1. O primeiro cigarro (1966/67)
Fumei o meu primeiro cigarro tinha 13 anos e ia vomitando as tripas.
Era um Dunhill, embalagem cartonada, vermelha e dourada e cheirava a humidade.
Devia estar guardado lá em casa há vários anos, numa prateleira
onde o meu pai também encafuava as garrafas de whisky e de vinho do Porto
e os charutos. E digo encafuava porque o meu pai nunca fumou na vida e, quanto
a álcool, preferia o tinto e a cerveja. Como era conferente marítimo
na gloriosa Companhia Colonial de Navegação, de vez em quando trazia
para casa umas coisas que "sobravam" da carga dos navios. Penso que
a coisa funcionava mais ou menos a meias com os estivadores. O estivador carregava
e o conferente conferia. Se havia, digamos, duzentos volumes para carregar, era
fácil tirar do porão apenas 198; o conteúdo dos dois que
faltavam podia ser dividido entre o conferente e os estivadores e anotava-se no
relatório que dois volumes haviam caído e a respectiva carga se
perdera.
Muitas vezes, a carga "perdida" até nem interessava ao meu pai
- caso dos cigarros - mas ele acabava por trazer tudo para casa: além dos
cigarros e charutos, lembro-me do marisco e das rações de combate.
De vez em quando, lá chegava o Zé Couto a casa com uma lagosta ou
um lavagante, que ele próprio confeccionava, perante o desespero da minha
mãe, que já tinha outro jantar destinado. Considerando a situação
económico-social da minha família, eu devo ter sido o puto que comeu
mais marisco nos anos sessenta. Quanto às rações de combate,
as devotas senhoras do Movimento Nacional Feminino (o nome de Maria Supico Pinto
sempre me fascinou...) iam ao cais da Rocha de Conde de Óbidos dizer adeus
aos soldados que partiam para a guerra de África e a todos obsequiavam
com uma ração de que faziam parte conservas, pão, fiambre,
queijo e outros víveres, além de cigarros, evidentemente.
Foi graças a esta sociedade entre o meu pai e os estivadores que fui, por
exemplo, o primeiro miúdo da rua a ter uma máquina de projectar
filmes. Devia ter cerca de 9 anos e organizava sessões cinematográficas
para a malta da rua. A minha mãe pendurava um lençol na trave da
baliza (sim, eu tinha uma baliza no quintal…), eu dispunha as cadeiras,
manufacturava os bilhetes com o número da cadeira e o título dos
filmes em exibição e era um fartar de rir. Foi o meu primeiro contacto
com os irmãos Marx, o Bucha e o Estica, o Charlot e, também, algumas
cowboiadas. Posso dizer que, para mim, o hábito de ver filmes em casa chegou
pouco depois da televisão, já que a primeira televisão que
os meus pais compraram coincidiu com o nascimento do meu irmão Paulo, em
pleno ano de 1960, tinha eu 7 anos e talvez ainda não pensasse em tabaco…
Na altura em que fumei o meu primeiro cigarro, o tabaco ainda não fazia
mal à saúde. Pelo menos, lembro-me perfeitamente de ver o pessoal
a fumar em todo o lado, nos transportes públicos, no cinema, no telejornal…
Só lá em casa é que ninguém fumava, mas não
havia nenhuma razão especial para esse facto. Quer dizer, a minha mãe
e a minha avó não fumavam porque eram mulheres e, em princípio,
não era bonito uma senhora fumar. Naqueles tempos, só as mulheres
de má fama, as artistas, as senhoras da alta sociedade ou as estrangeiras
é que fumavam. Quanto ao meu pai, não fumava porque nunca calhou.
