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O Coiso

Viagem ao Peru

16 a 29 de Maio

Segunda, 17 de Maio
Arequipa
3h45 (hora do Peru) – Lobby do Swissôtel
Dormimos muito depressa. É a sina destas viagens.
Após um voo de 11 horas sem sobressaltos, mas chato à brava, aterrámos no aeroporto de Jorge Chavez, Lima, pouco depois das 8 da noite (2 da manhã em Portugal). As malas, que tinham sido embarcadas em Lisboa, também chegaram e um fulano da Lima Tours estava à nossa espera. Viemos de táxi particular até ao hotel e ficámos a saber que esta nossa visita ao Peru vai ser feita por nossa conta, isto é, sem estarmos integrados em qualquer grupo, fizemos o check in e ficámos no quarto 1402, um quarto enorme com uma cama king size que nem deu para desfrutar. Descemos para comer uma sandes e beber uma cerveja no bar do lobby por 50 nuevos soles. Entretanto, recebi mensagens da malta toda. O Benfica ganhou a Taça, 2-1 ao Porto, após prolongamento. Está tudo eufórico! Às 23h30 estávamos na cama (seriam 4h30 em Portugal) e dormimos bem, até sermos acordados 4h e meia depois. O lobby fervilha, como se fossem 3 da tarde, com um grande grupo de americanos. Nós estamos à espera de um tal Orlando, que nos vai levar ao aeroporto

5h00 – Sala de embarque do Aeroporto Jorge Chavez
Primeira idiossincrasia peruana: os casinos. No trajecto do hotel para o aeroporto, percorremos uma longa avenida, com três faixas para cada lado; ao longo da avenida, muitos casinos, Hollywood, Texas Station, New York, numa espécie de Las Vegas dos pobrezinhos. Luzes feéricas, intermitentes, anunciam “tragamonedas”, que deva ser a tradução peruana para slot machines.
O tal Orlando trouxe-nos até ao aeroporto sem grandes conversas. As Linhas Aéreas Nacionais (LAN) do Peru devem estar em alta, a avaliar pela azáfama do aeroporto a esta hora da madrugada: centenas de pessoas, voos para Cusco, Arequipa, Juliaca, etc. Uma certa confusão que cheira a América Latina. A menina do check in fez-nos um pedido perturbador: o nome e número de telefone de um familiar em Portugal. Just in case… Livra!…

8h50 – Arequipa, Hotel Libertador, quarto 220
Quando o avião começou a sua descida para Arequipa, vimos uma paisagem desértica e montanhosa. Depois, mais perto, as falhas sísmicas marcadas na montanha.
Aterrámos num aeroporto rodeado por vulcões: o Chachani, com os picos gelados, El Misti, o mais famoso, em forma de cone quase perfeito e o Pichupichu.
Uma fulana chamada Flor foi-nos buscar e trouxe-nos ao hotel por ruas com trânsito confuso, ladeadas por casas de um único piso, um misto de subúrbios de cidade do oeste norte-americano com Cairo.

14h00 – Após o almoço
Almoçámos no hotel, junto à piscina, rodeados de ingleses velhotes, com o vulcão Chachani ao fundo; alguns llamas, mastigam continuamente num relvado à volta da piscina; como música de fundo, aqueles irritantes peruanos, com canções que fazem lembrar o trio Odemira, com vozes estridentes, guitarras nos agudos e versos de corazon, frustracion e desilusion!
Como entrada, uma fritada de camarões, lulas e outros habitantes da água. Estava bom. Depois, eu comi uma costeleta de lama (coitadinho!) e a Mila abalançou-se numa carne frita de malaya que era quase incomestível.
De manhã, demos uma volta ao hotel e viemos dormir quase 2 horas. Nas ruas circundantes, vimos carrinhas Toyota que servem de transporte público, com dezenas de peruanos literalmente sentados ao colo uns dos outros! Os táxis são carrinhos minúsculos, lançados a grande velocidade, em todas as direcções. Vimos um com uma cama no tejadilho, amarrada com cordas, maior que o táxi.
Por enquanto, ainda não notámos a altitude. Estamos a 2500 metros acima do nível do mar, mas não se nota. O sol é muito quente mas, quando o vento sopra, sente-se frio.

18h10 – depois da visita da cidade
O principal motivo de interesse de Arequipa é, de facto, o conjunto de vulcões que a rodeia. Fomos vê-los de um miradouro: o Chachani, à esquerda, que deve ter tido 12 mil metros de altitude, antes de uma grande erupção, que alargou a sua base e diminuiu a sua altitude para os 5 mil; ao meio, o ex-libris da cidade, El Misti, o tal cone quase perfeito e que tem uma nova erupção marcada para um dia ou um ano destes; à esquerda, o Pichupichu, que é um conjunto de 14 vulcões. Todos eles estão apenas adormecidos, não extintos.
Visitámos o Mosteiro de Santa Catalina, um emaranhado de ruelas com nomes espanhóis, as celas onde as monjas viviam, vários claustros e a curiosidade das paredes estarem pintadas de ocre e azul, o que não é habitual nos mosteiros europeus.
A Plaza de Armas é uma confusão de pombos, táxis, carrinhas Toyota apinhadas de gente e muitos vendedores ambulantes, à caça de turistas. Num dos lados do quadrado fica a catedral, que começou a ser construída no século 17 e que teve sucessivas remodelações, devido aos frequentes tremores de terra, o último dos quais em 2001.
Arequipa já nos deu uma ideia aproximada das cidades latino-americanas, tal como as imaginávamos.


Mila, no aeroporto de Arequipa, com El Misti, à esquerda, e Pichupichu, à direita

Terça, 18 de Maio
10h45 – Junto à piscina

Pouco depois das 10 da noite, estávamos a dormir. E foi seguido. A Mila acordou às 5 e picos e eu, uma hora depois.. prontos para andar, que é do que gostamos. O pequeno-almoço foi fraco. Estes tipos não têm pão, aquilo a que chamamos pão: umas tostas ranhosas e umas coisas vagamente semelhantes a pão, mas que não são pão.
Às 8h estávamos a caminho da Plaza de Armas, descendo a Calle Jerusalem. A confusão já era muita, com destaque para os minúsculos táxis Daewoo Pico, que parecem carrinhos de brincar. Há-os de todas as cores, de preferência cores berrantes, decorados com inscrições em letras fosforescentes e com placas publicitárias nos tejadilhos. Percorrem as ruas a uma velocidade vertiginosa e, em vez do claxon habitual, emitem uma espécie de silvo. Lá dentro, para além do motorista, mais cinco pessoas amontoadas. Nas carrinhas Toyota, vimos 12 pessoas e mais. Esta espécie de transporte público não tem paragens assinaladas. Deu-nos a sensação que param em esquinas predeterminadas. Nessa altura, salta lá de dentro um tipo que grita uma série de nomes – suspeitamos que sejam os sítios por onde a carrinha vai passar. Quem estiver interessado, entra; caso contrário, espera pela próxima carrinha, que vem logo atrás, porque são às centenas. No ar, um cheiro pestilento a gasóleo. Em alguns cruzamentos, polícias sinaleiros. Junto à Plaza de Armas, um polícia sinaleiro, cujo sexo não conseguimos estabelecer, deu-nos as boas vindas a Arequipa, com uma voz aflautada; usava luvas com listas vermelhas e brancas (as cores da bandeira do Peru) e dirigia o trãnsito com gestos efeminados.
A Calle Jerusalem é uma rua comprida e feia, com casas de um ou dois pisos, incaracterísticas. Porta sim, porta sim, lojas que anunciam excursões aos Colca Canyon e ligações à internet; vimos lojas que vendem lápis, cadernos e bebidas.
A Plaza de Armas, às 8h 30 já tinha muito movimento: os vendedores ambulantes vendem bonequinhas tradicionais, postais ilustrados e medalhas para fazer promessas à Nossa Senhora de Chapi. Em Fátima, usam-se velas com formas das várias partes do corpo humano; aqui, usam-se estas medalhas, que têm imagens de uma casa, um par de noivos, um homem ou uma mulher, conforme o pedido que se quer fazer á santa. Outra curiosidade: homens com máquinas de escrever debaixo do braço; mais tarde fotografámos um, que escrevia uma carta, que outro lhe ditava – coisas do analfabetismo, certamente.
Percorremos os quarteirões que rodeiam a Plaza, vendo as diversas casas coloniais, algumas enormes, por isso chamadas casonas, o que me parece correcto. Caminhámos até ao Mosteiro de Santa Catalina, fotografámos fachadas e camionetas incríveis e uma clínica com doentes á porta, esperando que abrisse – afinal, não é só em Portugal que os doentes vão para a porta do Centro de Saúde. E ao fundo, pairando, os cumes gelados do Chachani. Telefonámos à família numa praça muito tranquila, recentemente restaurada.
Novamente na Plaza de Armas, que fotografámos de todos os ângulos, entrámos numa lojinha para comprar algumas recordações e regressámos ao hotel, onde nos esperava uma mensagem: o nosso voo para Puno passou das 16 para as 17h20. teremos que almoçar mais uma vez no hotel.
Agora, estamos estirados nas cadeiras, à beira da piscina, tranquilamente. Não está aqui mais ninguém e a calma seria total se não fosse a música de fundo; desta vez, uns violinos estridentes, com sonoridades orientais. Ainda não entendi esta ligação do Peru ao Oriente...

