dar uma volta, na Dyane do pai do Zé. Estava nevoeiro. O Pedro assustou-se com o uivo do farol e com a sua luz intermitente. A Mila pegou-lhe ao colo e tentou acalmá-lo.
Algueirão, Junho de 1976. O Pedro junto a uma dália, no nosso jardim. As nossas dálias eram lindas. Esta, roxa e branca. Também tínhamos jacintos e hortênsias, muitas hortênsias. Algumas delas ainda sobrevivem, numa das nossas varandas.
Junho de 1976, dia 11, aniversário do Pedro e da minha mãe. Almoço da família no quintal do Algueirão, para festejar ambos os aniversários. A última fotografia que tirei à minha mãe.
Setembro de 1976. A Mila pinta as traseiras de um autocarro na porta da nossa garagem do Algueirão. Ainda não tínhamos carro…
Novembro de 1976. A Mila, lindíssima, chega a casa com um bebé recém-nascido nos braços, protegendo-a do frio. Era a Marta.
Mesmo mês. Slides do banho da Marta, da mamada da Marta, da cagada da Marta. Sempre obstipada. Era preciso um Bebé gel para ajudar. Para que o Pedro não sentisse ciúmes, também ele voltou a tomar banho na banheira pequena.
S. Pedro de Sintra, Janeiro de 1977. O Pedro passeando dentro do seu novo kispo preto e verde, comendo tremoços. Paixão. Ainda hoje come tremoços compulsivamente até os intestinos não aguentarem mais.
Parque de campismo, Agosto de 1977. A Marta, sorridente, exibindo os seus dois primeiros dentinhos, ao colo da Luisa.
Algueirão, Setembro de 1977. A minha companheira, com trancinhas. Linda.
Algueirão, Junho de 1978. O Pedro com os meus óculos à John Lennon. Comprei-os num oculista na Rua Almeida Garrett. Redondos, pequeninos e de aros dourados, com hastes maleáveis. Nunca tive outros tão bonitos.
S. João do Estoril, Agosto de 1978. Marta e Joana com vestidos iguais, brancos, com alcinhas, engraçadíssimas.
Novembro de 1978. A Marta faz dois anos e recebe o seu primeiro bebé chorão. Tem uma expressão de felicidade no rosto difícil de descrever.
Parque de campismo, Agosto de 1979. O Sousa mostra, orgulhoso, o rádio Sanyo que lhe oferecemos. Comprámos um igual para nós. Ficou infestado de baratas, anos depois.
Mourão, Junho de 1980. Henry Miller morre. Eu e a Mila colocámos os livros do Miller em cima de uma mesa e tijolos que o Zé tinha pintado, imitando esses mesmos livros. Fizemos slides.
Costa da Caparica, Agosto de 1980. O Pedro atira um balde cheio de água e as gotas espalham-se pelo ar.
Mourão, Outubro de 1980. Eu, com a camisa e as botas da tropa e uma saia da Mila.
Mourão, Dezembro de 1980. A Marta, de trancinhas, lindíssima, com um urso de peluche ao colo.
Évora, Julho de 1981. A Mila penteia a Marta no quarto da Messe dos oficiais. Está um calor de ananases. Estão ambas nuas.
Costa da Caparica, Setembro de 1982. O Pedro, com toalha ao pescoço, em forma de capa, “voa”, qual super-herói.
Na praia, Julho de 1983. Os schtroumpfes todos alinhados, numa espécie de anfiteatro construído na areia molhada.
Almada, Julho de 1984. Sentada no terraço, a Marta faz renda.
Outubro de 1985. O Gin Tónico com laçarotes nas orelhas.
Maio de 1986. Sempre que decidia cortar a barba e o bigode, a Mila tirava-me vários slides, com as diversas fases do corte.
Agosto de 1987. A Marta deitada na sua nova cama vermelha, de latão. Só no ano passado nos desfizemos dela.
Outubro de 1987. O Gin Tónico, de óculos e boina. Um verdadeiro intelectual.
Cada slide desperta uma memória.
Seria outra maneira de reviver o passado.
Slide a slide, partir daquela imagem para recordar o que lhe estava inerente.
Como já disse, em 1988 fizemos os últimos slides e dedicámo-nos só á fotografia. Um álbum de fotos por cada ano. Cerca de sessenta folhas em cada álbum. Seis fotografias em cada folha. Já vamos em onze álbuns, o que quer dizer que já devemos ter atingidos as quatro mil fotografias – exceptuando as chamadas fotos de viagens, que totalizam mais dezanove álbuns.
Não há dúvida que queremos mesmo fixar a memória em imagens.

 



 



Próximo capítulo: 40. Tenho um filho universitário (1991)

 

Actualizado em: 18 Abril 2004
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