Portanto, tinha eu 13 anos, estávamos em 1966 e eu andava no 4º ano
do Liceu Camões, secção do Areeiro. Não me lembro
de nenhum colega meu que fumasse e, quanto a adultos, só o meu tio, irmão
do meu pai, é que era fumador mas, nessa altura, a minha relação
com ele era distante - não que alguma vez tivesse sido muito próxima,
mas, naqueles tempos, quase só o via no jantar de Natal. Que eu me lembre,
os meus heróis eram os Beatles e, se eles fumavam, eu ignorava porque só
os tinha visto em meia dúzia de fotografias. Daqui se conclui que a minha
decisão em fumar aquele Dunhill se prendeu apenas com o simples facto,
ainda não provado cientificamente, mas verdadeiro, de que existem dois
tipos de pessoas: as fumadoras e as não fumadoras. E não vale a
pena lutarmos contra este facto inabalável. Está algures no genoma,
é só uma questão de procurarem com mais cuidado. Todos os
verdadeiros fumadores que, por qualquer motivo, deixaram de fumar, sabem que isto
é verdade: décadas depois de terem deixado o tabaco, ainda sentem
uma saudade enorme; no fundo, nunca deixam de ser fumadores, apenas deixam de
fumar. Ao longo dos anos, desenvolvi um talento especial para adivinhar se certa
pessoa é, ou não, uma fumadora. Não sei explicar esse talento
mas sei que, ao olhar para alguém, sou capaz de dizer se fuma ou não;
pela maneira de andar, pelo modo como colocam os dedos das mãos, como se
tivessem um cigarro imaginário entre os dedos - sinceramente não
sei explicar como é, mas raramente falho.
Quando fui à prateleira buscar o maço de Dunhill, estava sozinho
em casa, evidentemente, e escolhi um que já estivesse aberto, para não
dar nas vistas. Por vezes, quando alguém ia almoçar lá a
casa, o meu pai oferecia um cigarrinho estrangeiro aos convidados, o que era sempre
muito apreciado por todos e, depois, atirava com o resto do maço para o
fundo da prateleira. Lembro-me perfeitamente do cheiro a humidade do tabaco aloirado
do Dunhill e lembro-me ainda melhor do que senti quando puxei a primeira passa.
Estava sentado a uma pequena secretária onde costumava estudar e senti
que a estante ia cair para cima de mim, que as paredes do quarto estavam a ficar
estranhamente onduladas e que nascia, mais ou menos ao nível do estômago,
uma agonia profunda. Apaguei de imediato o cigarro num cinzeiro da Companhia Colonial
de Navegação e deitei a cabeça sobre o tampo da secretária,
tentando conter o vómito. Não sei quanto tempo fiquei naquela posição
mas, assim que o enjoo passou, tornei a acender o cigarro e consegui fumá-lo
até ao fim sem vomitar.
Agora, pergunto: se a experiência do primeiro cigarro foi tão desagradável,
o que me terá levado a continuar? É que eu tinha tudo contra: os
meus pais não aprovariam que eu fumasse porque era demasiado novo e parecia
mal (não era porque fosse prejudicial à saúde porque, como
já disse, naquele tempo, o tabaco não fazia mal…), a minha
semanada era baixinha e mal dava para os Mundos de Aventuras e sítio para
fumar também era difícil de arranjar; no liceu, era proibido e,
na rua ou num café, um puto de 13 anos a fumar era quase impensável.
E, no entanto, apesar de ter tudo contra, não descansei enquanto não
fumei o segundo cigarro, e depois o terceiro, e por aí fora, até
hoje.
Quem me conhecesse não diria que o Fernandinho, tão atinadinho,
tão bem comportado, sentisse esse enorme desejo por uma coisa proibida.
Eu, que até frequentava a igreja, ia à missa todos os domingos e
assistia àquelas reuniões paroquiais em que os jovens cantam hinos
ao Senhor. Quer dizer, eu ia à igreja fundamentalmente para fazer companhia
à minha vizinha Manecas, cinco anos mais velha do que eu e que, apesar
de usar óculos com lentes de fundo de garrafa, exercia sobre mim um fascínio
tremendo. Enfim, a sexualidade começava a despertar em mim, ainda timidamente,
e a Manecas era a fêmea mais à mão e, se ela ia à igreja,
eu tinha que ir também…
Além de frequentar a igreja, o meu bom comportamento incluía, também,
uma atenção muito especial pelos meus irmãos, apesar da diferença
de idades. Na altura, o Paulo tinha 6 anos e a Bela ainda não tinha completado
5 anos. Todas as noites, já deitadinhos, contava-lhes sempre uma história.