16h30 – sala de espera do aeroporto Alfredo Rodriguez Balon
Fizemos o check in, com a ajuda da assistente da Lima Tours e deparámos com uma sala de espera com uma dúzia de pessoas, sentadas em silêncio respeitoso em frente á televisão – todos assistindo religiosamente á telenovela da tarde, incluindo as empregadas das seis lojas do aeroporto e os seguranças.
Silenciosamente, passámos por trás dos espectadores e sentámo-nos, tentando não perturbar o espectáculo.
Já com os cartões de embarque, saímos para o parque de estacionamento deserto e fomos fotografar, mais uma vez, o Chachani, o Misti e o Pichupichu..

Puno
21h00 – Hotel Libertador Isla Esteves, quarto 405, 3800 metros de altitude
Da janela do nosso quarto, a toda a largura, vemos o Titicaca e, ao fundo, as milhares de luzinhas de Puno.
O voo entre Arequipa e Juliaca foi apenas de 25 minutos e só entraram no avião mais quatro pessoas, além de nós. O avião passou mesmo ao lado Misti, o que quer dizer que não subiu mais do que uns cerca de 5 mil metros.
À nossa espera, no aeroporto Inca Manco Capac, dois elementos da Lima Tours. Entre Juliaca e Puno foram cerca de 40 minutos de estrada péssima, cheia de buracos. O guia era muito simpático e foi-nos dando informações sobre o Peru em geral e Puno em particular; tive oportunidade de lhe perguntar se as coisas estavam melhores, desde que Fujimori se foi embora, mas ele disse que não. O presidente Toledo parece estar atolado em corrupção. Fujimori volta, estás perdoado!
Pelo caminho, atingimos a altitude de 4000 metros. Não sentimos nada de especial.
O hotel fica numa espécie de ilhota do lago Titicaca e fomos recebidos com mate de coca, para minorar os efeitos da altitude mas, até agora, tirando uma ligeira dor de cabeça, no pasa nada...
O jantar não foi mau: canja para os dois, filete de peixe rei para a Mila e filete de alpaca para mim.
Agora, depois do duche, estamos na caminha, que amanhã vamos acordar às 6.

Quarta, 19 de Maio
9h10 – algures no lago Titicaca – os Uros

Efeitos da altitude: noite muita agitada, com acordares sucessivos, nariz entupido, ligeira dor de cabeça. E a Mila constipada, com espirros e cara de poucos amigos.
Acordámos às 6, tomámos o pequeno almoço e às 7h30 estávamos numa lancha a motor, com mais 20 turistas de Itália, Alemanha, Chile, Brasil, Suíça, França, Canadá e EUA, para o passeio pelo Titicaca.
De manhã, o nascer do sol reflectido nas janelas das casas de Puno, à beira do lago, é um espectáculo espantoso.
O passeio começou com a visita às bizarras ilhas flutuantes dos Uros. Os tipos vão sobrepondo raízes de uma planta aquática, a tutora, camadas sucessivas, até obterem uma plataforma com cerca de 2 metros de espessura, e vivem em cima daquilo. Têm escola, posto médico mercearia e tudo. São 45 ilhas que flutuam no lago Titicaca. Assim vivendo, os Uros não pagam impostos. Claro que, hoje em dia, os Uros vivem praticamente só do turismo e, quando chegámos, estava tudo montado para nos receber: as banquinhas com a tralha do costume, os putos à nossa volta, vendendo postais e bugigangas.


Artur no beiral de uma ilha flutuante dos uros

Andar sobre estas ilhas é algo de insólito; os pés parecem afundam-se nas tutoras e todo o corpo vai abaixo. Estranho mas fascinante...

15h20 – a ilha de Taquile
Um povo teve uma grande ideia: deixar de trabalhar e passar a viver só para o turista. Fomos visitar esse povo, na ilha de Taquile, em pleno Titicaca. Está tudo pensado ao pormenor, de modo a despertar a curiosidade do turista. Após de cerca de 2 horas de lancha a motor, chegamos ao porto de Taquile, que não passa de um estrado de madeira, sobre estacas, onde as lanchas são amarradas. Os turistas desembarcam e o guia dirige-se logo a uma barraca, onde paga a nossa entrada na ilha. Seguem-se quase 5 km a subir pela ilha acima, por um caminho pedregoso e irregular. Se o lago está a 3800 metros acima do nível do mar, nós escalamos a ilha até aos 4 mil metros. Pelo caminho, estrategicamente colocados, um ou outro índio expõe-se a ele próprio, pondo-se a jeito para a foto e esperando, em seguida, pela propina: um velho a tricotar um barrete (entre os Taquiles, são os homens que tricotam), duas meninas vendendo pulseiritas, uma mulher com uma roca. Nós vamos subindo e vamos fotografando e vamos dando propinas. A paisagem lá de cima é espectacular! O Titicaca a perder de vista e, muito lá ao fundo, as montanhas da Bolívia, com os picos gelados.


Mila, mais ou menos a meio da escalada da ilha de Taquile, com o Titicaca lá ao fundo

Após uma árdua escalada, chegamos a um local indescritível, que é o centro do pueblo: casas em ruínas, outras em construção duvidosa, edifícios de um ou dois pisos, com o adobe à mostra ou com a pintura já muito estragada, uma capela minúscula, duas ou três lojecas com barretes e outras peças em lã; a um canto da praça, quatro homens vestidos a rigor, comem favas cozidas, com vagens e tudo – são os líderes da comunidade. Claro que a tribo vive em comunidade, que é uma coisa que todos os turistas apreciam. Antes de irmos almoçar, são eles que decidem a que restaurante é que vamos. Sim, porque a ilha está cheia de restaurantes, que não passam de barracões com mesas e cadeiras. O restaurante escolhido para o nosso grupo ainda fica uns metros mais acima. Toca a escalar. Almoçámos uma sopa de quinoa (um cereal local), seguida de peixe (a Mila comeu peixe rei, e eu truta. Estava delicioso, o almoço.
Terminado o almoço, regressámos à lancha pelo outro lado da ilha, descendo cerca de 500 degraus escavados na rocha. Amanhã não nos devemos conseguir mexer!
E aqui está mais um anacronismo: um tribo de quechuas descobriu um modo de vida muito conveniente – como a única maneira de ver o Titicaca de cima é subir a ilha de Taquile, organizaram-se de modo a proporcionar ao turista um belo panorama, um trekking de média dificuldade e, claro, um almoço.
Espertos...

Quinta, 20 de Maio
Viagem Puno-Cusco
8h30 – no autocarro
Mais uma surpresa, esta manhã, um extra não incluído no programa da viagem e que nos custou apenas 30 soles em gorjetas.
Faltavam 10 minutos para as 7 quando surgiu um rapazito escanzelado perguntado pelos senhores Santos. Pelos vistos, os estudantes da Universidade de Puno (sim, Puno tem uma universidade!) tinham organizado uma manifestação e bloquearam a estrada. O autocarro que nos levaria a Cusco estava do lado de lá do bloqueio. Então, ele agarrou na nossa mala grande (que pesa mais de 30 quilos) e cada um de nós pegou no resto da bagagem e lá fomos, estrada fora. Cerca de 60 metros mais abaixo, estava uma das famosas carrinhas Toyota, com quatro ou cinco tipos lá dentro, com baldes e outros utensílios, com cara de quem ia para o trabalho. Enfiámos as malas lá para dentro e eu e a Mila sentámo-nos ao lado do condutor. E fomos por ali fora, parando duas vezes para recolher criancinhas que iam para a escola. Estávamos mesmo numa das carrinhas que servem de transporte público!
Cerca de 10 minutos depois, chegámos à Universidade. Grandes pedras bloqueavam a estrada e centenas de estudantes gritavam palavras de ordem. A carrinha parou e toda a gente saiu. O resto do caminho tinha que ser feito a pé, por entre os manifestantes, que nos ignoraram olimpicamente. Mais dois assistentes da Lima Tours estavam á nossa espera e carregaram com as malas, passando por cima de vidros partidos e pedregulhos vários. A confusão era total. Do lado de lá do bloqueio, dezenas de Toyotas aguardavam os passageiros que tinham saído dos transportes do outro lado. O autocarro estava à nossa espera um pouco mais à frente.
Agora, já vamos a caminho de Cusco. O bus é confortável, a estrada não está má, considerando que estamos no Peru e é sempre a direito, através do altiplano.
Em matéria de turismo, o Peru ainda tem muito que aprender. Com tanta beleza natural, não seria difícil fazer um merchandising mais agressivo. Por exemplo, t-shirts a dizer “estive no Titicaca, a 3800 metros de altitude e sobrevivi!”
A primeira paragem foi em Pukara, no meio de lado nenhum: um povoado com algumas dezenas de casas de adobe, com o habitual aspecto de pobreza e, na praça, um mastodonte de uma igreja católica. O costume. Visitámos um pequeno museu com três salas, onde estão expostos monolitos e cerâmicas encontrados em escavações arqueológicas na região e que pertenceram aos índios Pukara, pré-incas, 2500 anos de idade, mais mês menos mês...
A segunda paragem foi em La Raya, o local que marca a separação entre os distritos de Puno e de Cusco, a 4338 metros de altitude! Quer dizer que ultrapassámos os 4 mil metros acima do nível do mar! E a Mila notou alguma dificuldade em respirar. Parámos para fotografar a montanha de Chimboya, com os cumes gelados e comprar mais umas bonequinhas e umas pantufas para a Marta. E ainda fotografar autóctones, com os seus trajes tradicionais, acompanhados pelos seus llamas. A diferença para o norte de África é que estes, aqui, não pedem dinheiro, em troca da foto. No nosso caso, são eles que ganham porque, assim, nós fotografamos e damos a propina, enquanto que, em Marrocos, um tipo sente-se inibido e prefere não fotografar.


O local mais alto por onde passámos: La Raya – 4338 metros de altitude!

Parámos para um almoço agradável e rápido e, pouco depois, uma espécie de quinta, onde pudemos ver de perto lamas e alpacas bebés – além de mais artesanato, claro; aproveitei para comprar uma flauta transversal para o Pedro.
Entretanto, a paisagem mudou radicalmente, à medida que fomos diminuindo de altitude: as montanhas áridas e castanhas e os campos secos a perder de vista foram dando lugar a montanhas e prados verdejantes. Estaremos agora, talvez, a cerca de 3500 metros acima do nível do mar e 500 metros fazem toda a diferença.
A 120 km de Cusco, parámos em Raqchi, para ver as ruínas de um enorme templo inca, rodeado de casas e celeiros. O local terá servido de hospedaria para os viajantes que se deslocavam entre Puno e Cusco, a capital do império Inca. O que resta do templo é uma parede enorme, pelo que as dimensões devem mesmo ter sido gigantescas. Os espanhóis trataram de o destruir e os tremores de terra deram cabo do resto. No lugarejo de Raqchi, tal como ontem, em Taquile, a Mila distribuiu canetas da propaganda médica. Foi um êxito – uma dúzia de miúdos, de mão estendida, pedindo uma caneta.

22h10 – Hotel Libertador, quarto 370
A última da nossa viagem Puno-Cusco foi num cu-de-judas chamado Andahuaylillas, um pueblo minúsculo com uma igreja monumental, toda decorada com frescos e um altar com uma talha dourada riquíssima. Mais um anacronismo deste país: uma povoação miserável, com casas de adobe em muito mau estado, crianças andrajosas e descalças brincando pelas ruas e, de súbito, erguendo-se na praça, uma igreja monumental, insultando a pobreza!
Pouco depois, chegávamos aos arrabaldes de Cusco. O guia do bus, Saúl, nasceu em Cusco e demonstrou todo o seu orgulho pela cidade natal que, nas suas palavras, é uma cidade moderna, com hotéis, restaurantes, discotecas e internet! Pois os arrabaldes são de fugir: trânsito caótico, casas em ruínas, montes de terra e pedregulhos, lojas decadentes, automóveis abandonados, cães vadios e o cheiro a gasóleo pairando no ar.
O Saúl é um jovem simpático, cheio de boa vontade, que fala um inglês péssimo. Por mais de uma vez tivemos que o ajudar nas suas explicações, porque lhe faltava o vocabulário. Quando soube que nós percebíamos, quer o espanhol, quer o inglês, ficou contentíssimo porque, assim, só teve que falar em inglês a viagem toda. Mais uma vez, o acaso turístico juntou, no mesmo autocarro, para além de dois portugueses (os senhores Santos), um casal de franceses, alguns ingleses, uns quantos alemães – éramos 20 pessoas ao todo e estávamos dependentes das explicações do pobre Saúl que, para ser um guia turístico sofrível, necessitaria de mais umas quantas lições.
A viagem entre Puno e Cusco acabou por ser uma passeio agradável, que nos permitiu conhecer um pouco mais deste país de contraste e nem demos pelas oito horas que se passaram.

Cusco
O Hotel Libertador de Cusco é o terceiro desta cadeia de hotéis e talvez o mais bonito. Fica mesmo no centro da cidade, em frente à igreja de Santo Domingo. Depois de nos instalarmos, fomos fazer uma volta de reconhecimento até à Plaza de Armas. O centro de Cusco é muito cosmopolita e todo virado para o turismo e a Plaza de Armas é muito bonita, destacando-se os varandins de madeira, estilo colonial, as arcadas a toda a volta da praça, as igrejas e, ao fundo, em redor, nas encostas montanhosas, as luzinhas de centenas de casas.
Amanhã, conheceremos melhor esta cidade.
Quanto ao soroche, parece ter-se instalado na Mila, que se cansa com muita facilidade, até a comer!
Jantámos no hotel, enquanto um grupo folclórico toca e dançava modinhas.
E vamos dormir...

Sexta, 21 de Maio
13h30 – lobby do Libertador

Esta noite dormi bem; a Mila continua com jet lag e soroche, pelo que adormece que nem uma pedra às 10 da noite e às 3 da matina está acordada...
Após o pequeno almoço, partimos em busca de Cusco e andámos toda a manhã um total de 10 km, embora “despacio”, por causa da altitude.


Mila na Plaza de Armas, em Cusco, com a Catedral ao fundo

Regressámos à Plaza de Armas, que fotografámos de todos os ângulos. Autóctones abordam-nos a todo o momento, com propostas que vamos recusando: passeios a cavalo, postais ilustrados, escovar os sapatos, bonequinhas tradicionais, refeições típicas, etc. numa das ruas circundantes, duas criancinhas, vestidas com trajes tradicionais e com um cachorro ao colo, fazem-se a uma foto, em troca de umas moedas. Não resistimos. Depois aparece uma mulher de idade indefinida que nos convence a comprar duas cabaças com motivos incas.
Fomos caminhando, aparentemente sem destino, notando os varandins de madeira esculpida, os portais coloniais e as bizarrias próprias destes locais, como uma farmácia com internet, denominada, obviamente, Farmanet. Das lojinhas para turistas, música peruana sai pelos altifalantes e, rua sim, rua não, mais uma versão do El Condor Pasa. Já devemos ter ouvido mais de 300 versões diferentes (nenhuma do Simon & Garfunkel, por acaso...). Bebemos dois expressos e comemos uma torta de queijo na Calle del Sol. Outra bizarria: nesta rua, à porta dos bancos, tipos fazem câmbios; numa mão, uma calculadora, na outra, um maço de dólares; mais abaixo, á porta da telefónica, mulheres vendem cartões para telefonar.
De regresso à Plaza de Armas, metemos por uma rua bem estreita e, depois da insistência da Mila, subimos uma outra rua muito íngreme, bem devagarinho, por causa da falta de ar – e estávamos na parte mais antiga de Cusco, com ruas estreitas, com canais para que a água das chuvas possa escorrer encosta abaixo, uma vista espectacular sobre o vale, muitos restaurantes, galerias de arte e lojas de recuerdos. Na Plaza de San Blas, a Mila comprou três tangerinas a uma velhota e eu consegui comprar duas latas de Inca Cola – que as ruas do peru estão tão limpinhas, que nem beatas há no chão, quanto mais latas. Também é verdade que raramente vi um peruano a fumar – a altitude deve desaconselhar tal vício. E esta: o peru deve ser o único país do mundo onde a cola é amarela!
Antes de subirmos a tal rua, mais duas criancinhas vestidas a rigor caçaram a Mila para mais uma foto, desta vez com um cordeirinho ao colo. Em todo o lado nos perguntam de onde somos, se estamos a gostar de Cusco, se nos têm tratado bem. Gente simpática, uma terra bem bonita onde nos sentimos bem.
Almoçámos numa pizzaria: uma entrada de ceviche de peixe rei (peixe cru “cozinhado” em sumo de lima e picante à brava, para o meu gosto) e, depois, uma pizza vulgar.