Pois é, dormíamos todos no mesmo quarto, que não tinha mais
que 12 metros quadrados, e onde também dormia, do lado de lá de
um cortinado, a minha avó que, ao tempo, já era velhota - mas, como
todos sabemos na família, a avó Rita é eterna, já
vai a caminho dos 94 anos e ameaça por cá andar outros tantos. As
histórias tinham sempre o mesmo herói: o senhor Picocó, personagem
inventada por mim e que, todas as noites, vivia uma aventura diferente: o senhor
Picocó no barbeiro, no médico, no dentista, na tropa, e por aí
fora. Eu inventava a história à medida que a ia contando e tentava
apimentá-la com os mais variados disparates, o que provocava o riso dos
meus irmão que, assim, adormeciam contentinhos. Mal sabia eu que, décadas
depois, miúdos com a idade que os meus irmãos tinham então,
não perdem uma aventura, não do senhor Picocó, mas de um
boneco japonês chamado Picachu que, em vez de trapalhadas, tem poderes mágicos
e qualquer coisa a ver com artes marcais, ao que me dizem…
Nesses tempos, toda a gente me chamava Fernandinho, excepto os meus irmãos
que, perante tão longo gerúndio, preferiram resumi-lo a um simples
"Nini".
Fumar foi, portanto, a minha única transgressão dos 13 anos, além,
claro, da falsificação dos testes. Depois de um 3º ano de Liceu
muito complicado, em que passei cortado a Matemática e Físico-Química,
o 4º ano estava a correr mais ou menos bem; nada de notas extraordinárias,
mas o suficiente para passar sem grandes sobressaltos. Tinha desenvolvido uma
estratégia infalível para evitar conflitos lá em casa: sempre
que tinha um teste com mau ou medíocre, fazia outro teste numa folha nova,
fazia eu próprio a correcção, imitando a letra do professor,
dava a mim próprio um suficiente e imitava também a assinatura do
professor e só depois mostrava o teste ao meu pai, para ele tomar conhecimento
como encarregado de educação e assinar. No Camões, as folhas
dos testes tinham, no canto superior esquerdo, um rectângulo, onde o professor
escrevia a classificação e assinava e, por baixo, o encarregado
de educação tinha que assinar também; depois, nós
tínhamos que mostrar o teste assinado pelo pai ao professor. Era um sistema
de controlo muito complicado mas, como eu consegui provar, cheio de falhas. A
assinatura do meu pai estava cheia de arabescos mas, após várias
tardes de ensaio, consegui imitá-la na perfeição. Portanto,
para o meu pai, eu só tinha testes de suficiente para cima. Daí
o seu espanto quando, no fim do período, ia ver as pautas e eu tinha uma
ou duas negativas. Aí havia sempre a possibilidade de dizer que o professor
era injusto, não percebo como é que ele me deu um 8, francamente!…
Bons tempos, em que ainda não se tinham inventado as célebres reuniões
de pais…
Quanto aos testes negativos, todo o cuidado era pouco com os professores que
gostavam, de vez em quando, de passar revista aos nossos cadernos. O teste negativo
com a assinatura falsa do meu pai estava sempre no caderno durante a aula da respectiva
disciplina; no fim do dia de aulas, tirava-o e escondia-o por baixo da camisola
interior; não me arriscava a metê-lo no bolso das calças,
não fosse esquecê-lo e a minha mãe, quando fosse lavar as
calças descobria um mau a Matemática! Usei este difícil estratagema
até ao 6º ano de Liceu e não me dei mal. Lá fui gerindo
os maus, os medíocres, os suficientes e os bons, que não eram muitos,
diga-se de passagem.
Claro que a culpa deste esquema era do meu pai. Antes de aprender a imitar a assinatura
dele, eu não tinha outro remédio se não mostrar-lhe os testes
todos e, se era um medíocre, berrava comigo, dizia coisas desagradáveis
como "anda um gajo a trabalhar dia e noite para tu estudares e depois tu
não fazes nada! Se continuas assim vais trabalhar para as obras!"