19h15 – depois do tour
Fizemos um tour da cidade bastante interessante porque visitámos sítios que, a penates, tinha sido impossível.
A guia, Sílvia, era uma daquelas pessoas que se entusiasmam com o seu trabalho. Explicou tudo muito bem explicadinho, por vezes explicado demais, na medida em que nos encheu de informação, a maior parte da qual se evapora á medida que a visita prossegue. Éramos um grupo de 20 pessoas, de diversas nacionalidades, mais uma vez juntos por casualidade.
Começámos pelo Convento de Santo Domingo, construído sobre as ruínas do Templo de Qoricancha – um complexo que inclui o Templo do Sol e o Templo da Lua, entre outros. Lá estão os enormes blocos de pedra que os incas talhavam na perfeição com a ajuda de hematites. O desprezo de Sílvia pelo Convento católico era evidente – toda a sua atenção, durante a visita, se concentrou no que resta da grande construção inca. E o que espanhóis não destruíram foi o que definitivamente não conseguiram destruir, já que nunca conseguiram perceber a chamada “chave da abóbada” ou “keystone”, isto é, a pedra essencial que mantém todo o conjunto de pedras no seu devido lugar.
Seguidamente, visitámos a Catedral de Cusco, outra enormidade, como se os castelhanos quisessem mostrar aos conquistados que eram capazes de construir templos muito maiores que os deles, em plena capital do império inca; altares em talha dourada e prateada, riquíssimos, enormes frescos, gigantescas telas. No entanto, todos estes trabalhos foram executados pelos índios, sob direcção dos castelhanos e, portanto, aqui e ali, motivos locais dão um certo toque de anacronismo; por exemplo, numa tela da última ceia, o prato que Cristo e os apóstolos se preparam para degustar é, nem mais nem menos, que um porquinho da índia, prato típico desta região.
Seguimos depois para a Fortaleza de Sacsayhuaman, que Sílvia pronunciava de modo a que nos soava a “sexy woman”. Sacsayhuaman foi edificado no alto de um monte que domina Cusco, a cerca de 3800 metros de altitude. Grandes blocos de pedra numa extensão enorme. A guia, cheia de energia, propôs que subíssemos uns quantos degraus de pedra para que, do alto de uma outra colina, pudéssemos observar melhor todo o complexo. Chegámos lá a cima cheios de soroche. Se alguém me tapasse a boca, cairia para o lado. Um dos turistas afirmou: “I left my heart here!”. Mas o panorama era, de facto, soberbo: os tais enormes blocos de pedra, agarradinhos uns aos outros como pedras de Lego e, ao fundo, no vale, 300 metros mais abaixo, a cidade de Cusco e, mais ao fundo ainda, os picos gelados dos Andes.
O sol estava quase a pôr-se, mas ainda fomos ver mais algumas ruínas incas: Puca Pucara, uma espécie de torre para vigiar o avanço dos inimigos; Tambomachay, uma construção em redor de uma nascente; e Qenqo, uma espécie de gruta com um altar para sacrifícios (aqui, já tinha anoitecido e a visita foi vista à luz de isqueiros...)
Terminámos o tour por volta das 18h, na Plaza de Armas e regressámos ao hotel.

22h – depois do jantar
Às 8h levaram-nos para um jantar no Tupura, na Plaza de Armas. Foi um jantar buffet, daqueles mesmo para turista ver, com grupos locais tocando e dançando. Enfim, estava incluído na viagem, mas era dispensável...
Amanhã, partimos para o vale Sagrado dos Incas.
A viagem tem sido óptima e os serviços da Lima Tours excelentes. Esta forma de viajar é porreira. Não estando incluídos em nenhum grupo, estamos à nossa vontade, não temos que aturar companheiros de viagem eventualmente indesejáveis e temos sempre tempo por nossa conta.

Vale de Urubamba
Sábado, 22 de Maio
15h50 – Vale de Urubamba, Hotel Sol y Luna, bungallow nº1

Que surpresa! No meio de lado nenhum, um local tão aprazível como este Sol y Luna, um conjunto de bungallows, desviado alguns metros da estrada e que é um verdadeiro paraíso: flores de todas as cores e feitios, abelhas saltitando, pássaros e passarocos a esvoaçar e a chilrear e, a toda a volta, os Andes, com picos atrás uns dos outros. E uma calma, uma tranquilidade, um descanso do outro mundo.
Às 9 da manhã, vieram buscar-nos ao Libertador: um motorista, Fred e a guia, Marlene, para uma excursão privada ao Vale Sagrado dos Incas.
Depois de subirmos, novamente, até aos 3800 metros de altitude, passando por Sacsayhuaman, começámos a descer e foi descer a sério. Os meus ouvidos deram sinal várias vezes. Estávamos a abandonar a altitude, que deixou algumas marcas, embora ligeiras, sobretudo a insónia, para a Mila, dores de cabeça, algumas tonturas, dificuldade em respirar, sobretudo a subir e epistáxis ligeiras. De resto, podemos dizer que aguentámos bem a altitude, tendo em conta, sobretudo, a escalada de Taquille e, ontem, a subida de Sacsayhuaman. Incomodou-nos mais o cheiro a gasóleo das ruas de Puno e Cusco.
Continuando a descer, em direcção ao Vale de Urubamba, parámos numa espécie de fábrica artesanal, tipo caça-turistas; uma zona com exemplares dos vários tipos de lamas, alpacas e vicuñas e, depois, mulheres e crianças, em trajes regionais, demonstrando os diferentes passos, desde que a lã é tosquiada até à confecção dos tecidos: o modo como se fia a lã, os métodos que se usam para a tingir, com cores naturais, a tecelagem propriamente dita, em teares obviamente manuais e, finalmente, a loja, onde comprámos um pano, porque parecia mal não comprar, e porque é muito bonito, apesar de carote...
A guia revelou-se uma fulana ávida em prestar informações e, depois de nos ter dado uma lição sobre ervas medicinais, que abundam na região de Cusco e que tudo curam (não percebo porque a esperança de vida é tão baixa...), falou-nos longamente da lã, dos llamas e derivados. Mas o melhor ainda estava para vir...
Mais abaixo, já em pleno Vale Sagrado, parámos em Pisac, para dar uma volta pelo mercado local, onde comprámos mais bonecas, outra quena, uma toalha e mais bonecas. A Mila deixou-se ser assaltada pelas miúdas que nos tentam impingir diversos objectos e acabou por comprar dez títeres, a um sole cada um (26 cêntimos!), o que é um insulto para o trabalho que cada dá a fazer. “Señora, compra-me el llama, el cóndor, el macaquito con su hijo, la mariquita!...”, dizem as miúdas, sempre sorridentes. Comprámos e demos-lhes canetas!
Continuámos, depois, através do Vale, a estrada acompanhando a linha férrea que, por sua vez, acompanha o curso do rio Vilcanota, que os incas acreditavam reflectir-se na Via Láctea. Passámos pela cidade de Urubamba, que é um pequeno aglomerado de casas ao longo da estrada, com crianças aos pulos e vacas pastando nas bermas; algumas casas têm um pau enorme, com um pano vermelho na ponta, o que quer dizer que, naquela casa, se vende chicha, que é uma espécie de cerveja feita a partir de milho. E chegámos a Ollantaytambo, onde a estrada termina, dando lugar a um caminho empedrado, que termina num local arqueológico bizarro: pela montanha acima, terraços ou socalcos a perder de vista e, no topo, seis enormes blocos de pedra rosada, que fariam parte de um enorme templo inca. Para lá chegar, mais uma escadaria íngreme e mais uma escalada na nossa viagem ao Peru. Antes de começarmos a subir, a guia deu-nos uma injecção de História do seu país, ao mesmo tempo que o céu se toldava e se levantava uma ventania ameaçadora. E a mulher não se calava! Tal como a guia, ontem, em Cusco, a Marlene expressou todo o seu orgulho pelos antepassados e toda a sua raiva contida pelos “conquistadores”, os espanhóis que ali chegaram e tudo destruíram e tudo roubaram. Falou-nos da falsa crença de que os incas seriam extra-terrestres, que teriam caído dos céus aos trambolhões – provavelmente, não passaria de descendentes dos tiaguanacos, vindos de Puno, terra árida, em busca das terras férteis do Valle de Urubamba. Às tantas, a Marlene baralhou-se um pouco, sobretudo quando começou a falar de Cristóvão Colombo e de Fernão de Magalhães que, segundo ela, teriam sido enviados pelos reis de Espanha para provar que a Terra não era plana. Enfim...
O anacronismo deste império inca é que a sua História começa por volta do ano 800 da nossa Era e termina a 1532, com a chegada do Pizarro. Nesses escassos 700 anos, o império expandiu-se, a partir de Cusco, até Quito, no Equador, Chile, Bolívia e Argentina; construíram-se monumentos grandiosos, com técnicas algo sofisticadas, arrastaram-se gigantescos blocos de pedra, de uma montanha para a outra, trabalhou-se o ouro e a prata, desenvolveu-se toda uma cultura e, de súbito, 11 milhões de incas deixaram-se subjugar por 200 espanhóis!
Quando a Marlene terminou a sua prédica, lá iniciámos a escalada. Ao contrário do que é habitual, a Mila não contou os degraus, tão concentrada estava em não escorregar por ali abaixo. No topo da montanha, os tais seis enormes monolitos rosados que, obviamente não pertenciam àquela montanha, mas sim a outra, em frente, do outro lado do vale!
E bem lá no alto, uma cena confrangedora: um puto, com cerca de 8 anos, vestido com trajes tradicionais, o barrete de lã na cabeça, a sacola, o colete, sentado num pedregulho. “Que faz aqui este menino sozinho?”, perguntamos. “Vive numa aldeia de índios, lá longe; como hoje é sábado e não tem escola, vem até aqui para cantar para os turistas.” – disse a Marlene – “não querem ouvi-lo cantar?” Não podíamos dizer que não. E o puto levanta-se e canta uma cantiga em quechua. Confrangedor, de facto! Ali estavam dois portugueses, no topo de uma montanha dos Andes, a ver um puto a cantar! No fim da canção, a Mila deu-lhe uma moeda, claro. Ter-lhe-ia dado o dobro para não ter que assistir a esta cena...


Mila no alto do Templo de Ollantaytambo

Bom.... depois, foi a descida que, nestas coisas, é sempre pior que a subida: um tipo olha para baixo e sente vertigens.
Terminada a visita, viemos, então, para esta maravilha do Sol y Luna, onde pernoitaremos.
Agora, sentados no terraço do nosso bungallow, desfrutamos esta tranquilidade, com os Andes a vigiarem-nos e muitos beija-flor á nossa volta, chilreando e batendo as asas...

Machu Pichu
Domingo, 23 de Maio
15h10 – estação de Águas Calientes

Quem não viu Machu Pichu não viu nada!
Assim como vale a pena ir ao Egipto só para ver as pirâmides, vale a pena vir ao Peru só para ver Machu Pichu (acentuar o “a” e o “i” e não os “u”).
Levantámo-nos às 6 da matina e ás 7h15 partimos em direcção à estação de Ollantaytambo, numa carrinha com mais quatro americanos.
Logo na estação, começou o espectáculo: acabara de chegar um comboio cheio de autóctones e, de um furgão de carga, começam a sair dezenas de peruanos com enormes trouxas às costas – eram vendedores ambulantes que se dirigiam para o mercado que fica em frente ao Templo de Ollantaytambo. Impressionante o modo como corriam, por cima das pedras da linha férrea, carregando volumes muito maiores que eles próprios.
Depois, chegou o nosso comboio e começou a travessia do Vale Sagrado, sempre ao lado do Vilcanota. Uma experiência única! À medida que avançávamos, a vegetação ficava mais luxuriante e, na parte final da viagem, a toda a volta do comboio, árvores com flores parasitas, trepadeiras empoleiradas nos cabos eléctricos, a selva em toda a sua pujança.
No início da viagem, que durou hora e meia, veio ter connosco um tipo simpático, chamado Washington, que se apresentou como nosso guia. Isto é que é organização!
Ao longo do trajecto, vimos mais algumas ruínas incas, encravadas nas encostas das montanhas e o famoso inca trail: quem queira e tiver força nas pernas, pode caminhar entre Cusco e Machu Pichu, por um percurso através das montanhas, que terá sido usado pelos incas; são 4 dias de caminhada.
Chegámos à estação terminal de Águas Calientes e mudámos para um mini-bus, que nos levou 400 metros mais acima, ao longo de 8 quilómetros de curvas e contracurvas; a Mila contou 16 curvas de 180 graus.
Lá no alto, deixámos a mala num armazém e iniciámos a visita de Machu Pichu, guiados pelo tal Washington e integrados num grupo de uma dúzia de pessoas.


Artur em Machu Pichu – rodando a foto 90 graus, lá está o perfil do índio na montanha

Não vou entrar em pormenores históricos sobre Machu Pichu. Vem tudo nos livros; por exemplo, que a cidade foi encontrada em 1911 por um americano (Hiram Bingham), que sacou tudo o que pôde, nomeadamente cerâmicas e objectos em ouro, que estão agora no museu da Universidade de Yale. História repetida e já conhecida. Estes e outros pormenores estão, como disse, nos livros. O que me interessa foi o que sentimos, durante a visita ao Santuário de Machu Pichu.
Começámos por mais uma escalada de dezenas e dezenas de degraus escavados na rocha – tem sido a nossa sina, nesta viagem! Subir, quando já estamos tão altos!
Depois, chegados lá a cima, a visão é única: o conjunto de terraços decorativos, as casas, os celeiros e os templos, com as montanhas verdejantes a toda a volta; é simplesmente espectacular e difícil de descrever por palavras. Vimos o Templo do Sol, com uma janela por onde o sol entra no solstício de Inverno (21 de Junho), o templo do Condor, o calendário solar, o Templo das Três Janelas. Vimos, na montanha, o perfil do índio, a face do puma, o condor de asas abertas. Subimos e descemos degraus e tirámos dezenas de fotos a este lugar singular. Pouco importa se era uma cidade, se era um local de culto, se era ambas as coisas – o que importa é que é um sítio insólito, a 2400 metros de altitude, no meio da selva andina.
Cansados, sujos de pó, almoçámos no Sanctuary Lodge e regressámos a Àguas Calientes. Neste pequena povoação ainda se notam os efeitos de uma derrocada, ocorrida há cerca de um mês e que destruiu algumas casas e levantou os carris, deixando cerca de 500 turistas isolados, que foram, depois, resgatados de helicóptero.

Alguém disse que, em qualquer momento, em algum lugar do mundo, está a tocar uma canção dos Beatles. Hoje já ouvi duas: “Here, there and everywhere”, na música ambiente do comboio, em versão instrumental, tipo música de elevador, e “Yesterday”, tocada numa quena por um vendedor ambulante do mercado de Águas Calientes.
Estamos de regresso a Cusco. De comboio, serão 4 horas de viagem. A primeira parte da viagem, até começar o vale, é impressionante porque existem troços em que o comboio passa entalado entre duas montanhas imponentes. Depois, entramos no vale e as montanhas recuam. Além, em frente, está um pico altíssimo e, abaixo dele, um floco de nuvem; mais ao lado, um pico coberto de neve.
Uma curiosidade desta viagem de comboio: a viagem é longa, começa a anoitecer e há que entreter os passageiros. Como o comboio não tem monitores onde possamos ver algum documentário ou um filme, assistimos a uma passagem de modelos efectuada pelos dois empregados da carruagem; é verdade: o rapaz e a rapariga que nos verificaram os bilhetes e nos indicaram os nossos lugares, despiram os uniformes, vestiram camisolas e casacos e écharpes em lã de alpaca e estão a desfilar pela coxia do comboio!
E esta?!

22h30 – Cusco, Hotel Libertador, quarto 370
O final da viagem de comboio reservou-nos outras surpresas.
Em primeiro lugar, o facto de o comboio, nos arredores de Cusco, passar literalmente junto às casas, roçando praticamente as paredes. Era ver o comboio passar e o pessoal, nas ruas, acenando aos turistas, nomeadamente crianças pequenitas, sozinhas, aos pulinhos, mesmo junto ao comboio – quais guardas, quais passagens de nível! Isso é para o Primeiro Mundo!...
Em segundo lugar, o estranho facto de termos visto vários casais de namorados, dando beijinhos e trocando carícias mesmo junto à linha férrea, aproveitando o escuro da noite; será estimulante namorar ao pé de carris?
Em terceiro lugar, o modo como o comboio se aproxima da cidade. Depois de atravessar o Vale Sagrado, o comboio sobe uma das montanhas que rodeiam Cusco. Às tantas, apagam-se as luzes das carruagens e temos uma vista aérea da cidade. Fantástico! As luzinhas das casas espalhando-se pelo vale – porque, apesar de ficar a 3500 metros de altitude, Cusco fica num vale (acrescente-se, aliás, que o Vale Sagrado tem uma altitude média de 2800 metros...). depois, o comboio inicia a sua lenta descida para a cidade, mas fá-lo em ziguezague; avança um pouco, muda de linha, desce mais um pouco, recuando, muda de linha e anda em frente novamente e, assim sucessivamente, durante cerca de uma hora, até chegar à cidade.

Segunda, 24 de Maio
11h40 – aeroporto de Lima

Hoje está a ser um dia de seca. Estamos em trânsito.
Acordámos às 6 da manhã e às 7h30 o nosso transfer levou-nos até ao aeroporto de Cusco – que dizem, com ironia, ser internacional porque, além dos voos nacionais, tem voos para La Paz, na Bolívia.
O avião partiu às 9h15 e uma hora depois estávamos em Lima. Depois, fizemos o check in do voo para Iquitos, deixar duas malas no armazém, para não irmos carregados para a selva e pronto!
Agora, temos que esperar até às 17h30! Vão ser mais de 7 horas fechados no aeroporto que, ainda por cima, está em obras e não tem nenhum local para um tipo se sentar, a não ser nos restaurantes!...
Entretanto, fomos aqui a uma mini-free shop e comprei quatro latas de cerveja peruana (Cusqueña, pequena e grande, Callao e Cristal), já que não consegui encontrar nenhuma pelas ruas. Depois, fechei-me na casa de banho e despejei o conteúdo das latas na sanita, para não ir carregado. Foram mais de 2 litros de cerveja pelo cano abaixo, a bem da colecção!
Lima está coberta de bruma, que parece ser habitual na maior parte dos dias, o que faz atrasar muitos voos.
Com tanto tempo pela frente, penso que vou acabar de ler “O Código Da Vinci”, o excelente livro que trouxe para o Peru.