Ou seja, por volta de 1966 era perfeitamente lícito um pai ameaçar
um filho com a prática de trabalho infantil e, muito provavelmente, seria
aplaudido por uma multidão de pais. O trabalho proposto era sempre nas
obras; nunca me ameaçava de ir trabalhar no campo ou num escritório,
por exemplo. Hoje em dia, é o que se vê: os construtores civis vingaram-se
e agora são eles que ameaçam os filhos: "se me gastas a fortuna
que eu juntei com tanto sacrifício e fuga aos impostos, obrigo-te a tirar
um curso superior e não passas da cepa torta!". Voltando aos testes:
se tinha uma positiva, um reles suficiente, ou um bom, ou mesmo um muito bom,
o meu pai limitava-se a comentar que eu não fazia mais que a minha obrigação.
Foi, portanto, por estar farto desta conversa, que decidi, aos 13 anos, ser o
meu próprio encarregado de educação.
Pouco depois de ter fumado o meu primeiro cigarro, mais dois ou três colegas
revelaram que também já tinham experimentado. Ora aí está,
nada melhor do que fumar em grupo!
Quando algum professor faltava - e como era raro um professor faltar naqueles
tempos! - íamos a uma mercearia nas traseiras do Liceu e comprávamos
cigarros avulso, um para cada um. O sacaninha do dono da mercearia não
devia ter sentimentos de culpa e como nós não éramos filhos
dele, não se importava nada de ganhar 100 ou 200 por cento em cada maço
de cigarros, vendendo-os à unidade. Depois, íamos para um jardinzinho
com umas árvores frondosas que havia para os lados da Avenida de Madrid
e regalávamo-nos com umas passas bem profundas. Já não me
lembro do preço que pagava mas recordo que o bilhete de eléctrico
do Areeiro para S. Domingos de Benfica, onde eu morava, era de um escudo e cinquenta
centavos, ou seja, quinze tostões, porque apanhava duas zonas. Então,
eu ia a pé do Liceu até ao Arco do Cego e só aí apanhava
o eléctrico. Poupava cinco tostões e, no caminho, parava nas escadas
do Instituto Superior Técnico para fumar um cigarrinho - aí, nessa
zona universitária, ninguém ligava a um puto a fumar.
Ao fim de muitos cinco tostões poupados, lá arranjava dinheiro,
de vez em quando, para um maço de cigarros. SG filtro era a marca escolhida;
o maço era amarelo em cima e tinha riscas azuis e brancas em baixo e eu
aprendi a tirar a prata com os cigarros e virá-los ao contrário;
assim, de cada vez que ia tirar um cigarro, não tocava com os dedos no
filtro. Já demonstrava, então, alguns cuidados de saúde pública.
Outras vezes, comprava Português Suave sem filtro, mas o papel do tabaco
queimava-me os lábios. Experimentei todas as marcas, penso eu: o Kart (que
dava quilómetros de prazer), o Sintra, o Porto, o Kentucky, o Três
Vintes, o Definitivos, o Provisórios, o SG gigante, o Ritz e outros que
já não recordo; passei pelo SG ventil, pelo Português Suave
com filtro, pelo Camel e pelo Marlboro. Tentei as cigarrilhas e os charutos, mas
fico enjoado; experimentei o cachimbo, mas arde-me a garganta. O cigarro é
que é.
Andar com um maço de cigarros no bolso aos 13 anos era um trabalho perigoso,
mas alguém tinha que o fazer. Assim que chegava a casa, escondia o maço
o melhor que conseguia e examinava atentamente o bolso das calças, não
fosse lá ter ficado algum indício do crime. Mas saí-me bem.
Tal como com o estratagema dos testes negativos, também no que respeita
ao tabaco nunca fui apanhado. E foram cinco longos anos de clandestinidade, uma
vez que só aos 18 anos tive coragem para fumar à frente do meu pai.
No entanto, o principal problema de fumar às escondidas não era
ser descoberto pelo meu pai - mas sim, ser descoberto por Deus; quer dizer, Deus
já me devia ter descoberto, uma vez que está em toda a parte, mas
ainda não me tinha castigado, ou será que já tinha?…
A culpa!… Sempre a culpa a perseguir-nos. Tinha que resolver este problema
rapidamente. E foi o que em fiz: em Março de 1967 completei 14 anos e decidi
deixar de ser católico e passei a ser fumador.
Posso garantir que até a Manecas me parecia cada vez mais bonita, à
medida que Deus ia recuando.
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