Amazónia
Terça, 25 de Maio
12h00 – Ceiba Tops, bungallow 701

Hoje bebi sumo de cocona e só por isso, o dia está ganho e a seca de ontem foi esquecida!
O voo para Iquitos só saiu de Lima por volta das 18 horas!
Passeámos em redor do aeroporto, almoçámos, passeámos outra vez, bebemos um café, andámos de um lado para o outro, lemos e foi uma seca monumental!
Depois de um voo de hora e meia, aterrámos em Iquitos e, assim que saímos do avião, sentimos o bafo do calor e o cheiro a bolor, tal e qual como em Manaus, no ano passado.
Levaram-nos para o Hotel Dorado Plaza, através de ruas muito movimentadas, com centenas de triciclos motorizados e autocarros giríssimos, de revestimento em madeira colorida e com janelas sem vidros. Trânsito caótico, como já vem sendo hábito, mas totalmente diferente de Arequipa, Puno e Cusco – parece que estamos noutro país!
O Dorado Plaza fica em plena Plaza de Armas e é um daqueles hotéis com os quartos virados para o lobby. Ar condicionado no máximo, claro. Jantámos, bebemos o café e toca a dormir.
Esta manhã, levantámo-nos às 6h e ainda tivemos tempo para dar uma pequena volta em redor da Plaza de Armas, ver o rio (um afluente do Amazonas), as casas sobre palafitas, a bagunça das ruas, a Iron House (uma construção de Eiffel) e tornei-me membro do FBI. No lobby do hotel, num jornal local, tinha visto o anúncio. Procurei a rua indicada e comprei a t-shirt que me conferiu o grau de membro do FBI – “Federacion dos Borrachos de Iquitos”; trata-se de uma brincadeira de alguns ingleses ou americanos residentes em Iquitos e parte da receita da venda das t-shirts reverte para as crianças pobres de Iquitos. Fui atendido por um inglês bem disposto e barrigudo que, depois de me vender a t-shirt, exclamou: “Welcome to the club!”
Às 9h30 vieram buscar-nos. Seguimos num daqueles autocarros sem vidros nas janelas, juntamente com um grupo simpático e americanos que se espantaram com a nossa pronúncia (pois não! Habituados aos peruanos a falar inglês!...) e fomos até ao molhe. Aí estava o nosso guia privado, Paul, que nos deu todas as informações sobre esta nossa curta estadia na Amazónia. Depois de 40 minutos numa lancha a motor, que parecia voar sobre as águas, chegámos ao Ceiba Tops, um simpático conjunto de bungallow à beira do Amazonas e com selva a toda a volta.
Antes do almoço, já fizemos um passeio de 2 km por aqui, fotografando plantas estranhíssimas, formigas gigantes, uma iguana enorme e outras curiosidades selvagens.
Ah! E fomos recebidos com um copo do tal sumo de cocona, que é delicioso, como o seu nome indica!...

16h45 – depois da caminhada

Depois do almoço, que estava óptima (dourado, um peixe do Amazonas, com arroz e um feijão divinal), fomos fazer a caminhada na selva. Cerca de 5 km em duas horas, com o nosso guia privado, Paul.
Esta selva pareceu-nos mais selvagem que a de Manaus, ou então, pudemos apreciá-la melhor porque não fomos em grupo. Além da vegetação luxuriante, com flores lindíssimas e árvores espectaculares, andámos atrás de um bando de macacos, vimos um abutre fêmea que guardava o seu ninho com dois ovos, borboletas fantásticas, diversas variedades de rãs minúsculas, que pareciam pequenas folhas de árvore e, claro, milhões de mosquitos, que não nos largaram. Mais uma vez, o Previpic parece ter sido eficaz porque ainda não demos por nenhuma picada.


Aqui estamos os dois, durante a caminhada pela selva

A caminhada fez-se por um trilho com muitos altos e baixos e com locais tão sombrios, devido à espessa vegetação, que o chão estava transformado em lama. O guia foi-nos dando informações sobre as lianas, a árvore que caminha (que em vez de um tronco único tem inúmeros pequenos troncos, como se fossem pernas que, depois, confluem para um tronco comum), os cedros, a gigante ceiba, que dá o nome ao lodge onde estamos instalados, as diversas qualidades de gengibre, cujas folhas parecem seda ao toque, frutos exóticos, os inúmeros fungos que nascem por todos os lados, um certo tipo de pequenas árvores que vivem em simbiose com uma espécie de formigas, as palmeiras, etc.
Foram 2 horas de National Geographic ao vivo e a cores !

19h45 – no lobby do Ceiba Tops
O resto da tarde foi passado a acabar a leitura de “O Código de Da Vinci”, passá-lo à Mila e começar “O Prémio”, do Montálban; e dormitar... Por volta das 18 horas, fomos até junto ao Amazonas ver o crepúsculo e começou a chover uma chuva grossa e obviamente tropical, como se alguém tivesse aberto uma torneira, de repente. E os mosquitos atacaram em força. Fugimos para o quarto.
Agora, aguardamos o jantar. Aqui, as refeições são a horas certas: pequeno almoço às 7h30, almoço às 12h30 e jantar às 19h30. O lobby, que se continua pela sala de refeições, é uma espécie de grande cabana, rodeada de rede por todos os lados; mesmo assim, à volta dos candeeiros, centenas de mosquitos enlouquecem. Ao fundo, o ruído ensurdecedor das cigarras, rãs e restantes animais, que passam a noite a falar uns com os outros sobre coisa que não nos dizem respeito.
Ao almoço, contei 23 hóspedes. Agora, apenas aqui estão 6, além de nós. Os guias tocam guitarra; além de explicarem a selva, animam os turistas – já que aqui, obviamente, não há televisão, nem rádio, nem telemóveis.

Quarta, 26 de Maio
Ontem, adormeci instantaneamente e dormi de seguida até o guia nos acordar às 5h30! A Mila, pelo contrário, dormiu aos supetões por causa das comichões. Desligámos o ar condicionado e o frigorífico, para limitar o ruído de fundo aos cânticos dos bichos e hoje acordámos todos picados pelos mosquitos e com o chão encharcado pelo degelo do frigorífico!
De madrugada fomos, de bote a motor, até a um braço do Amazonas, ver pássaros. Birdwatchers – outra novidade nesta viagem. Vimos gaivotas, papagaios, periquitos, cucos, garças, martins pescador, um pássaro que, quando canta, se dobra todo para a frente, como se estivesse a fazer uma vénia, outro que, quando canta, abana a cauda para um lado e outro, ao ritmo do canto. O guia e o homem do leme iam chamando a atenção para os pássaros que iam surgindo e faziam-no com entusiasmo, ficando genuinamente felizes quando descobriam algum pássaro diferente. Vê-se que gostam do que fazem e que amam a natureza. Vimos abutres, uma iguana pendurada numa árvore, um pássaro com a cabeça toda branca, outro todo amarelo – as margens do Amazonas fervilham de vida a esta hora da manhã; depois, o sol começa a aquecer e as aves internam-se mais na floresta, em busca de sombra.

11h45 – depois de visitar os yáguas
Regressámos de mais um passeio, ainda mais picados do que saímos. O Previpic falhou, mas também, segundo o guia, há mais mosquitos do que habitualmente.
Começámos por ir rio acima, à procura do golfinho rosado. Andámos às voltas, ao longo dos vários braços do rio, até que vimos um. A excitação do guia e do tipo do leme foi enorme. Lá vimos o golfinho (vista muito parcial) que, de meio em meio minuto, punha a cabecinha de fora para respirar.
Ok. Uma parte do programa estava concluída com êxito. Em seguida – e em vez da pesca da piranha, que recusámos – fomos ver as Victoria Regina, uma espécie de nenúfares gigantes. Para isso, aportámos a uma das muitas ilhotas do Amazonas e chegámos a uma plantação de abacates e bananeiras, onde nos aguardava uma família de autóctones. Embrenhámo-nos na plantação até a uma pequena lagoa, onde estavam as tais Victoria Reginas, enormes, algumas com dois metros de diâmetro. Fomos vê-las de perto, numa barcaça guiada pelo Aurélio, um rapaz da tal família, que também nos mostrou um caimão negro bebé, que tinham capturado no dia anterior e amarrado com uma corda, para o mostrarem aos gringos – nome por que são conhecidos aqui os turistas, mas sem o sentido pejorativo dos filmes de cowboys.
Segunda parte do programa concluído.
Veio então a parte mais folclórica: a visita a uma aldeia de índios yáguas. Seis ou sete famílias que vivem de um modo ainda bastante primitivo, apesar das visitas frequentes dos turistas. Fomos recebidos pelo chefe, de saiote feito de folhas secas e que estava constantemente a enxotar as centenas de mosquitos que o atacavam – e a nós também. Segundo informação do guia, o chefe desta tribo de yáguas tem ajudado equipas de antropólogos no estudo dos índios do Amazonas, trabalho pelo qual é remunerado; depois, vai a Iquitos e implanta dentes de ouro!


Foto de família: tribo dos yáguas e nós os dois

O chefe demonstrou como se lança uma zarabatana e convidou-me a experimentar e não me saí mal: a primeira zarabatana caiu no chão, mas as outras três acertaram os alvo – uma estaca de madeira espetada no chão, talvez a uns 10 metros.
Seguidamente, o chefe foi buscar um fruto, que abriu e, raspando com um dedo nas sementes, produziu um líquido vermelho com que decorou o rosto; e depois, pintou a cara da Mila também. Terminadas as variedades, fomos às compras. Claro que os yáguas têm tudo montado para sacar alguns soles aos turistas. Comprámos um par de maracas, um colar, uma pulseira e dois sacos de rede – tudo por 60 soles. Tivemos, portanto, direito a fotografia de família: juntámo-nos todos no terreiro, o chefe, várias mulheres e muitas crianças, e nós os dois, claro, e o Paul fotografou-nos.
Regressámos ao lodge todos suados, com os ténis cheios de lama, completamente picados pelos mosquitos, mas satisfeitos por mais esta experiência.
E bye-bye selva amazónica!

13h30
Estamos prestes a deixar o Ceiba Tops. A lancha partirá às 15h para Iquitos e, depois, vamos para o aeroporto, de regresso a Lima.
A estadia em Ceiba Tops foi, sem dúvida, outro dos pontos altos desta nossa aventura peruana. O pessoal foi sempre muito simpático, desde o rapaz que nos serviu as refeições até ao guia que andou connosco neste dia e meio. As instalações são óptimas, o local é soberbo, os passeios foram agradáveis e é com pena que nos vamos. As refeições foram excelentes, todas bem confeccionadas apesar dos produtos “sencillos”, isto é, saladas, legumes, arroz, frango ou peixe, mas sempre tudo muito saboroso. Hoje, ao almoço, éramos apenas 5 turistas; disseram-nos que os outros tinham ido para outros lodges. A Explorama, que é a concessionária destes locais, tem vários lodges ao longo do Amazonas e há quem vá subindo, ou descendo, o rio, e pernoitando nos vários lodges. Estava aqui um casal de ingleses que vinha por oito dias, apenas para ver pássaros.
E, de súbito, a chuva. Por alguma razão chamam a isto “the rain forrest”... Disse-nos o guia que chove 250 dias por ano. De facto, ontem à noite choveu a bom chover, desde a hora do jantar até não dei quando, porque soçobrei ao sono. Hoje, estávamos a almoçar quando caiu um aguaceiro forte. Felizmente, não choveu durante nenhum dos nossos passeios.

19h30 – Voo Iquitos-Lima
Quanto mais viagens de avião faço, mais medo tenho, sobretudo da descolagem e d aterragem! Há uns tempos para cá que mantenho os olhos fechados durante estas duas manobras. O levantar voo assusta-me especialmente e mantenho os olhos fechados até que o sinal de “apertar o cinto” se apague, o que quer dizer, habitualmente, que o avião estabilizou a altitude.
Nesta nossa viagem ao Peru, o avião tem sido o meio de transporte mais utilizado. Foi Lisboa-Madrid-Lima, depois Lima-Arequipa, Arequipa-Puno, Cusco-Lima-Iquitos; agora Iquitos-Lima e ainda faltam Lima-Ica, avioneta sobre as linhas de Nasca, Ica-Lima e Lima-Madrid-Lisboa. Uf!
Aqui, no Peru, voámos quase sempre na LAN Peru e, só agora, de e para Iquitos, é que viajámos na Aerocontinente. Nestes dois últimos voos, as hospedeiras serviram-nos um pacote de bolachas com recheio de queijo e outro pacote com batatas fritas e aperitivos de queijo, além de uma bebida à escolha (café, água, inca cola, rum ou vodka!)
Os aeroportos também têm sido outra curiosidade. O de Arequipa, com os três vulcões à volta; o de Puno, cuja sala de embarque é pouco maior que a nossa sala de estar; e o de Iquitos, que pouco mais é que um barracão, aberto em cima, junto ao tecto, para manter a (pouca) circulação do ar e deixar entrar os cabrões dos mosquitos!

Quinta, 27 de Maio
Linhas de Nasca
19h45 – Lima, Swissôtel, quarto 1012

No que respeita ao take off e landing, hoje foi o dia pior – ou melhor, consoante a perspectiva.
Fomos num avião a hélice da Aerocondor até Ica, num voo de 40 minutos, sempre com música ambiente para abafar o ruído das hélices; depois, sobrevoámos as linhas de Nasca numa avioneta com 6 lugares, incluindo o piloto; e regressámos no primeiro avião.
E tivemos várias surpresas...
No aeroporto Jorge Chavez, em Lima, na zona dos voos nacionais, aguardávamos pelo voo das 10h30 quando os nossos nomes foram chamados na instalação sonora. Estavam à nossa espera para o voo das 9h30! Fomos a correr e embarcámos. Pelos vistos, nestes voos é possível fazer coisas destas: havia duas vagas, eles sabiam que nós estávamos por ali e chamaram-nos. No avião, além de nós os dois, duas americanas e mais de 20 japoneses!
O voo foi bom e curto (38 minutos, precisamente, disse-nos uma das hospedeiras).
Aterrámos no pequeno aeroporto de Ica e inscrevemos os nossos nomes e pesos num livro – mais uma vez, como aconteceu no passeio de helicóptero sobre o Grand Canyon, há 8 anos, os passageiros da avioneta iam ser escolhidos pelo peso.
Outra curiosidade: o rapaz que serviu de guia, falava japonês, aparentemente com fluência. Pelo menos, os japoneses reagiam quando ele falava... Explicou-nos, depois, que era fácil falar japonês, porque existiam muitos vocábulos iguais ao espanhol, embora com significados diferentes. Deu como exemplo algo como “una casita”, vocábulo japonês que quer dizer “tenho fome”, mas que soa como se fosse uma palavra castelhana. Ok, pode ser, mas eu não pesco nada de japonês, a não ser “arigato” e “sayonara”, apesar de ter passado umas horas com estes japoneses.
Junto ao aeroporto de Ica, há um complexo turístico com loja de souvenirs, cafetaria, piscina e mini-zoo, onde vimos o primeiro condor do Peru – um pobre bicho enorme, fechado numa gaiola. Este condor, coitado, no pasa!...
Antes de sobrevoarmos as linhas de Nasca, fomos visitar um pequeno museu muito interessante, com diversas coisas da cultura dos índios Nasca, que desconhecíamos em absoluto: cerâmicas ricamente decoradas e em óptimo estado, múmias muito bem conservadas para a idade, instrumentos musicais, armas, etc. Os Nasca viveram entre 2000 AC e 200 DC e, pelos vistos, tinham uma cultura muito elaborada.
Depois do museu, fomos visitar um oásis. Ica é uma pequena localidade junto à costa e rodeada de deserto por todos os lados – as nuvens passam-lhe por cima e despejam-se nos Andes, de modo que, aqui, chove três dias por ano (ou serão três horas? De qualquer modo, chove muito pouco). No entanto, o subsolo é muito rico em água, razão pela qual, Ica é verdejante, apesar do deserto que a rodeia. As dunas são tão altas que dão para fazer “sand-board” e descida em buggy. Existe aqui, até a duna mais alta do mundo, com 2 mil metros de altitude, que sobrevoámos a caminho das linhas.
Andámos um pouco de autocarro, pelo meio do deserto, até a um pequeno oásis, com palmeiras e uma lagoa. Depois, regressámos ao aeroporto.
E chegou o momento de entrarmos na avioneta. O guia escolheu três japoneses para nos acompanharem e o piloto olhou para o nosso grupo de cinco pessoas, escolhendo-me a mim para seu “copiloto”. A Mila ficou no banco de trás. Seguiram-se cerca de 70 minutos inolvidáveis, para mim, e de tortura para a Mila. E afinal, é fácil: depois de levantar voo, o piloto limita-se a carregar nuns botões, rodar umas roldanas e até se dá ao luxo de tirar as mãos daquela coisa que não se chama volante, mas é como se fosse.
Demorámos cerca de 35 minutos a chegar às linhas. Antes, tivemos que sobrevoar Ica e os Andes, que ali não são muito altos, mas sempre provocam alguma turbulência (a Mila diz que foi muito forte...). depois, é a extensão enorme do deserto, rasgado pela estrada pan-americana, que vai do Alasca à Patagónia, e que nós já tínhamos percorrido em parte, quando viajámos pela Califórnia.
E começaram a surgir as famosas figuras que os nascas desenharam no chão do deserto. A primeira foi o chamado astronauta, gravado na encosta de um monte (32 metros de altura!) – uma figura antropomórfica que pode, talvez, fazer lembrar um astronauta desenhado por uma criança ou, para os mais imaginativos, alguns extraterrestres dos filmes de Hollywood. O piloto indicava-nos o desenho, inclinava a avioneta para o lado direito, para que nós a pudéssemos ver e fotografar e, depois, inclinava o aparelho para o lado esquerdo, para que os outros também vissem. E era nestas manobras, quando o horizonte se inclina todo, que a Mila ficava mais aflita. Não há dúvida que faz um bocado de confusão ver o horizonte mover-se daquela maneira, mas aguenta-se bem, acho eu...


Uma das mais impressionantes figuras de Nasca, conhecida como o astronauta

Depois do astronauta, as restantes figuras estão todas gravadas no chão do deserto: o colibri, o condor (136 metros de comprimento), o papagaio (200 m.), a árvore (97 m.), as mãos (45 m.), os trapézios; o macaco e o cão, não consegui ver. Muito estranho, tudo isto! o que terá passado pela cabeça dos nasca para desenharem estas figuras no deserto – e não só as figuras, mas incontáveis linhas, desenhos geométricos, rectângulos que parecem pistas de aterragem, algumas com 30 km de comprimento? Foi alemã Maria Reiche que mais estudou estas linhas; descobertas em 1926 pelo arqueólogo peruano Toribio Mejia, só em 1941, o marido de Maria, o norte-americano Paul Kosok, começou a estudá-las com mais seriedade, passando depois o trabalho à mulher. Segundo a interpretação de Maria Reiche, estas figuras representariam uma espécie de calendário astrológico, para estabelecer as épocas agrícolas. Há outros investigadores que dizem que tudo isto é obra de extraterrestres ou para honrar extraterrestres. Há ainda outros, mais realistas, que chamam a atenção para o facto dos nascas consumirem plantas alucinogéneas. Ora aí está! Parece-me que está tudo explicado! Só tipos com uma grande pedrada passavam o tempo a fazer desenhos monstruosos no deserto!...
Brincadeira à parte: ao ver aquelas figuras senti que estava a viver um momento único na minha vida, como outros: as pirâmides do Egipto, a torre de Londres, os pássaros na madrugada do Amazonas, a ópera de Sydney, a torre Eiffel, os canais de Veneza, o Pacífico azul turquesa do Tahiti, o Taj Mahal, a savana do Quénia, o Coliseu de Roma, o Partenon, e tantos outros landmarks que já tive a felicidade de ver. Isto já ninguém me tira!
Saber que existiu um povo maluco que há muitos muitos anos, decidiu desenhar figuras no deserto peruano e que, em 2004, eu as pude ver, a bordo de uma avioneta, é algo que não vou esquecer e que fica registado indelevelmente na minha memória.

Lima
Depois de toda esta excitação, regressámos aeroporto de Ica e, em seguida, a Lima. O transfer estava à nossa espera, para meia hora de caminho até ao Swissôtel, por entre o tráfego caótico da capital do Peru, onde ninguém respeita prioridades, não faz pisca, muda de faixa constantemente (onde é que eu já vi isto?...)
Jantámos no hotel: eu comi um ceviche de lagostins, que é uma coisa com camarões crus embebidos em sumo de lima, com cebola, molho branco e mais uns vegetais cujo nome não me lembro; a Mila optou por chupe de camarões, uma espécie de sopa com os ditos embebidos num caldo com ervilhas e outros vegetais. Estava bom!

Sexta, 28 de Maio
8h50 – lobby do Swissôtel

Aguardamos a chegada do guia para a última visita desta aventura peruana.
Estamos os dois constipados: as constantes mudanças de temperatura, humidade e altitude tinham que produzir algum efeito. Mas não é nada de grave e aguenta-se bem a ranhoca e a tossica.
A Mila ainda tem comichão em algumas picadas. Ontem estive a contar as picadas: tenho 5 no membro inferior direito, 14 no esquerdo, 20 no membro superior direito, 34 no esquerdo – o que demonstra a preferência dos mosquitos pela esquerda! Tenho ainda uma na sobrancelha esquerda e duas na nuca...

15h25 – depois da visita a Lima
Esperar é uma seca!
Aguardamos pelo transfer que nos há-de levar ao aeroporto, de regresso a casa. Está marcado para as 16h40. Temos saudades da casa, dos filhos, da família...
A visita a Lima, esta manhã, foram 2 horas de carro e 1 hora a pé, se tanto. O trânsito desta cidade é mesmo caótico e, para se ir do hotel à Plaza de Armas, gastámos cerca de 40 minutos; na mesma carrinha, três sul-africanos de Natal e um casal de portugueses que chegou ontem. Um dos sul-africanos contou-nos a história da vida dele em meia dúzia de palavras, ao pé da Catedral: tem 60 anos, andou pelo mundo a correr maratonas, teve um AVC, ficou hemiplégico, recuperou mas deixou de correr, agora toma comprimidos, é dono de sete fábricas de pneus, mas deixou as fábricas para os filhos e dedica-se à sua quinta e a viajar, na companhia da mulher e da sogra que é famosa porque tem 74 anos e anda que se desunha, foi a mulher mais idosa a subir ao Quelimanjaro e vai fazer o inca trail a pé, ele não, vai de comboio. Uf!
Chegados à Plaza de Armas, saímos para fotografar o Palácio do Governo, com a bandeira dos índios a flutuar ao lado da bandeira do Peru. Explicou-nos o guia que Toledo se considera o primeiro presidente índio e, por isso, adoptou a bandeira de Cusco. Todos os guias falaram mal do Toledo! A pobreza do país é evidente e Toledo não parece ter conseguido nada do que prometeu. Nas ruas de Lima, junto aos cruzamentos e aos poucos semáforos que existem, há malta a vender de tudo: pilhas, lanterna, postais ilustrados, pastas-arquivo, globos terrestres e até papel higiénico! Vimos filas enormes de professores, à porta dos bancos, esperando para levantarem os ordenados (ainda não conhecerão as transferências bancárias?). Disseram-nos que os professores ganham à hora e trabalham 2 horas numa escola, mais 2 horas noutra escola, de modo a conseguirem um ordenado de jeito. Dos 27 milhões de habitantes, 10 milhões de peruanos trabalham, mas só 5 milhões pagam impostos – a classe média, claro. Onde é que eu já ouvi isto? O parque automóvel é antigo e degradado. Nas ruas de Lima, as mesmas latas velhas que nas outras cidades – em maior número, claro, até porque aqui vivem 8 milhões de pessoas. O ar é irrespirável, com o fumo dos escapes a misturarem-se com a neblina que permanentemente cobre a cidade.
Na mesma Plaza de Armas, além do Palácio do Governo, fica a Câmara Municipal e a Catedral. Tudo pintado de amarelo. Destaque para os varandins coloniais, de madeira, como em Cusco.


A Mila, junto à Catedral, na Plaza de Armas de Lima

Visitámos, em seguida, o Mosteiro de S. Francisco, com destaque para as catacumbas, onde eram enterrados, mediante pagamento, os habitantes de Lima. Só que os frades, no mesmo sítio, enterravam vários corpos, coleccionando, assim, uns bons milhares de ossos. Disse-nos o guia que, nos anos 40 do século passado, os frades tiraram aqueles ossos todos para a superfície, talvez à procura de algum tesouro; depois, voltaram a colocá-los nas catacumbas mas, desta vez, organizaram-nos por secções: assim, pudemos ver uma zona só com tíbias, outra só com fémures, outra só com crânios. Humor negro...
Atravessámos, depois, a cidade toda para ir ao bairro de Miraflores, que será a zona mais mexida de Lima, com muitos restaurantes e zonas de laser. Chegámos à costa e fomos dar uma olhada ao Pacífico. Que triste deve ser viver numa cidade com um oceano aos pés e que raramente se deixa ver, por causa da neblina. Noutra latitude qualquer, o panorama seria soberbo. Aqui, vê-se um pouco do oceano e o resto confunde-se com o céu demasiado baixo. Vimos o Pacífico do alto do Parque do Amor, dominado por uma gigantesca estátua de um homem beijando uma mulher e rodeado por bancos ondulantes, forrados por pedacinhos de azulejo, aos estilo do Parque Guel, de Gaudi, em Barcelona; nos bancos, diversas inscrições sobre o amor, da autoria de vários escritores latino-americanos.
E terminou a visita da cidade. Pouco, para uma cidade desta dimensão. Aliás, o próprio guia nos disse que os dois sítios mais fotografados de Lima eram a Catedral e um fosso do Mosteiro, que também vimos, onde estão artisticamente arrumados, diversos crânios e ossos longos. Lima terá, certamente, outros motivos de interesse mas, nesta nossa viagem, ficou para o fim e já não nos consegue despertar o interesse. Depois de ver o Titicaca, as ilhas flutuantes dos Uros, os Taquile a 4000 metros de altitude, Cusco iluminada à noite, o Valle de Urubamba, Machu Pichu, os vulcões de Arequipa e a selva amazónica, o que nos podia oferecer uma cidade de 8 milhões de habitantes, com um tráfego caótico e permanentemente envolta em neblina?

20h10 – regresso a casa
6283 metros de altitude, 804 km/hora, a cerca de 9450 km de Madrid, num Airbus da Iberia.
E no final desta excelente viagem, a Lima Tours fez borrada: esqueceram-se de nos ir buscar! Às 16h 40 não apareceu ninguém e o tempo ia passando e nada! A Mila conseguiu falar com uma fulana que também trabalhava para a agência e que foi ao hotel buscar os mesmos ingleses que estiveram connosco em Arequipa e ela prometeu que ia telefonar para saber o que se passava. Passado um bom bocado, lá apareceu um subcontratado para nos levar ao aeroporto! Chegámos lá 1h30 antes da hora do voo. Fizemos o check in e, como já fomos dos últimos, calhou-nos os lugares do meio da fila do meio! Para ajudar à festa, o polícia da alfândega não gostou da minha barba (que entretanto cresceu desde a selva) e mandou-nos abrir as malas, perguntando há quantos dias estávamos no Peru, a que locais tínhamos ido e etc e tal!... lá abrimos as malas e o tipo, sem luvas nem nada, meteu as manápulas lá dentro, quase por desfastio e, claro, que não encontrou nada. Ficámos foi com receio que lá tivesse plantado alguma coisa...
Enfim, um final aborrecido para uma viagem tão porreira!

 

 

 

Actualizado em: 3 Junho 2004
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